Elmar Carvalho
Três ou mais anos atrás, José Silva Teixeira Filho, gerente
de Operações da ECT no Estado do Piauí, ofereceu-me, gentilmente, o livro Os
Correios, sua Gente e Eu, de autoria de Guttemberg de Oliveira Sousa Filho, que
por muitos anos trabalhou no antigo Departamento de Correios e Telégrafos –
Diretoria Regional do Piauí –, depois transformado em Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos. Com dedicação, esforço e estudo, alcançou o cargo de
técnico postal, após ter sido carteiro e chefe dessa operosa categoria. Tendo
trabalhado na empresa, em Teresina, de setembro de 1975 a março de 1977,
conheci muitas das pessoas que ele cita na obra; de muitas outras, ouvi falar.
Em linguagem fluente, clara, objetiva e sem firulas
estilísticas, relata episódios interessantes de que participou, presenciou ou
ouviu falar ao longo das várias décadas em que mourejou nessa repartição postal
e telegráfica. Alguns de seus relatos têm caráter autobiográfico ou
memorialístico; outros são narrativas de fatos engraçados ou anedóticos, dos
quais foi testemunha ou mesmo protagonista. Contudo, teve o cuidado de evitar
acontecimentos que pudessem magoar a suscetibilidade ou a honra de alguém.
Em suas histórias, revela talento para criar suspense e,
dessa forma, prender a atenção do leitor até o desfecho, quase sempre
surpreendente e humorístico. Nota-se também sua verve e habilidade em provocar
o riso, pela maneira como urde a narrativa.
Os capítulos de sua obra, porém, não tratam apenas de
“causos” jocosos ou anedóticos. Alguns são permeados pelos percalços e
vicissitudes da vida; outros versam fatos notáveis da história do Piauí, sempre
com certo sabor de crônica, como o que abordarei neste texto e como aquele em
que discorre sobre a fazenda dos jesuítas em Santo Inácio do Piauí. Narra
também um episódio anedótico em que foi protagonista a figura importante e um
tanto imponente de Lucílio Dantas Avelino, sempre vestido à moda antiga.
Entre os fatos de que foi protagonista ou participante, houve
um em que ele teria permitido que o advogado Alarico da Cunha Júnior, diretor
da SUDENE no Piauí, adentrasse uma área destinada exclusivamente a
funcionários. Guttemberg explicou ao responsável por resolver o problema que
não autorizara a entrada do Dr. Alarico e que sequer o vira penetrar na área em
questão.
O caso foi dado como solucionado. Contudo, no expediente da
tarde, ele foi abordado por Antônio Teixeira Santos, chefe do Tráfego Postal
(CHP), que lhe disse que, em outra oportunidade, mandasse sair quem quer que
entrasse em área proibida. Guttemberg perguntou se deveria fazer sair até mesmo
o governador do Estado, ao que Teixeira, de forma peremptória, respondeu:
“Até o Presidente da República. Aqui, no seu trabalho, a
autoridade dele é menor que a sua.”
O nosso autor pediu desculpa pela sinceridade, mas afirmou
não acreditar na “conversa bonita”, nem mesmo para lhe ser agradável. Confessou
que não teria coragem de “cutucar o cão com vara curta”, como diz o ditado
popular. Aproveitou para lhe contar a fábula dos ratos e do gato, em que um dos
ratos teria de colocar um chocalho no felino para alertar os demais. Um velho e
experiente rato, então, pergunta: “Mas quem põe o guiso no gato?”
Teixeira Santos, com muita ênfase e voz potente, retrucou:
“Eu cutuco o Cão com vara curta, eu ponho o chocalho no
gato!”
Guttemberg retrucou que, se o Presidente da República, o
governador do Estado, o presidente do Tribunal de Justiça, um ministro de
Estado ou outra autoridade desse quilate entrasse em sua seção, chamaria
Teixeira para que ele convidasse a autoridade a retirar-se. Teixeira não
“amarelou” e afirmou que ficava à sua disposição.
Para deixar tudo às claras, o autor narrou um fato acontecido
em 1937, na época da instauração do Estado Novo, quando Getúlio Vargas passou a
governar com poderes ditatoriais. O interventor federal Leônidas Melo solicitou
ao diretor regional dos Correios e Telégrafos que seus telegramas lhe fossem
entregues pessoalmente. O diretor recomendou aos estafetas que somente o
governador os recebesse, mediante assinatura legível.
Recorri à regional da ECT no Piauí para saber o nome desse
diretor, mas seu nome não foi descoberto. Em Trechos do Meu Caminho (2ª edição,
p. 275.), seu excelente livro de memórias, Leônidas lhe faz referência elogiosa,
mas sem lhe mencionar o nome: “Eu mantinha íntimas relações com o Diretor dos Telégrafos.
Era homem de compostura e responsabilidade, pessoa merecedora de inteira
confiança.”
