Cunha e Silva Filho
Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012
Meu caro jovem crítico:
Ao transpormos um
determinada fase etária que não nos permite mais pensar trinta ou
mais anos para diante, é tempo mais do que aprazado para poder ter
pelo menos a dignidade da velhice a fim de sugerirmos conselhos que,
em geral, pouco são seguidos à risca. Cada um, de uma forma ou de
outra, consegue encontrar um caminho, ou não, por uma circunstância
ou outra.
Mas, vejamos no seu
caso. Você me pede não um conselho apenas, mas uma orientação
dessas que os escritores mais velhos , alguns, pelo menos, gostam de
passar às gerações mais novas.
A primeira coisa que
você deve ter em mente não é declarar-se ser crítico
de moto próprio de forma narcisista, vaidosa, sem o mínimo de
autocrítica (perdoe-me o trocadilho, que pode soar aos seus ouvidos
um tanto pejorativamente) antes que alguém mais experiente lhe possa
afirmar diretamente ou por terceiros. É óbvio que você tem, nos
seus verdes anos, já um bom discernimento para saber relativamente o
que pretende fazer com o vasto campo literário da crítica,
dividido e fracionado em múltiplos aspectos, em muitas
correntes, antigas e modernas.Atividade literária esta que, de vez
em quando, se proclama morta ou, no mínimo, em crise.
Ninguém, que eu saiba,
pelo menos no caso da literatura brasileira, de repente se
auto-proclamou: “sou um crítico literário!” Acredito que alguém
que tenha porventura feito isso, já se arrependeu há muitos anos e
talvez tenha-se debandado para outro gênero (ou gêneros) que,
em tempo, descobriu ser mais conveniente ao seu talento.
Por falar de grande
experiência de crítico, além de talento para este ofício,
lembro-me, agora, de uma autor de um utilíssimo livro sobre
correspondência oficial, que escrevera há muito tempo uma carta ao
velho e agora esquecido crítico Agripino Grieco, solicitando-lhe
opinião apreciativa a respeito da obra de Camilo Castelo Branco,
notável ficcionista romântico português, famoso por obras
como Amor de perdição, Amor de salvação, um escritor
que deixou uma produção numerosa no campo da ficção. A resposta
de Agripino foi, como se podia esperar, de um grande leitor da sua
espécie: uma lição admiravelmente resumida do que pensava da obra
camiliana, dos seus valores estéticos da sua posição de alto
relevo na literatura portuguesa.
A atividade crítica,
assim como todas as outras, mesmo as não literárias, pressupõe uma
condição fundamental: a formação intelectual. Esta é seu pilar,
sem o qual não pode existir o crítico na acepção rigorosa do
termo. Alguém, porém, pode argumentar: “E quando não havia o que
hoje denominamos formação em Letras, ou mesmo um modalidade já em
vigor em algumas universidades brasileiras, que é o curso de estudos
de crítica literária? Ora, na falta das universidades, o seguro
seria começar pelos filósofos gregos que estudaram questões de
altíssima relevância aos estudos literarios, como Sócrates (469
a.C); Platão (427 a. C.), nos diálogos socráticos, discute a
doutrina do seu mestre, na obra Íon, em que estuda a
inspiração poética; Protágoras, no qual se discutem a virtude e o
conhecimento, considerando ambos a mesma coisa; Geórgias,
tratando da retórica; Crátilo, ocupando-se da
linguagem; Maior, a respeito da beleza. Este último, segundo
estudiosos, é de autenticidade duvidosa, assim
como Íon,Menexeno, Hípias Maior, Epinômides; .Aristóteles
(384 a. C.), com a sua Retórica e a sua Poética.
A par da contribuição
gigantesca daqueles filósofos antigos, nenhum passo significativo
pode ser dado rumo às atualizações do saber teórico-literário,
como a intimidadae obras-chave em toda a história da
literatura universal não podem ser desconsideradas na formação do
jovem crítico. Seu trabalho consiste em combinar um série de área
afins e de área complementares: a literatura, a história, a
geografia, a filosofia, a socióloga, a estatística,, os
estudos de línguas modernas (espanhol, francês, italiano, inglês,
alemão, numa seleção mínima), e os de línguas clássicas, o
grego e o latim.
