10 de maio Diário Incontínuo
JOSÉ DE RIBAMAR FREITAS, O ÚLTIMO HELENO (PARTE 2)
Elmar Carvalho
Não é meu propósito esmiuçar aqui o seu curriculum
vitae, declinar os cargos que exerceu, os concursos em que logrou
aprovação, as obras que deu à estampa. Deixo esse mister aos
dicionaristas e biógrafos. Todavia, algo devo dizer a esse respeito.
Foi diretor de secretaria da Justiça Federal, durante largos anos,
onde serviu com muito zelo e proficiência. Escreveu um trabalho
sobre a história da Justiça Federal no Piauí, e outro sobre o
rumoroso e dramático caso do assassinato do juiz federal Lucrécio
Dantas Avelino, filho do também juiz federal Demóstenes Dantas
Avelino. Publicou um notável livro de contos, concebidos na linha da
tradição, com enredo bem delineado, e linha cronológica definida,
com começo, meio e fim devidamente ordenados. Alguns desses textos
tinham como pano de fundo episódios ou ambientação histórica.
Professor da Faculdade Federal de Direito do Piauí,
passou a integrar o quadro magisterial da Universidade Federal do
Piauí, com a criação desta, no início da década de 70. Foi chefe
do Departamento de Ciências Jurídicas e diretor do Centro de
Ciências Humanas e Letras dessa universidade. Tinha mestrado.
Aprovado em concurso, foi nomeado procurador da Fazenda Nacional, mas
declinou de tomar posse nesse cargo. Pertenceu ao Instituto dos
Advogados do Piauí. Foi um dos fundadores da Academia Piauiense de
Letras Jurídicas.
Escreveu ensaios e discursos sobre eminentes escritores,
intelectuais, oradores e juristas, tais como padre Antônio Vieira,
João Francisco Lisboa, Jacques Maritain, Balduíno Barbosa de Deus e
o juiz federal Agnelo Nogueira Pereira da Silva. Nesses trabalhos, em
seu vernáculo imaculado, à moda clássica, em estilo depurado, o
mestre Ribamar Freitas não se deteve apenas em alinhavar dados
biográficos. Essas obras traçam uma verdadeira radiografia da
personalidade do homenageado, descrevendo-lhe o caráter,
perquirindo-lhe as ideias e os ideais, ao tempo em que emitem
percucientes comentários críticos sobre as obras do biografado.
Para isso, o mestre lançava mão de sua invejável erudição, de
sua cultura humanística e de seu notável conhecimento literário e
de teoria literária. Para não dizerem que não falei de flores,
falarei de música: Ribamar Freitas era ainda violinista e maestro.
Julgo de bom alvitre registrar um fato pitoresco, que
narrei no meu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras: "No primeiro dia de aula de sua disciplina, cheguei um pouco atrasado, exatamente no momento em que o mestre perguntava qual dos alunos sabia quem era Adamastor. A classe mergulhou em silêncio tumular, ante tão insólita pergunta. O silêncio só foi rompido quando respondi que era o gigante de Os Lusíadas. Recitei os versos em que Adamastor ameaçava de males piores do que a morte os bravos navegantes portugueses. O mestre ficou boquiaberto, e levemente contrafeito, porque eu quebrara o mote de sua peroração, com que procurava demonstrar que nos dias atuais já não se liam as grandes obras literárias, sobretudo as oriundas do classicismo".
O mestre escreveu um longo trabalho sobre a minha
poesia, denominado “Comentários sobre Rosa dos Ventos Gerais e
excertos a patentear figuras e tropos que lhe exornam o texto”. É,
na verdade, um ensaio sobre estilística e linguagem, em que,
utilizando fragmentos de meus poemas, ministra lições sobre tropos
e figuras de linguagem, de forma agradável, embora profunda. Os
trechos que ele cuidadosamente selecionou exemplificam esses recursos
retóricos, que bem podem ser utilizados na poesia, na prosa de
ficção, na crônica e na oratória. Esse trabalho foi publicado na
fortuna crítica da segunda edição de Rosa dos Ventos Gerais.
Quando lhe fui entregar esse livro, conversei um pouco
com o mestre, em sua rica biblioteca. Mais uma vez vi como seus
livros eram bem cuidados. Muitos ficavam envoltos por sacos
plásticos, que lhes defendiam de traças e poeiras. Outros,
ostentavam bela encadernação, com letras douradas, que ele lhes
mandara confeccionar. Quando já começava a tomar a escada de seu
duplex, o mestre me chamou:
- Acompanhe-me. Venha ver onde vou colocar o seu livro.
Deixo que ele mesmo conte esse fato, que muito me
comoveu: “Dadivou-me o poeta ELMAR CARVALHO a sua obra poética
ROSA DOS VENTOS GERAIS, trabalho esmerado e digno de encômios, a
qual, após ma haver entregue, eu depus (e disso então o fiz ciente,
como testemunho do apreço que lhe voto) na estante de minha
biblioteca, onde se enfileiram os livros dos poetas ilustres do
Piauí, quais Martins Napoleão, Da Costa e Silva, Júlio Martins
Vieira e outros”. Martins Napoleão afirmara ser o último heleno.
Mas o último heleno foi, na verdade, José de Ribamar Freitas,
latinista, helenista, fervoroso cultor do classicismo greco-romano.
Contudo, meses depois, em nova organização das obras,
o meu livro foi posto em outro local. Estava na estante que ele
dedicava aos livros de sua autoria ou que tinham trabalhos seus, como
era o caso. Indaguei-lhe sobre o motivo da mudança. Não sei se ele
notou algum laivo de tristeza em meu semblante. Sei que alguns meses
depois, quando voltei a visitá-lo, o meu modesto livro, trajando uma
verdadeira veste cardinalícia, na capa dura, vermelha (que ele lhe
mandara fazer), com o título e a autoria lavrados em letras de ouro,
já estava em outro lugar. Estava (imerecidamente) entre os grandes
poetas de sua predileção. Sei que ali não estava por ser de
Justiça, e disso tenho plena consciência. Estava apenas por causa
de sua generosidade e amizade para comigo. Emocionado, choro, agora
que não mais posso rever o Mestre e amigo. E com minhas lágrimas,
amálgama de emoção e saudade, fecho este registro, feito em sua
memória.
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