terça-feira, 2 de dezembro de 2025

FLAGRANTES DE UMA VIAGEM NO TEMPO E NO ESPAÇO

(c) Elmar Carvalho

Imagem elaborada pela IA Gemini, com base em minha foto acima, sob minha orientação.


FLAGRANTES DE UMA VIAGEM NO TEMPO E NO ESPAÇO

 

Elmar Carvalho

 

Neste final de semana fiz uma breve viagem a Parnaíba.

Retornei no domingo, às 10 horas, em ônibus da Guanabara. Quando cheguei à minha poltrona, no piso superior, situada à janela, havia um homem na poltrona do corredor, que gentilmente me cedeu passagem. Tinha barba e calculei que estivesse no início de sua maturidade. Fizemos a viagem sem nenhum tipo de conversa até a cidade de Piripiri.

No final de minha adolescência e início da juventude, fiz várias vezes essa viagem (ida e volta), sobretudo no período de setembro de 1975 a março de 1977, quando assumi meu emprego nos Correios, e depois, entre agosto de 1982 e junho de 1985, quando me casei.

No primeiro período, morei em Teresina até meu retorno a Parnaíba; a partir de agosto de 1982, passei a morar definitivamente nessa capital. Nessa época, na viagem de ida, seguia com incontido contentamento e, na volta, ficava melancólico, imerso em lembranças e saudade, sobretudo de meus pais.

Almoçamos em Piripiri. No self-service fiquei atrás de um rapaz muito jovem e muito magro. Admirei-me com a quantidade de arroz que ele colocou em seu prato. Fez uma verdadeira montanha. Admirei-me mais ainda com a quantidade das outras iguarias que ele foi acumulando no prato em suas sucessivas escolhas.

No início, fiquei com certa inveja, mas depois — por que não confessar? — tive saudade de mim mesmo, quando, no auge de minha juventude saudável, igualmente devorava com muito apetite uma quantidade semelhante de repasto. Só não atinei em como um corpo tão franzino poderia suportar tal volume de alimento.

Recomeçamos a viagem. Vi que o rapaz da poltrona contígua à minha, de vez em quando, retirava um livro da mochila, que conduzia a seus pés, e o folheava ou lia durante alguns momentos. Terminei sendo vencido pela curiosidade e lhe perguntei se ele lia apenas livros técnicos ou informativos, ou se lia também obras literárias, tendo ele me respondido, com certa ênfase, que gostava de livros de ficção e de poemas, o que me causou perplexidade e alegria, neste tempo em que a literatura vem perdendo prestígio, mormente pelo excesso de escritores e pela falta de leitores. São escritores demais para leitores de menos.

Perguntou qual era o meu nome. Ante minha resposta, indagou se eu fazia parte do Clube dos Poetas Mortais, ao que respondi afirmativamente. Disse que participou de uma das coletâneas dessa agremiação literária e era ativo em seu grupo de WhatsApp. Falei que esse clube fora criado por Paulo Couto, velho amigo, que também organizou suas obras coletivas.

Comentou que a poltrona do ônibus era de boa qualidade, e eu afirmei que era melhor que a dos aviões em que já viajara.

Aludi a uma das músicas românticas de Belchior, em que ele dizia: “Foi por medo de avião / Que eu segurei / Pela primeira vez a tua mão”. Contei-lhe que, em minhas primeiras viagens aéreas, eu tinha medo e, para driblar o meu pavor, observava as aeromoças — que, então, eram chamadas mesmo de aeromoças, e eram, de fato, moças e bonitas. Disse-lhe que, por causa disso, fizera o meu poema A Ero Moça, publicado na internet.

No decorrer da conversa, fiquei sabendo que o poeta se chamava Daniel Santos e que se interessara por literatura aos cinco anos de idade, quando leu um pequeno livro que ainda guardava. Acrescentou que tinha uma empresa especializada em consertar máquinas de lavar roupa. A título de velada sugestão, perguntei se ele não pretendia ingressar na área de limpeza e conserto de ar-condicionado, tendo ele dito que já estava montando uma equipe com esse objetivo.

Relatei-lhe que, alguns meses atrás, mandara consertar uma máquina de lavar roupa e que a empresa não conseguira efetuar com eficácia o serviço, pelo que tive de comprar uma máquina nova. Diante disso, pedi redução no preço proposto, tendo enviado à empresa a nota fiscal de compra da nova máquina. Contudo, o dono da firma insistiu em manter o preço do orçamento, embora o serviço prestado me tivesse sido inútil.

Quando passamos por uma casa situada no entorno do Açude Grande, em Campo Maior, disse-lhe que ela havia sido sede de um cabaré e posteriormente fora o entreposto de uma empresa, com matriz em Minas Gerais, que comprava jumentos para exportação, segundo os rumores. Assim, poderíamos dizer, de forma metafórica e literal, que servira ao comércio da carne, para diferentes finalidades.

A conversa não foi contínua. Às vezes eu ruminava meus silêncios na contemplação da paisagem, da qual tirei umas poucas fotos, sobretudo da chapada ornada de cupins, faveiras, sambaíbas e pequizeiros. Aliás, disse ao poeta Daniel Santos que gostava de viajar perto da janela exatamente para olhar a paisagem, e que desse labor do ócio me viera o estalo para alguns poemas que estão em meus livros.

Para encurtar esta crônica dessa conversa intermitente e desses “flagrantes”, quando chegamos ao início da ladeira do Morro do Uruguai, relatei-lhe que, em 1984 ou 1985, antes do meu casamento, fui esperar Fátima, que vinha de Parnaíba, em um ônibus da extinta empresa Marimbá. Por distração, desci a estrada até uns setecentos metros e, quando retornava, escapei de morrer por um átimo ou uma diminuta fração de segundo. Com um preciso e exato golpe do guidão, livrei-me de ser colhido por um automóvel em altíssima velocidade.

Vi a fragilidade e fugacidade da vida. Pude contemplar suas frágeis e delicadas engrenagens. Eu teria sido uma vida interrompida em seu ápice. Não teria tido o que conquistei a partir de então. Não teria me casado, não teria tido meus dois filhos, não teria concluído o curso de Direito, nem me tornado juiz de Direito, nem feito os vários poemas, contos, crônicas e romance que fiz depois. Não teria me tornado quem eu hoje sou.

Tinha menos de 30 anos de idade, e a vida ainda me floria, com as Graças me espargindo rosas em meu caminho. 

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