Dentre as obras de
enorme contribuição ao repertório do crítico, destacaríamos, por
autores, numa citação sumária e assistemática, as seguintes: as
tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, as obras de
Milton, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Samuel Taylor Coleridge,
Nietzsche, Hegel, Locke, Santo Agostinho, Bacon, Wittgenstein,
Maquiavel, Marx, as obras de Homero, de Sêneca, de Aristófanes, de
Goethe, Shakespeare, Dante, Petrarca, Milton,, Samuel Taylor
Coleridge, Miguel Cervantes de Saavedra, Schiller, Gil Vicente,
Stendhal, Camões, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud, Sterne, Poe,
Fernando Pessoa, Hölderlin, Thomas Mann, Flaubert, Balsac, Victor
Hugo, Dostoiévski, Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Kafka,
Borges, Ezra Pound, Edmund Wilson, T.S. Elliot, Faulkner, dos
filósofos, ou antropólogos, ou críticos, ou teóricos, ou
linguistas, ou pensadores: Boileau, Saint-Beuve, Taine, Bennedetto
Croce, I. A. Richards, Sartre, Marcuse, Heidegger, Freud,
Lévi-Strauss, Derrida, Foucault, Adorno, W. Benjamin, Saussure,
Horkheimer, Spitzer, Dámaso Alonso, Carlos Bousoño, Vossler, Roman
Jakobson, Wolfang Kayser, Pierce, Chomski, Todorov, Julia Kristeva,
Lukács, Auerbach, Edmund Wilson, David Daiches, Mihail
Bakhtin, Raymond Williams, Renné Welleck, Austin Warren,
Habermas, entre tantos outros de primeira plana.
As citações acima
servem apenas para mostrar o quanto é espinhosa e complexa a
atividade crítica, a sua preparação acadêmica no sentido de o
crítico também exercer a docência superior combinada com o
exercício da critica ou do ensaio.Outras vezes, o crítico, sem ser
especificamente um professor universitário, por uma natural vocação
e amor aos estudos de obras e às questões teóricas, pode com
sucesso construir uma obra no terreno da crítica, da historiografia
literária e da teoria literária. Exemplo disso no Brasil são
muitos, como Agripino Grieco, Fausto Cunha, Assis Brasil. São o que
poderíamos chamar de self-made critics , críticos
independentes, surgidos fora dos campi universitários.
Meu caro aspirante a
crítico, você sabe que o ato crítico é espinhoso, muitas
vezes injusto para seu praticante e exige uma continuidade de
atualização e de leituras de autores em quantidade sem
paralelo que vêm surgindo, sobretudo nos últimos anos. Tanto isso é
verdade que muitos críticos tendem a se especializar no gênero da
poesia e, em segundo plano, na ficção, no teatro. E podemos
radicalizar ainda mais, muitos críticos se tornam especialistas em
um autor, ou num período literário.Outros ainda, por razões de
múltipos talentos, além de críticos, são contistas, romancistas,
poetas, ensaístas, historiadores, dramaturgos, crítico de artes.
