sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O TOM DO DÓ DA DOR

DANIEL C. B. CIARLINI

Estatueta da autoria de Braga Tepi, misto de poeta e Dom Quixote, que foi oferecida por César Carvalho ao seu irmão Elmar Carvalho, no dia da posse deste na Academia Piauiense de Letras

Existem dois tipos de escritor, aquele que se individualiza, explorando, com afinco e embriaguez, o seu interior, o mundo que gira em torno do próprio umbigo, e aquele que vai mais além, conseguindo transformar as leis do individualismo em liras universais. Este segundo tipo de homem de Letras vive dores tão profundas que seu lamento é capaz de ecoar vozes alheias. São, pois, escritores corporificados pela essência épica, que canta, desde os tempos remotos, as glórias e os anseios dos povos. O individual e o coletivo, a propósito, são os dois elementos, as duas principais estruturas, que constituem o campo literário; entre elas, há-se, ainda, para não ser injusto, um terceiro elemento, ou melhor, uma terceira classificação, e que aqui não se listou como pilar por ser de caráter transitório, portanto indefinido, cujos literatos que nela se inserem estão, tautologicamente falando, entre o lirismo individualista e a épica coletiva; ou seja, são aqueles que produzem obras surtuosas, como que na procura definitiva de um estilo. Por esta forma de expressão, sincrética no campo das ideias e anárquica no campo da estrutura, os escritores que a praticam não se tornam, por sua natureza, negligentes com ambos os estilos, suas penas vão explorando, conforme inserem a imagem no papel, aspectos próprios e universais. E por estes tempos, em que o ofício pouco me permite absorver estritamente a literatura, cito o nome de Wilton Porto, que está, segundo minha visão, neste patamar transitório, e do qual tive o prazer de ser presenteado com sua última coletânea poética.
“Tom do Dó da Dor” é muito mais do que o autor tentou definir em sua apresentação: “Não deixa de imprimir a compaixão, o estar do lado dos que sofrem, dos oprimidos”. O “Dó”, ou, antes, a “Dó”, polivalente, portanto, se insere num campo amplificado de sentidos, forçando-nos a enxergá-lo (a) em desdobramentos espirituais, que é uma das fortes influências do escritor. Esta doutrina, da qual Kardec bem sintetizou sem “mistérios nem teorias secretas”, não obstante, faz jus, também, à obra de Porto: Tudo que está nela escrito se mostra de fácil compreensão. Embora esteja construído ao molde, ou fôrma, de poemas, não é um livro feito em versos, no entanto, as frases que ali se expressam trazem consigo uma carga muito grande de emoção, crítica, ensinamento e, até, erotismo, e isso basta, por si, para que contemplemos a poesia transmitida através de metáforas. Outro fato curioso que eu poderia citar – e esta visão obtive após deglutir as páginas me vieram às mãos –, está relacionada ao contraste com que o autor explicitou o todo da obra, ao tempo que ela se constrói ao jugo de um essência espiritualizada, a encenação carnal também se faz presente, e isto se deve, em suma, talvez, porque Porto não é um “autor-defunto”, muito menos um “defunto-autor”, como diria Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Wilton é, pois, um autor em carne, e a carne, embora necessite da energia espiritual para se manter, segundo ainda a doutrina espírita, ainda é propriedade da matéria, portanto, intimamente com ela relacionada.
O erotismo, anteriormente citado, é, sim, uma faceta da qual, ainda, não havia presenciado na escrita do autor, e mesmo da forma em que está não se distancia, portanto, de uma cultura contemporânea, que é carnal, e cômica, típica daqueles que, de forma experiente e sábia, transformam a vida numa eterna brincadeira:

(...)
Princesa do meu apego,
Sonhos tantos, desalinhados;
Podes fazer-me teu mamulengo,
Teu mais ardente escravizado.
Tu só não podes minha quenga
Dizer que nego fogo, armado.

