terça-feira, 23 de março de 2010

FERNANDO: A GOLPES DE ESTILETE

Detalhe de uma pintura de Fernando Costa, pertencente a Cineas Santos, exposta na Oficina da Palavra

Elmar Carvalho

Fernando era como um alquimista. Era um mago medieval, mas demasiadamente moderno – eterno. Um mágico sem truques, mas com muita magia em sua arte. Era um bruxo, um demiurgo e/ou taumaturgo. Um demiurgo, como dele disse Clóvis Moura. Demiurgo e demônio, tanto faz. Demônio e santo, tudo junto e algo mais.
Aquele algo mais que o fazia erguer do caos primordial do nada/ser suas belas gravuras a golpes de estilete. Traçava em longos e lestos e lentos gestos de prestidigitador o desenho na borracha. Depois, com o estilete, diligentemente, a desbastava, até arrancar a forma perfeita de sua linogravura.
Mas o seu arrancar era feito suavemente, quase como se não tocasse a matéria, tal era sua agilidade. Acaso não tivesse esse dom encantatório daqueles que sabem seu ofício como um deus, usaria fórceps para extrair sua arte dos umbrais do caos das formas informes.
Fernando Costa era uma pessoa delicada. Talvez por isso não teve a dureza necessária para enfrentar as vicissitudes do simples existir, do simples estar no mundo. E as crises existenciais se abateram como golpes de estiletes sobre sua alma sensível e gentil. E as angústias repercutiram em sua arte, principalmente em sua pintura, que por vezes tomava formas aparentemente desordenadas e sombrias. Ao criar como ninguém, ousou desafiar os deuses, e os deuses enciumados fizeram com que o Grifo da destruição se rebelasse contra o artista, na metafórica e literalmente lapidar expressão de Ivan Junqueira:
“Se o homem cria, ele o espedaça e pisa, triunfante, entre os escombros da agonia.”
Certa vez, Fernando, diante de um quadro do pintor e pirógrafo Sica, como se estivesse em transe, ou como se visse além das aparências óbvias, redundantes e vulgares, exclamou com viva admiração e júbilo pelo trabalho alheio, apanágio dos bons e dos não invejosos:
Mas que azul fundamental!...
E um dia, em pleno carnaval, sem nenhuma explicação aparente, como as grandes obras de arte, Fernando esvaiu-se em sangue, em vermelho, num ritual de morte digno de Mishima, ou das mutilações de Van Gogh, através de golpes de estilete contra si mesmo desfechados, arrancando à força, em seus últimos gestos, mais uma vez ousando contra a fúria dos deuses, o seu mais profundo vermelho.
O seu vermelho fundamental.

2 comentários:

  1. Meu caro Elmar Carvalho, a esse artista tão surpreendente, para homenageá-lo, lancei mão deste poema, que está no livro "Onde Humano", a ser lançado em breve, talvez no SALIPI (espero que apareça lá):

    sobre o realismo plástico artista: um homem em sua obra*

    de tinta de sangue
    fez-se teu nome – Fernando –
    personalíssimo & transferível ao poema

    pelo bendito ódio à vida
    que se-gerou imagem sangüenta
    de tanta pintura & quanta violência!

    ah... quadro profundo!
    teus punhos teu ventre teu grito teu estilo
    compunham tua mais crua obra prima & derradeira



    (No Primavera; próxima, a praça que tem, sim, seu nome próprio.)

    *Em memória de Fernando, um artista plástico do meu bairro, nessa rota pela Costa de duas artes piauienses.

    Luiz Filho de Oliveira, poeta

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  2. Caro Luiz Filho,
    Seu belo poema é uma homenagem mais valiosa e mais sincera do que muitas placas de bronze pregadas pelo oportunismo e demagogia.
    É uma bela homenagem a um grande artista piauiense.

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