terça-feira, 13 de março de 2012

VOLTAS QUE A VIDA NOS DÁ



JONAS FONTENELE
Advogado e professor

Naquele dia cheguei mais cedo ao escritório e na sala de espera vi um senhor de cabelos brancos, barba mal feita, olhos tristes fitando o chão, semblante fechado, via-se claramente que a vida não havia lhe dado moleza. Cumprimentei todos e adentrei no meu gabinete, não sem antes notar, pelo bom dia daquele senhor, uma certa familiariedade naquela voz, mas logo pensei que eu estava a imaginar coisas, pois não me recordava daquela pessoa.
Logo que arrumei as coisas na mesa, a secretária anunciou o nome daquele senhor que estava me esperando: BRANDÃO. Naquele momento me veio a mente o BRANDÃO que se formara em direito comigo, jovem, alegre, funcionário graduado do Senado Federal, salário alto, logo que se formara, montou uma banca de advocacia e como bom profissional, estava ganhando bem, lembrei de que ele havia me convidado para uma festa em sua casa em um bairro nobre da Capital Federal, onde se via claramente que era bem sucedido financeiramente, tendo ele me contado que adquirira vários imóveis como investimento e chegou até a me convidar a fazer parte de sua banca, o que gentilmente declinei. Não, não podia ser o BRANDÃO, devia ser apenas coincidência de nomes, que besteira a minha chegar a pensar que aquele senhor lá fora podia ser o BRANDÃO, existem muitos BRANDÃO por aí e assim encerrei aquele pensamento breve e pedi que a secretária fizesse com que aquele BRANDÃO viesse até a minha sala.
Quando a porta se abriu e aquele senhor de barba comprida e mal feita me fitou e disse: E AÍ MEU CAMARADA?, cumprimento dos tempos da faculdade que não deixava dúvida alguma de quem se tratava, quase que não consigo me levantar para abraçá-lo, em face da surpresa junto com a certeza de que a vida havia lhe castigado com severidade.
Não tive coragem de lhe perguntar como a vida lhe jogara naquela situação, deixei que ele mesmo começasse a narrar suas desventuras. Para minha surpresa me disse que estava ali para me pedir, como ele mesmo disse: “Estou aqui para lhe pedir, pedir, pedir e pedir, você é a minha única esperança”.
Queria que eu advogasse para seu filho, que estava sendo acusado de ter matado duas pessoas, me falou que sua situação financeira era tão precária que não trouxera cópia do processo porque não dispunha de numerário para tirar as cópias necessária para que eu pudesse fazer uma análise do caso. Nem precisava dizer isso, suas roupas, sua aparência pessoal denotavam logo que sua situação financeira era a mais precária possível.
Lágrimas nos olhos, me narrou que ganhara muito dinheiro, fato esse que lhe trouxe inúmeros amigos, festas e tudo que advém quando se tem o vil metal. Tinha ele dois garotos, que se não eram gêmeos, eram muito parecidos um com o outro, chegando a confundir quem era quem, mas não eram só parecidos esteticamente falando, os dois também eram muito amigos entre si e para piorar a situação o nome dos dois era igual, mudando apenas a origem do nome, um se chamava PAULO e outro PABLO, sendo PABLO um ano mais novo que PAULO.
PABLO, talvez entediado da vida, ou sabe-se lá qual a razão, passou a sair com uma “galera” mais pesada do bairro, não aceitando conselhos do PAULO, já que BRANDÃO não sabia dessa história, pois a vida que levava, pouco lhe permitia saber da vida dos filhos. A convivência de PABLO com a “galera” levou-o diretamente às drogas, primeiro as mais leves, para logo depois precisar fazer alguns furtos do bolso do próprio pai, já que a mesada que ganhava (03 salários mínimos) já não dava para o sustento do vício, não demorando muito para estar seriamente endividado com o traficante da região de apelido bastante sugestivo de DEDO LEVE, apelido que ganhou pela facilidade que tinha em atirar em seus desafetos.
