24 de maio Diário Incontínuo
O VIDENTE, O SABIÁ E ZÉ LIMEIRA
Elmar Carvalho
Dias atrás, fui fazer o interrogatório de um
interditando em sua própria residência, a pedido da interditante,
que disse ele estaria com a sua suposta doença mental em crise, e
que se recusava a deixar sua residência. Juntamente com a
representante do Ministério Público e um servidor, fui fazer essa
diligência, logo que tive uma folga nos serviços mais urgentes.
Quando chegamos à humilde habitação, o rapaz estava
numa palhoça, no fundo do quintal, de onde se recusava a sair.
Quando cheguei a esse local, já o Luiz Moreira, que o conhecia,
assim como aos seus parentes, conversava com ele, e lhe recomendava
responder as perguntas que o juiz lhe formulasse. Ele respondeu que
não sairia do seu compartimento, e que não desejava conversar com
ninguém. Ao chegar o cumprimentei, de forma descontraída, tentando
lhe angariar a simpatia.
Perguntei-lhe o nome, tendo ele dito chamar-se Raimundo.
Perguntado sobre a data de nascimento, disse haver nascido em 3 de
agosto de 1958, mas que tinha menos de 7 anos de idade. Ante tão
evidente erro aritmético, explicou, em sua lógica ilógica, que até
os sete anos a pessoa era um “defensor”, e que após essa idade
era um pecador. Por conseguinte não era ele contaminado pelo pecado,
conforme acabou de explicar a seguir, quando disse ser filho direto
de Deus e irmão legítimo de Jesus Cristo. Aduziu que não era filho
de um homem e de uma mulher; que fora criado diretamente pelo Senhor,
e que por isso mesmo não tinha pecado original.
Disse escutar vozes, especialmente as de Deus e de
Jesus, com os quais disse conversar. Perguntei-lhe se os via.
Respondeu positivamente, acrescentando que Deus tinha um grande dente
na parte frontal da boca, e fez um gesto com um dedos, simulando ser
um dentuço. Disse-lhe que o que ele via mais se assemelhava ao
vampiro Conde Drácula. Não deu mostra de haver compreendido a minha
observação. Perguntado a respeito, disse não precisar rezar, pois
conversava e se entendia diretamente com Deus. Por mero formalismo,
intimei-o a impugnar a causa, no prazo de cinco dias.
No retorno, o Luiz Moreira contou-me o caso de um
demente conhecido como Sabiá. Explanou que quando ele pede
determinada coisa, só aceita o que pediu, e não outra, ainda que
mais valiosa. Certo dia, ao encontrar-se com Sabiá, este lhe pediu
um pedaço de fumo. Como Luiz respondesse que não o tinha, o louco
saiu-se com essa tirada, depois de olhar fixamente para o pneu de uma
bicicleta:
- Tem gente que diz que é uma “cama”, outro diz
diz que basta revisar.
Piqui com farinha tem um feitiço danado...
Seja lá o que tenha sido esse rompante verbal, um tanto
incongruente e despropositado, é algo semelhante a certas passagens
poéticas de Zé Limeira, dito o Poeta do Absurdo, sobre o qual
Orlando Tejo escreveu um excelente livro, crítico e biográfico, que
li com muito gosto e atenção. Zé Limeira, como se sabe, era um
repentista de versos desconcertantes, e por vezes totalmente
imprevistos e imprevisíveis, sobretudo pelo seu adversário, nas
pelejas do improviso de cantadores/violeiros. Algumas vezes, chegavam
a ser estapafúrdios, embora metrificados e rimados; por isso era
considerado um surrealista da lírica popular.
Muitas vezes, ele mudava as datas e o contexto histórico
para inserir o personagem, com o qual desejava ilustrar o conteúdo
de sua versificação, no cenário que lhe convinha na contenda do
desafio. Outras vezes, modificava a prosódia, transformando
proparoxítonas em oxítonas (e vice-versa), mas não perdia a rima
nem o ritmo, como certos zagueiros, que, ao não conseguirem alcançar
a bola, derrubam o atacante, para não perderem a viagem. Da mesma
forma Sabiá, embora não tenha plumagem nem voo, como a ave canora
que lhe cedeu o apelido, tem canto, e no seu lirismo, singular e
bizarro, se me afigurou um verdadeiro Zé Limeira, em seus melhores
momentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário