sexta-feira, 13 de maio de 2011

"O POETA É UM FINGIDOR?"

Fernando Pessoa

Homero

DANIEL C. B. CIARLINI

A resposta é simples: Não! Desde a sua mais remota origem, embebida na Grécia Antiga, nunca o foi, e se hoje o é, não se deve a uma tradição grandiosa, que é tão arcaica e bela quanto a origem da música, mas de uma corruptela ou má interpretação que contraria os famosos versos de Pessoa, em “autopsicografia”: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente [...]”. A leitura atenta desses versos, e a interpretação sintáxica da estrofe, são capazes de constatar que a sentença inicial faz uso do recurso de alta repercussão estrófica, para, em seguida, ser anulada pelas sextilhas que se lhe seguem em voz contrária, antítese versal. O resultado, pois, é de um trecho caracterizado por uma antinomia lógica que propõe, no campo do raciocínio, a dialética em seu sentido puro, investida de um jogo de opostos que desvencilha a proposição de verdadeira para falsa e de falsa para verdadeira, num movimento contínuo que, ao final, compreende a resolução impressa pelo português: O poeta, como fingidor, desdiz-se ao “fingir que é dor a dor que deveras sente”.


Sabedor dos estudos concernentes à filosofia, o autor de “Mensagem” empreendeu contribuição incitativa aos estudos de Petrus, Hispanus e Paulus Venetus, que se debruçaram, na Idade Média, em volta da estrutura lógica da conhecida, e observada desde a Antiguidade, Antinomia Cretense: “Um cretense diz: ‘Todos os cretenses são mentirosos’”.      

Vejamos o que nos traz até aqui: O fingimento poético, hoje tão falado e denunciado por uma série de escritores, críticos e entusiastas das letras é, na realidade, uma grande ilusão, tanto no aspecto criativo quanto sentimental. Na esfera dos sentimentos, que é a mais comum no ambiente da poesia, fica impossível produzir algo sem o conhecimento de causa – o poeta só exprime o que a vida lhe consentiu, eis uma regra fundamental, óbvia... E diferente do que muitos julgam, o poeta não nasce poeta, ele se faz, a vida o faz, os experimentos, os tormentos, as desilusões; dizer que o poeta nasce feito é, não quiçá, uma idealização romântica do século XIX, hoje obsoleta e desprestigiada... Sendo esta arte um ofício antigo, não bastavam os fatos da vida para que o poeta fosse poeta, nem tampouco que elencasse ideias concretas e palavras aleatoriamente, como bem o faz uma certa corrente de seguidores da vanguarda, antes disso era necessário obedecer e atuar dentro de uma regra, sempre, em sequência, aperfeiçoando-a, como fora durante toda antiguidade clássica, problemática esta contrária ao que muitos pensam, e nunca vencida pelo tempo: “[...] os problemas da literatura hoje discutidos por todos possuem uma relação de continuidade objetiva com as questões estéticas colocadas em sua época pelos gregos e pelos renascentistas [...]”, afirmou, corroborando com o nosso pensamento, uma das mais celebradas personalidades da teoria e crítica literárias do século XX, o húngaro György Lukács. O motivo da obediência à regra traz no mais remoto âmago da questão, a sensibilização da forma que, como tal, “determina o que a coisa é e como ela vai desenvolver-se”, afirmou o filósofo Carlos Roberto Cirne-Lima, portanto, “As formas existem desde sempre, pois são elas as forças ordenadoras da ordem do cosmos. Antes do cosmos existir, portanto, elas já existem”, concluiu.

Se o poeta não finge, o leitor muito menos, afinal, não se sente o que se expressa em arte, mas o que já está impresso no próprio interior, na elementar carga emotiva que cada ser possui; esta, sim, é a verdadeira poesia, “A poesia está em nós”, já dizia Massaud Moisés, e por “está em nós” é que “a imagem poética não está sujeita a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: com a explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa de ecos e já não vemos em que profundezas esses ecos vão repercutir e morrer”, na concepção de Gaston Bachelard. O leitor, ou observador, não sente os sentimentos do artista, o que ocorre é que através da arte ele os contempla para, então, sentir os seus – o grau de sensibilidade é ditado pela intensidade das experiências: “[...] la poesía no comunica lo que se siente, sino la contemplación de lo que se siente”, nos reforça o crítico espanhol Carlos Bousoño.

