quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Somos eternos



CUNHA E SILVA FILHO

Ontem, foi mais um Dia de Finados. Na TV são exibidas as costumeiras reportagens anuais referentes ao feriado. Sempre associo esse dia santo àquelas antiquíssimas e quase apagadas fitas que passavam em Teresina nos anos cinquenta contando o nascimento, a vida, morte e ressurreição de Cristo.
Crianças, adolescentes e adultos, todo mundo não perdia aquela fita, sempre por muito tempo repetida, até que, em outra fase da vida teresinense, com a vinda do Cinemascope, na grande tela surgiram os filmes coloridos que, se não tratavam como tema central a figura de Cristo, como o Manto Sagrado, de 1953, com Richard Burton e a bela Jeans Simmons sendo os atores principais, eram filmes que diziam respeito à existência de Cristo e mesmo serviam de argumento para recordá-Lo aproveitando algum motivo, no caso específico, o filme tinha como símbolo-objeto mais significativo o manto de Jesus que era o seu tema capital, a par de apresentar uma bela história de amor e conversão ao cristianismo vivida por Richard Burton (Marcellus Gallo), no papel de um tribuno romano responsável pela missão de, em Jerusalém, levar Cristo à crucificação por ordem do imperador Tibério e Jean Simmons (Diana), no papel uma jovem da aristocracia romana.
No dia da crucificação de Cristo, o manto deixado pelo Messias, fora disputado numa partida de jogo entre Marcellus e os soldados. Marcellus ganha a disputa. Ao tocar, porém, no manto, objeto sagrado, Marcellus sofre uma mudança interna para ele inexplicável que o fará ser visto pelos romanos como um doente mental.

O manto selará seu destino como pessoa humana, mudará seu pensamento religioso e, finalmente, o levará à conversão espiritual, abraçando o cristianismo após sofrer pressões do imperador Calígula.
Outros dois personagens com os quais Marcellus cruzará no filme é seu escravo Demétrio, interpretado por Victor Mature, comprado em leilão e disputado com Calígula, o sucessor do imperador Tibério. Essa disputa pele forte escravo Demetrio valeu a Marcellus a inimizade de Calígula.
Demétrio, que havia se convertido a Cristo, se torna hostil a Marcellus, afirmando-lhe que não mais o obedeceria nem seria mais seu escravo. Demétrio fica com o manto e some.
Marcellus, chamado à corte imperial em Roma, novamente recebe a missão de destruir o manto de Jesus, tido por um adivinho palaciano como um objeto enfeitiçado. É nesse retorno a Jerusalém que Marcellus reencontra o antigo escravo Demétrio, tornando-se-lhe amigo. Demétrio o leva a conhecer Pedro, apóstolo de Cristo. Marcellus, logo reconhece o valor moral, a bondade e fé do o apóstolo Pedro, interpretado por Michael Rennie.
Convidado a assistir a uma pregação em local desconhecido dos soldados romano, Marcellus percebe o quão diferente é ser cristão. Passa a ter uma nova concepção dos ensinamentos e dos propósitos de Cristo crucificado. A cena em que Demétrio lhe diz que não deve temer tocar o manto traduz uma beleza indescritível. Marcellus toca no manto e o envolve em seu peito. Sente uma sensação de paz e tranquilidade. São os primeiros sinais de sua conversão.
Essa mudança de visão de vida e dos valores da existência Marcellus passará à sua amada Diana, que também se converterá. A trama do filme é assim o ato da conversão definitiva acompanhado de todos os sacrifícios e sofrimentos que esse gesto extremo de mudança espiritual desencadeia no jovem casal romano.
É um belo filme cuja história mostra ao espectador, no seu final, uma das mais comovidas e dramáticas cenas a que já assisti na tela, na qual Marcellus e sua amada, abdicando de todo o peso da paganismo, dos deuses de pedra, e dos antigos valores da cultura romana dos césares, de uma vida palaciana de conforto propiciado pela alta condição social do casal, saem do ambiente em que foram criados e desfilam , por entre os potentados , em direção ao sacrifício das suas vidas. Seu destino é a vida eterna, junto aos cristãos, subindo aos céus. A imagem final do casal apaixonado e convertido muito me lembra aquele outro final maravilhoso, pela sua densidade dramática e por toda uma simbologia, do filme Quo Vadis? baseado no romance do escritor polaco Henrik Sienkiewcz (1846-1916) com Robert Taylor e a beleza delicada de Débora Kerr, interpretando dois personagens, ela, Lygia, cristã, ele, o general romano Marcus Vinicius. Os dois se apaixonam. Ele se converte e ambos, seguirão as lições de Cristo.A cena se passa na Roma sob o império do sanguinário Nero. Naquela cena fina, o casal apaixonado, sendo o foco da câmera, vai caminhando até certamente encontrar as alturas celestiais, no decisiva caminho da morte e da salvação.
Os dois exemplos de filmes se misturam à reportagem na TV sobre finados e, de alguma forma, despertam as lembranças de nossos entes queridos, de nosso amigos e conhecidos que, durante um tempo, conviveram conosco. Imagens de rostos queridos, de vozes quase apagadas, de gestos, de ações se entrelaçam diante de nosso olhos conscientes, cada dia que passa, da efêmera temporalidade na Terra.
Bonita e comovente foi aquela declaração de um anônimo que, diante da câmera da TV, comentando sobre o Dia de Finados, afirmou com muito elevada espontaneidade e sentido perfeito da data e do lugar que estava visitando: - “Este lugar merece só respeito, muito respeito.”
Não há como desviar nossa atenção e impregnar o pensamento das “asas de dor” dos que perdemos no sorvedouro da vida. Lá estão eles – essa gente querida que se foi contra nossa vontade. As imagens estão lá longe, na capital teresinense, em Amarante, em Salvador, no Rio de Janeiro e quem sabe, em outros lugares que não chegaram ao nosso conhecimento. São parentes, amigos, conhecidos. São pessoas ilustres, comuns, são ídolos. O lamento de finados se estende a um conjunto de seres que já se foram em épocas diversas, em lugares diferentes, em nossa pátria ou na pátria alheia. Ele assume o tamanho da humanidade, que amamos de formas variadas. Todos esses seres estão “dormindo profundamente” como no poema de Bandeira tantas vezes citado em razão do tema do “ubi sunt?”
Eis o Dia de Finados, motivo de veneração, de respeito, de saudade e de lembranças que aprendemos a assimilar, sem aquela dor aguda da perda recente. Se as perdas são terrenas, os ganhos são os das grandes recordações, dos fios da memória, das imagens sublimes que nos acompanharão para sempre pela vida afora. Não há desaparecimento absoluto. Os entes queridos que guardamos fortemente na memória fazem parte viva de nosso ser e da nossa temporalidade. Não há como perdê-los de vista. Estão presentes, conosco.

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