Algum tempo depois, numa tarde de sábado, achando-se no
Palácio de Karnak o interventor federal, várias autoridades e o diretor dos
Correios e Telégrafos, um estafeta foi entregar um telegrama destinado a
Leônidas. O chefe da Casa Militar disse que poderia recebê-lo, mas o mensageiro
replicou que só o entregaria ao destinatário em pessoa.
O coronel Torquato Pereira de Araújo conduziu o estafeta até
Leônidas, que rubricou o recibo. O mensageiro, porém, não lhe entregou o
telegrama, alegando que ele não “assinara direito”, apenas rubricara. O
governante sorriu e assinou por extenso, de forma legível.
O diretor pediu desculpas ao interventor, dizendo que o
carteiro era ignorante e grosseiro, e que seria severamente punido. Leônidas,
porém, disse gostar de sua atitude, pois cumprira fielmente sua missão.
Teixeira Santos, que ouvira atentamente a história, exclamou:
“Gostei do mensageiro. Cabra macho! Não sou diretor e não vou
pedir desculpas a nenhuma autoridade em caso semelhante. Se o senhor João
Belchior Marques Goulart, atual Presidente da República, penetrar nesta seção
sem a devida autorização, ponha-o fora ou me chame, que eu o porei.”
Pelo visto, ou ouvido, Antônio Teixeira Santos era também um
cabra macho — tanto quanto, ou mais do que, o carteiro — ou seria apenas um
grande falastrão e fanfarrão.
Cursava a Faculdade de Direito e cultivava amizade com
advogados e outros operadores do Direito, inclusive magistrados.
Por essa época, início dos anos 1960, era figura proeminente
de Teresina o desembargador Robert Wall de Carvalho, filho do Des. Cromwell
Barbosa de Carvalho e de Virgínia Wall de Carvalho, professor da Faculdade de
Direito, membro da Academia Piauiense de Letras, presidente do Tribunal de
Justiça do Piauí, e que, na década seguinte, viria a ser o primeiro reitor da
Universidade Federal do Piauí.
Um carteiro comunicou ao chefe Guttemberg que essa alta
autoridade adentrara a Seção de Carteiros à procura de uma carta registrada que
já deveria ter chegado. O nosso bravo autor disse ao carteiro para informar ao
desembargador que iria encontrá-lo em breve para resolver o problema. Em
seguida, foi procurar Teixeira Santos, chefe do Tráfego Postal, e lhe disse:
“O presidente João Belchior Marques Goulart invadiu a Seção
dos Carteiros e está sentado à minha mesa. Vim chamá-lo para que o senhor o
ponha fora.”
Deixemos que ele mesmo conte o que se passou:
“Levantou-se a queima-roupa e foi dizendo: ‘Sai agora mesmo!’
Seguimos, e, ao avistar o invasor no fundo da sala, acenou os dois braços como
um gavião quando quer pegar a sua vítima. Eu, pasmado ao ver aquela cena nunca
pensada, disse comigo mesmo: ‘Valha-me Deus, o homem enlouqueceu! Vai partir
para a violência, parece que vai arrastá-lo porta afora.’”
Parecia uma cena dantesca, como diria o condoreiro Antônio
Frederico de Castro Alves. Guttemberg chegou a esperar que Teixeira Santos
trucidasse o desembargador Robert Wall de Carvalho. Criou-se enorme suspense.
Deixemos que ele próprio finalize o que, então, de forma surpreendente, se
passou:
“Abriu os braços para fazer uma saudação calorosa e foi
dizendo: ‘Que honra tê-lo aqui em nosso meio! Em que lhe posso ser útil?’ E me
apresentou: ‘Guttemberg, chefe de turma, incumbido da entrega da
correspondência’. Após os cumprimentos, o desembargador voltou-se para mim com
aquela voz grossa e austera: ‘Seu descobridor da imprensa, descubra o meu
registrado nº (...), pois preciso tê-lo em mãos com urgência.’”
Feitas as devidas buscas, o autor descobriu que o registrado
fora entregue à Academia Piauiense de Letras, da qual o magistrado era membro.
O nosso “Robespierre postal” acompanhou o desembargador
Robert Wall de Carvalho, entre mesuras e reverências, até o automóvel oficial.
Quando retornou, sacudindo a cabeça e sorrindo, ainda transmitiu esta lição a
Guttemberg:
“Ninguém bota um bichão desses para fora; ninguém o convida a
retirar-se. Aquele caso do diretor da SUDENE foi frescura da filha do Ferreira.
Não precisava aquela guerra por um caso tão fútil. Criticar é muito fácil;
realizar é que é o problema.”
Dada a lição, tocou mansamente o ombro de Guttemberg de
Oliveira Sousa Filho e se retirou.
Quanto ao livro Os Correios, sua Gente e Eu, ele está a
reclamar uma nova e boa edição, após 27 anos da primeira — seja patrocinada
pelos descendentes do autor, seja pela ECT/Piauí.

Relatos excelentes do nosso passado.
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