segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O MILAGRE DA VIDA

CUNHA E SILVA FILHO

Uma vez a saudosa professora da UFRJ Gilda Salem que, num semestre nos anos noventa, durante o período do meu mestrado, deu um curso sobre a crônica de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), no meio de uma de suas aulas, deixou escapar esta confissão, que tento reproduzir com minhas palavras e talvez misturando palavras delas em tom epifânico com imaginação rememorativa: “Que bom que estejamos vivos, é uma bênção. Sentir que temos algo a fazer, ver que a vida que pulsa dentro e fora de nós não deixa de ser um milagre”.
Suas palavras ressoam na minha retina e me estimulam a dar realmente peso às palavras da brilhante professora, ensaísta e crítica literária. Gilda era de origem judia. Tinha a tez clara e os cabelos castanhos claros também. Era séria, mas também acessível quando sentia que o aluno era responsável e aplicado. Fizera, se não me engano Letras, português-francês, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Estudara ainda na Universidade de Brasília nos tempos sombrios da ditadura. Militar. Tinha um visão aberta e profunda da existência e de um pensamento filosófico bem afinado com a obra de Walter Benjamin (1892-1940) que, de resto, constava, na bibliografia do curso sobre Drummond, um dos poetas de sua estimação, como um dos autores-chaves do curso ministrado. Com ela, fizera mais um curso, desta vez sobre a poesia drummondiana.
Por falar na bibliografia que nos recomendou para o primeiro dos cursos, a maioria dos autores era de procedência judia, o que fez com que um dos meus colegas do curso, o Francisco Igreja, já falecido, chegasse até a ser-lhe um tanto irônico, ao comentar que a bibliografia oferecida pela professora tinha excessos de autores judeus. Gilda não lhe respondeu à ironia. Mas, Igreja era do tipo que dizia o que pensava e ainda, em outra aula, saiu com esta tirada mordaz: “Drummond não passa de um resmungão.” Nenhum colega do grupo que compunha o curso lhe deu atenção. Soube, mais tarde, através da revista Lavra, de Brasília, que o Igreja era poeta, professor, ensaísta e dicionarista. Com ele, na universidade, troquei poucas palavras. Nascera em Portugal e, antes de falecer precocemente, aos 43 anos, lecionava na Universidade Estácio de Sá.
Em Brasília, Gilda, a par de certo envolvimento político contra o regime militar, que lhe custou, se não me engano, a perda de uma gravidez, foi aluna de literatura brasileira ou portuguesa (não sei ao certo) dileta do grande ensaísta e poeta Cassiano Nunes (1921-2007). Foi ela que me pôs em contato com o Cassiano na época em que já estava iniciando o meu doutorado a respeito da obra de João Antônio ( 1937-1996). Gilda era, neste aspecto, muito obsequiosa e me forneceu o endereço do Cassiano, que, por sinal, tinha sido muito amigo de João Antônio, e lhe dedicara pelo menos três excelentes estudos que muito me auxiliaram na preparação de parte da minha tese. Cassiano, a quem escrevi e enviei um exemplar do meu estudo da saudade em Da Costa e Silva (1885-1950), respondeu-me gentilmente, falou sobre a Gilda e a satisfação de ter sido seu mestre.
Além disso, Cassiano me enviou livros autografados de sua produção poética e de um texto chamado Carta da Prisão (2000). Nele o ensaísta comenta magistralmente um original de um texto que lhe chegou às mãos e que o impressionou pelo inusitado do seu conteúdo e até mesmo pela sua expressão literária. O autor do texto, Manuel de Maria, é um presidiário, sem preparo formal no campo das Letras, mas com talento suficiente para narrar circunstâncias relacionadas à vida prisional e a formas de como resolver alguns problemas afetos a esse tipo de isolamento. A carta é dirigida a um amigo.
No Rio de Janeiro, Gilda foi aluna de literatura francesa do ensaísta e dicionarista Roberto Alvim Correia (1901-1983), autor do excelente Dicionário francês-português e português-francês, publicado pela antiga FENAME, MEC, do qual tenho um exemplar comprado no Rio, em 1964. Ela se deliciava com uma maneira de Alvim Correia desenvolver suas aulas. Segundo ela, Alvim Correia gostava de ler longos textos de autores franceses e de comentar sobre eles.
O leitor vê como a vida se faz de liames que se conectam uns nos outros e nos fazem descobrir que o mundo está todo interligado, pois não é que muitos anos atrás, antes mesmo de iniciar a universidade, eu já tinha lido um livrinho de viagens. Sabem de quem? De Cassiano Nunes. O título: A sedução da Europa, da Editora Saraiva. Perdi o exemplar não sei onde, mas dele me ficou uma frase que lança alguma luz de mistura com ironia quando declara dirigindo-se ao leitor: “O abracadraba, a palavra mágica, é personalidade”. Isso porque se costuma dizer que as viagens são metas que se devem cumprir durante a vida. Elas alargam nossos conhecimentos de outros povos e culturas. Porém, para o ensaísta santista Cassiano Nunes, que teve tantas experiências, sobretudo docentes em universidades de projeção na Europa e nos Estados Unidos, o que talvez a citação queira significar, em relação às viagens e ao conhecimento do mundo, nada tem a ver de relevo ou de mais vantajoso a quem não conheceu plagas estrangeiras . O que importa é a personalidade do homem, suas virtudes, sua integridade, sua determinação de aprofundar – mesmo sem viagens – um conhecimento mais visceral dos homens e da existência.
Ao Piauí Cassiano Nunes esteve ligado graças ao conhecimento e amizade que teve com o crítico e ensaísta Manoel Paulo Nunes que, por coincidência priva de minha amizade.
Gilda tinha mesmo motivos de se espantar com o milagre da vida, com essa concessão temporária de existência material propiciada aos homens da Terra que só pode mesmo ter sido obra de um Ser superior.
É mesmo um milagre estarmos vivos, falando, andando, executando uma tarefa, simples ou menos simples. É um milagre podermos ver o que nos cerca, a paisagem próxima ou mais distante, a linha do horizonte encontrando-se com o mar. É um milagre da vida sentirmos a força da vida entrando pelos movimentos duplo da inspiração e respiração. Milagre por temos ainda o coração batendo, o sangue correndo nas veias, por sermos úteis e partilharmos, de uma forma ou outra, da existência com todos os seus grandes percalços, com todas as suas ciladas e, ao final, sairmos ilesos e podermos afirmar que “amanhã será outro dia”, que “o sol novamente se levantará” e que o ciclo da vida, embora tão pequeno, tão frágil, por vezes tão atordoado pelo atropelo sobretudo dos dias atuais, valerá a pena ser percorrido.

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