DEDO LEVE contava só com 16 anos, mas impunha respeito não só pela facilidade com que matava quem não lhe agradava, como pela crueldade que tratava suas vítimas antes do tiro fatal. Furar olhos, decepar órgãos genitais, amputar dedos e até mesmo empalamento faziam parte do rol de sofrimento que suas vítimas amargavam antes da morte. PABLO e consequentemente PAULO, sabiam perfeitamente desse ritual macabro imposto por DEDO LEVE, não só porque saía no jornal o encontro de corpos mutilados, sem que soubessem quem era autor de tamanha barbárie, como porque o próprio DEDO LEVE anunciava com antecedência quem iria passar pelo seu ritual, principalmente aqueles que lhe deviam e não lhe pagavam
PABLO não teve outra alternativa a não ser furtar o PUMA 1996 todo incrementado de seu pai, PUMA esse guardado em uma garagem específica, que BRANDÃO usava só quando estava com tempo sobrando, as vezes passavam seis meses sem que ele sequer fosse até a garagem onde o PUMA estava, e foi isso que encorajou PABLO, pois sabia que antes de seu pai dar falta do PUMA ele já teria saldado a dívida com DEDO LEVE e recuperado o PUMA e colocado ele de volta na garagem, pois o deu em garantia da dívida, coisa de 3.000,00 (três mil reais). O carro, pela conservação e toda incrementação valia em torno de 20.000,00 (vinte mil reais) mas BRANDÃO não o venderia por valor nenhum, pois era pra ele um jóia preciosa.
As coisas não saíram como planejadas, pois uma semana após o PUMA estar em posse de DEDO LEVE, - que mesmo sem habilitação, agora desfilava de PUMA devidamente de capota aberta para exibir não só DEDO LEVE como suas gatas, - BRANDÃO resolveu andar de PUMA, que logicamente não estava na garagem. Ora, raciocinou BRANDÃO se não havia sinais de arrombamento da garagem e sua jóia preciosa ali não estava, um dos meninos o pegara, e só podia ter sido o PAULO, que já contava com 18 anos e tinha habilitação. PAULO não sabia que PABLO entregara o PUMA a DEDO LEVE, mas o vira saindo dirigindo o PUMA e assim relatou ao seu pai. PABLO pego de surpresa com a notícia que o irmão o vira saindo com o carro, não teve outra alternativa a não ser confessar ao pai, que saira com o carro, para impressionar umas gatas, mas depois que estacionara o veiculo num shopping próximo, ao voltar verificou que o carro tinha sido furtado e ficara calado com medo do pai, essa foi a história contada a BRANDÃO, que imediatamente foi à Delegacia mais próxima para registrar a ocorrência de furto do veículo que inclusive era objeto de cobiça de alguns policiais – delegado inclusive, amigos que foram de BRANDÃO na faculdade.
No mesmo dia do registro da ocorrência, o delegado JEFERSON amigo de BRANDÃO, após o expediente foi tomar uma cerveja no barzinho da moda da região e qual não foi sua surpresa ao ver chegando no bar o PUMA mais do que conhecido, com um rapazote e uma loura oxigenada a bordo. Não deu outra, DEDO LEVE foi levado à Delegacia para explicar como estava de posse do possante de BRANDÃO. Melhor para DEDO LEVE assumir que furtara o danado do que dizer que ele o havia recebido em garantia de dívida de droga. Assim, foi recolhido por 03 meses, já que ainda era menor de idade. Alívio para BRANDÃO que teve seu veículo de volta, desespero de PABLO, que sabia que a ira de DEDO LEVE cairia sobre sua pessoa.
PABLO não dormia direito, não comia e até mesmo a droga ficou afastada, tamanho o desespero ao saber que enfrentaria DEDO LEVE logo que ele saísse da prisão. Para PABLO três meses passaram como se fosse três dias, logo a noticia de DEDO LEVE nas ruas, corria solta. Então para alívio de PABLO veio a informação por um amigo comum, que ele ficasse tranqüilo, pois DEDO LEVE mandara lhe dizer que havia entendido que aquela era a única saída de PABLO, e que tudo estava como antes, nada mudara, e que na quarta próxima o procurasse em seu barraco, pois iria receber uma carregamento da “boa”, e era pra ele ir sem falta, pois iriam comemorar a liberdade de DEDO LEVE em alto estilo, era na realidade mais uma convocação que não admitia um não do que propriamente um convite.
PABLO ficou num misto de medo e alegria, alegria por ter recebido a notícia que DEDO LEVE entendera que sua única alternativa era dizer que o carro fora furtado e medo porque até então não sabia de um único perdão dado por DEDO LEVE, mas entendera o recado bem entendido, teria que ir, melhor ir, do que depois enfrentar a ira de DEDO LEVE.
Quando PABLO adentrou no barraco de DEDO LEVE na quarta-feira, entendeu perfeitamente o que iria lhe acontecer quando viu DEDO LEVE juntamente com mais três traficantes perigosos da região, e a senha que ele não gostaria de ter ouvido nunca: PERDEU PLAYBOY. Foi encontrado cinco dias após, enrolado em um cobertor, sem língua, sem dedos, sem olhos e metade de um cabo de vassoura enterrado em seu ânus.