No berço da poesia a concepção de arte tinha um sentido bastante diferente do que entendemos hoje. A começar, todo artista era, de fato, e verdadeiramente, um artífice, no sentido profissional da palavra, em favor de uma realidade em um dado momento – tecelão das letras. E esta importância não era vã: A poesia exercia um papel fundamental na sociedade grega de tal maneira que através dela os cidadãos colhiam os prazeres, as crenças e os conhecimentos do mundo, papel este bem desempenhado quando se avalia que sua manifestação antecede, e serve de alicerce, tanto à filosofia quanto ao círculo, hoje frondoso, das ciências.

A poesia era mais que um repositório de razão e ensino, através de seu néctar os gregos sintetizavam a seriedade, a honestidade e as ponderações de vida. Expressar, portanto, o que exatamente se sentia era mais que uma descrição, era um subsídio para o estudo do próprio comportamento humano e sua respectiva moral. Dito isto, percebemos que para alcançar seus ideais, a poesia revestia-se de objetivos, e estes se preocupavam, naturalmente, com a verdade, um dos aspectos sociais, além da própria cultura, que unificou, neste sentido, tantas cidades-estado politicamente distintas.

O poeta, assim sendo, se forma e o é quando transcende as barreiras da parca visão e se faz, por sua própria natureza, crítico da sociedade que o assiste, quando não atemporal. Ele sente as dores do mundo e vislumbra os acontecimentos do amanhã, sempre carregado de um espírito denunciador, nostálgico, e, não quiçá, absurdo, como diria Camus, pois é nele, e só nele, que o poeta, o prosador, o artista..., enfim, consegue contemplar o novo, desfazendo-se da mesmice; a receita é clara e denunciadora: Para entender o mundo e a arte (ler “poesia” como sinônima), que é uma fagulha transgredida do pensamento, se é necessário ter “Ouvidos novos para uma música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência nova para verdades que até hoje permaneceram mudas”, já dizia Nietzsche; que o diga Rimbaud: “[...] é preciso ser vidente, se fazer vidente [...] O Poeta se faz vidente por meio de um longo e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências”, estas são umas das poucas características que traduzem o “ser poeta” vidente na acepção rimbaudiana do vocábulo, de cujo limite está descrever ao invés de desvendar soluções aos fatos do futuro, “o poeta não é obrigado a colocar nas mãos do leitor a solução histórica futura dos conflitos que ele descreve”, sabiamente pontuou, encerrando esta sentença, o filósofo e crítico literário marxista Frederich Engels.

Retomando o quesito anterior, que põe em discussão a confiabilidade historicista da poesia, podemos citar um clássico exemplo: Troia, descrita há três milênios na épica “Ilíada” de Homero, até o final do século XIX era tida como cidade mitológica, crença essa vencida quando escavações dirigidas pelo alemão Heinrich Schiliemann comprovaram a sua existência e a de diversos outros sítios arqueológicos micênicos no litoral da antiga Ásia Menor, hoje Turquia, confirmando, em defesa do antigo poeta, a veracidade das narrativas. Este fato, por si, demonstra, mais uma vez, na poesia, seu registro e caráter autênticos...

Como se pode ver, a poesia, além de preocupada com os fatos, crenças, sentimentos e sociedade, não excluía, de igual maneira, as abstrações: O artista era livre para sonhar e tecer fios de uma para-realidade compreendida através dos mitos que foram, durante muitos séculos, os elementos antecessores da ciência. E é neste ponto que, para conhecimento de sociedades antigas, ela difere da própria história, tendo o filósofo Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.), assim, se expressado: “[...] uma descreve o que aconteceu, outra o que poderia ter acontecido. Por conseguinte, a poesia é algo de mais filosófico e sério que a história; pois a poesia fala-nos daquilo que é universal e a história daquilo que é particular”. A poesia, neste caso, não só está adiante de uma narrativa neutra e amorfa, mas traduz, através dos elementos de vivência, princípios, tendências e conhecimento universal, a verdade a partir de um prisma lógico e, ao mesmo tempo, artístico, por isso mais humano, mais real, em verdade ao sentido filosófico, como o apontado pela ideia aristotélica, e diferente a uma verdade contemporânea, ligada, apenas, a particularidades e nada mais. A história já sabedora disto, hoje, revela-se com uma nova tendência, não excluindo, pois, em seus estudos, a literatura como peça fundamental para a montagem da maquete do entendimento historiográfico.

Se o poeta agora, depois de tantos anos, décadas, séculos, milênios..., se tornou um fingidor, não foi por falta de opção, mas de apuramento...
Parnaíba, 13 de janeiro de 2011.

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