Esta forma de expressão, que alguns julgariam ofensiva à moralidade, outros como puro fato que não se pode esconder porque a vida, tal qual é, tal qual deve ser divulgada, se vista bem de perto, sem muito esforço, exatamente neste trecho do texto “Se me fizeres um dengo”, faz conexão com vários dos versos de Gregório de Matos. Este mesmo pensamento é reforçado se acaso lermos, agora, com mais atenção, a primeira estrofe do mesmo título:

Morena de olhos negros,
Cabelos longos, cuidados;
Se me fizeres um dengo,
Eu serei teu namorado.
E sempre que eu for só prego,
Quero-o no teu quarto enfiado.

Não nos espantemos!, esta veia de duplo sentido está na obra de muitos escritores, nós, inocentes, que não enxergamos; vejamos, pois, o grande Camões, que um dia inferiu, usando-se da sonoridade das palavras para expressar outro sentido, que parece escondido no verso: “Alma minha gentil que te partiste”; leiam e releiam, em voz alta, várias vezes, as duas primeiras palavras, tão-logo encontrarão o sentido expresso. Não, não tem nada a ver? Verdade! Também concordo! E o que mesmo em arte tem a ver? Arte é interpretação, e a interpretação é polivalente, é diversificada e pode angariar muitos sentidos. Talvez o “quarto” de Porto seja, enfim, mesmo um “quarto” para muitos, e continue sendo para outros tantos puros de alma, ou, antes, inocentes da vida. Convido-os, então, a dar sentido ao verbo “armado”, talvez o encontrem tão destoante quanto “alma minha”, não é verdade?, será um sentido incomum e conseguirão mascarar a verdade, já que antes de tudo reina o falso moralismo.
Saiamos um pouco deste polêmico tema, afinal de contas, Wilton Porto, diferente de Gregório, não quis explorá-lo explicitamente, deixando para o leitor suas próprias conclusões.
Por ser uma obra bastante diversificada, às vezes pode-se confundi-la com repente, ou, antes, cordel; porém, um cordel de linha mais apurada no que tange à forma de se expressar, que se vai sem prolixidade e com elegancia, numa veia madura... Enfim, como dito acima, transitória:

Suicídio

Quem vê a claridade da vida
No pulso cortado por uma navalha
Não entende que ao tirar a própria vida
Só sacrifica o desespero que pelo corpo se espalha.
(...)

Obra polêmica. Adentra no campo da crítica social e política, aludindo, em “Voto” cuja voz poética demonstra nada mais que indignação quanto às desigualdades sociais, as mazelas, e ignorância, provocadas pelas forças oligárquicas...

Sem pão e sem rapadura
A casa às escuras
Apoiar a candidatura
Daquele que lhe der mais.

“Nenhum faz nada mesmo!
Que adianta se o velho ou novo!
A vida continuará ao esmo,
Pois ainda é besta o povo:
Vota-se em sobrenome: Silva ou Moraes”.

É um livreto ideologicamente maduro, de rápida leitura, mas de longa reflexão.

Parnaíba, nove de agosto de 2010.

2 comentários:

  1. Amigo, Elmar, belíssima peça de Braga Tepi. Estive presente no momento em que você tomava posse na APL e recebia o troféu; registrei o acontecido. Sempre que ponho no meu site, um texto seu, uso a sua foto com este troféu. Quanto ao comentário do Daniel Ciarlini, sobre "O Tom do dó da dor" de autoria do poeta José Wilton, nota-se o domínio do jovem comentarista ao interpretar e analisar o rico texto do vate. Abraços, Rita de Cássia.

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  2. Profa. Rita,
    Não preciso dizer que fico lisonjeado em a professora postar textos meus em seus blogs, e ainda mais usando a bela estatueta do Braga Tepi, que me foi ofertada pelo meu irmão César.
    O Daniel prestou uma bela e merecida homenagem ao nosso amigo poeta Wilton Porto.

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