BRANDÃO quando confrontado com a dura da realidade da morte do filho, entrou em crise total, chegando mesmo a ser internado como alienado mental, o casamento se desfez, indo aí metade do seu patrimônio, outra parte se desfez em tratamentos para a alma mente e corpo, o escritório de advocacia foi fechado, sendo que vários clientes o processaram, ganhando indenizações pelo fato dele simplesmente ter abandonado os processos, reduzindo bastante o seu patrimônio, que foi se esvaindo de forma gradativa, até chegar o momento em ter que vender o último patrimônio que era o seu apartamento, tendo que ir morar na garagem da casa de um amigo que o socorreu nesse momento.
PAULO tudo sabia, nada falou nem mesmo para o pai. Sentia-se um pouco culpado também, podia ter impedido PABLO de ter ido ao barraco de DEDO LEVE, podia ter falado ao seu pai da dívida do irmão, do carro dado em garantia que lhe foi confessado por PABLO depois, da fama de DEDO LEVE, da dependência das drogas de PABLO, podia ter falado ao delegado JEFERSON que sabia sim quem era o autor da morte de seu irmão, mas nada disse, simplesmente disse que não tinha a menor idéia, pois já tinha uma certeza em sua mente: ele mesmo iria matar DEDO LEVE. Devia isso a PABLO e a ele mesmo. Sabia do risco caso falhasse na sua empreitada e sabia que mesmo que não falhasse, iria viver o resto da sua vida com a possibilidade de ser morto por um dos amigos de DEDO LEVE, mas nada importava agora, pois isso já estava decidido de forma inexorável. Até mesmo ter abandonado o pai quando da separação, tinha sido feito de forma calculada, sabia que se ficasse junto ao pai, talvez perdesse a coragem de fazer o que tinha que ser feito.
Após a separação dos pais, foi juntamente com sua mãe para UBERLÂNDIA em Minas Gerais, sair do foco dos acontecimentos. Havia visto ou ouvido em algum lugar que vingança é um prato que se deve degustar frio. Aproximou-se da bandidagem em UBERLÂNDIA, em face de ingressar também no mundo das drogas, adquiriu uma pistola .40, dezesseis tiros, arma que depois ficou sabendo foi furtada de um policial de Brasília, aprendeu a atirar, treinando dia após dias, até sentir segurança com o manuseio da danada, que era como chamava a pistola.
Um ano após a morte de PABLO, PAULO retornava à Brasília, ele e sua inseparável DANADA. Não foi sequer atrás do pai, já que foi para um barraco de um bandido devidamente recomendado pela malandragem de Uberlândia. Já se vestia e falava a linguagem do submundo, onde ficou sabendo detalhes de como DEDO LEVE matou seu irmão, soube também que PABLO mesmo depois de ter sido estuprado pelos quatro, implorou por tudo no mundo para não morrer.
Passado dois meses após a sua volta a Brasilia, leu no jornal que a Polícia Militar entrara em greve e que não estavam fazendo rondas enquanto não ganhassem um reajuste em seus salários. Isso acendeu uma luz em sua mente e pensou consigo mesmo: “DEDO LEVE sua hora está chegando”.
DEDO LEVE nem de longe imaginava que PAULO tinha traçado um plano para sua vida e a levava como sempre, muita droga, mulheres e sofrimento para quem o desafiava. Também ele comemorava o fato da Polícia se encontrar de greve, facilitava a sua vida, já fazia dois dias que a greve iniciara e ele dobrara o seu faturamento e para comemorar convidou um amigo e uma gata para irem ao seu barraco para cheirarem um pouco e de quebra um sexo a três.
A farra estava boa demais, dinheiro sobrando, droga da boa, gata bastante disponível atendendo aos dois, quando de repente falta luz na cidade. Probleminha de fácil resolução, pediu a gata que se vestisse e fosse à venda comprar um maço de velas para poder continuar a farra. Ele e o amigo é que não iam sair da cama para ir comprar nada, pra que servem as gatas??? Assim, Márcia se levanta e vai até a venda, na volta não entendeu nada quando ouviu a voz grave de um homem que não era nem de DEDO LEVE e nem do seu amigo dizer antes dos inúmeros disparos que se seguiram: PERDEU TRAFICANTE DE MERDA.
PAULO que pensava estar sozinho passou por Márcia, arma baixa, capuz na cabeça, e mesmo no escuro ainda fitou os olhos daquela que depois o reconheceria na delegacia como o autor dos tiros que ceifaram a vida dos dois amantes dela.
Essa a história de BRANDÃO que ali estava me pedindo para fazer a defesa de seu filho, único filho, já que o outro fora fuzilado por DEDO LEVE, dizendo-me que sequer tinha dinheiro para tirar cópia do processo para que eu fizesse uma análise.
Ali tive a certeza que a vida por vezes dá voltas que ninguém imagina.

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