segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


TRÁGICA CASTIDADE

Elmar Carvalho

Lindalva Lima, após concluir o curso de normalista voltara ao seu pago natal, para lecionar no antigo ginásio. Era filha de Epaminondas Lima, o maior comerciante de Estanhado, de cujo município era prefeito pela terceira vez. A moça fazia jus ao nome: linda e alva, de cabelos louros e olhos azuis. Era considerada a mais bela moça do lugar. Alta e esbelta, caminhava como se desfilasse, com a elegância de uma quase etérea princesa. Além de bela, era delicada e simpática, e era, sem dúvida, a mais cobiçada jovem da cidade, tanto pelos seus dotes físicos e espirituais, como pelo invejável cabedal de seu pai, que além de político e próspero comerciante, era o mais rico fazendeiro da região, tratado como coronel, uma vez que comprara patente da guarda nacional.

Em sua ida diária para o colégio, passava pela casa de Gervásio, um louco manso, que, quando estava melhor, era quase lúcido. Podia ser considerado, nessas ocasiões, como um fronteiriço entre a demência e a sanidade. Invariavelmente, Lindalva lhe dava bom dia e lhe atirava o seu mais lindo e simpático sorriso. Gervásio a olhava amorosamente, enlevado, quase como se vislumbrasse uma deusa inalcançável, que mal pisasse a concretude dura da terra. Ela logo lhe percebeu os olhares amorosos, e não pode deixar de se regozijar com o sentimento que despertara. Um pouco por brincadeira um pouco para alimentar o fogo da paixão que ardia em Gervásio, começou a tratá-lo como “meu noivo”. Em sua debilidade mental, em sua inocência de menino grande, ele começou a acreditar que de fato ela era sua noiva, e comentava com as pessoas sobre isso, sem notar os sorrisos de zombaria e incredulidade do interlocutor. Passou a considerá-la sua noiva, e a chamá-la como tal.

Logo a notícia se espalhou na cidade; Lindalva noivara de verdade. O felizardo era o doutor Manoel Torres, médico recém chegado a Estanhado. Passeavam de mãos dadas, na praça central. Estavam sempre juntos, a dançar nas festas ou aos beijos num dos bancos do jardim público. Não tardou muito, e alguém contou a Gervásio, que “sua noiva” noivara de fato com o médico solteiro, que acabara de vir trabalhar no município. Gervásio ouviu atônito, com os olhos esbugalhados, sem querer acreditar, gritando, por várias vezes, que não, não e não. Depois, como adquirindo subitamente a lucidez começou a chorar copiosamente, sacudido por fortes e sentidos soluços. Foi uma cena pungente, patética, que cortou o coração do jovem brincalhão que lhe dera a notícia. Nos dias seguintes, o louco notou que a moça agora o tratava de forma diferente. Mal o cumprimentava. Já não lhe sorria e nem o chamava de noivo. Quase não o olhava. Já não lhe acenava, a sacudir os graciosos dedinhos. Gervásio sofreu em silêncio. Nunca mais sorriu e pouco era visto na rua. Vivia trancado em seu quarto, imerso em mutismo e solidão. A mãe lhe notou a profunda tristeza. Dizia que o filho estava com uma “mofina”, talvez vítima de mau olhado ou quebranto. Chamou uma rezadeira afamada, que não conseguiu lhe debelar a imensa tristeza, hoje chamada de depressão. Quanto mais o dia do casamento de Lindalva se aproximava, mais Gervásio se recolhia e entristecia. Não comia, não bebia e definhava assustadoramente. Parecia desejar morrer.

Na véspera do casamento, num impulso trágico, vítima de sua insanidade e depressão, Gervásio foi visto mexendo na caixa de ferramentas de seu pai, que era o mais prestigiado barbeiro da cidade. Sua mãe notou que ele levava algo nas mãos. De repente, ela ouviu um grito lancinante de dor, como o uivo de um animal mortalmente ferido. Viu a braguilha do filho toda manchada de sangue. Logo viu caído no chão o membro sexual dele, como um trapo inútil. Ouviu o louco dizer que se não fora de Lindalva, não seria de mais ninguém. Levado às pressas para o hospital, o médico Manuel Torres conseguiu estancar-lhe o sangue, e salvar-lhe a vida. Somente depois, soube que fora o motivo daquela trágica castidade, que o pobre se impusera, como expiação de uma culpa que não tinha. Gervásio morreu solteirão, até porque não tinha a indispensável ferramenta para consumar um casamento. E ainda, de quebra, ficou com o pejorativo apelido de “sem penca”, com que a irreverência impiedosa dos moleques lhe mimosearam.

Um comentário:

  1. Caro poeta,
    Este conto foi, a meu ver, o melhor de todos. Cheguei a pensar que Gervásio cometeria um assassinato, mas, de repente, o trágico tornou-se cômico com o apelido de "sem penca". Dei boas risadas!!

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