Uma outra questão
problemática e de grande complexidade é a escolha da linha do
pensamento crítico, tomada de decisão intelectual que está muito
associada à formação das leituras teóricas do crítico e das
influências sofridas por ele no tempo e no espaço. Cada aspirante a
crítico seria, por assim dizer, produto do seu tempo no que tange ao
pensamento crítico que vai lhe nortear a produção .Ao longo da
história da crítica literária ocidental, diversas correntes foram
surgindo, as quais remontam aos períodos mais fecundos do pensamento
helênico e latino, num espectro tão abrangente que Carmelo M. Bonet
chamou, em sintese, de crítica dogmático-hedonista, passando
por Platão, Aristóteles e vindo atingir até à época de
Cervantes. Para simplificar, nomeemos as mais influentes correntes do
pensamento crítico ocidental a partir do século XIX:
1) “Crítica
compreensiva;”(Mme. De Staël);
2) determinismo
(Taine);
3) crítica biográfica
(Saint-Beuve);
4) crítica
evolucionista (Brunetière);
5) impressionismo (
Anatole France);
6) crítica
expressionista (influenciada pelas ideias de Benedetto Croce);
7) formalismo russo
(Roman Jakobson, Boris Eichenbaum e Victor Shklovski);
8) o new critcism,
de procedência anglo-americana, divulgado por Afrânio Coutinho e
aplicando entre nós a abordagem da obra literária considerando
sobretudo o seu estudo nos seus elementos intrínsecos dissociados de
componentes extra-literários, procurando ainda na obra a sua
autonomia de forma de linguagem, no estilo, nos aspectos
formais, i.e., em elementos como personagens, espaço, tempo,
enredo, ponto de vista, metáfora, símbolos, imagens, símiles,
mitos, métrica, rimas, ritmos, enfim, as partes de sua
estrutura linguística em estado de tensão com o padoxo, a ironia, a
ambiguidade, utilizando-se de uma retórica objetiva e afastada de
conceitos de natureza impressionista, subjetivista como sensações,
relação entre autor e obra (biografismo) ou seja, a obra analisada
como se fosse um objeto científico, mas visando a fins estéticos;
9) fenomenologia
(Edmund Husserl). Outras versões da Fenomenologia:
10) reader-response
criticism (Stanley Fish, Wolfgang Iser);
11) estetica da
recepção (Hans Robert Jauss);
12) crítica
estruturalista (Roland Barthes, Jonathan Culler);
13)
pós-estrututuralista (Barthes, Lacan, e Foucault);
14) desconstrução (
Jacques Derrida);
15) teoria feminista (
Elaine Showwater, Jacqueline Rose, Mary Jacobus, Kaja Silverman);
16) psicanálise
(Jacque Lacan através da base teórica vinda de Freud);
17) crítica marxista
(Karl Marx, Engels);
18) novo historicismo/
materialismo cultural ( Raymond Williams, Catherine Balsey, Jonthan
Dollimore, Alan Sinfield e Peter Stallybrass, Stephen Greenblatt,
Louis Montrose);
20) teoria pós-colonial
(Edward Said);
21) discurso de
minorias (promoveu-se dentro das instituições dos EUA os estudos da
escrita negra, latina, asiático-americana, nativo-americana;
22) queer theory
. É óbvio, caro
jovem, que outras correntes e métodos críticos contemporâneos ou
mesmo mais remotos não foram referidos aqui por completo.
Contudo, o jovem crítico, a partir de suas próprias leituras e
cruzamentos de leituras teóricas, irá delas tomar
conhecimento ou, quem sabe, poderá fazer parte de sua abordagem de
escolha.
Você, desejoso
de estabelecer familiaridade mais profunda com a atividade da crítica
literária, não deve negligenciar que, na França, além dos mais
conhecidos movimentos teóricos surgidos nos últimos anos, e
divulgados para outros países europeus e para as Américas, a
cultura francesa voltada para a análise crítica de autores e para
os aspectos teóricos envolvidos, oferece um grande espectro de
abordagens muitas vezes pouco conhecidas em nosso país e, para isso,
cumpre estar atento para algumas obras que deem boa fundamentação
sobre o assunto, como, para ilustrar, podemos ler em A crítica
literária de Jérôme Roger e até mesmo um livrinho antigo, La
critique littéraire, de J.C. Carloni e Jean C. Filloux, o primeiro
traz um Quadro Cronológico, mencionando, em duas colunas; na
primeira obras literárias, cuja citação começa com Homero e, na
segunda, valiosos títulos de obras de crítica.. Na primeira obra e
na segunda, constam bibliografia sobre crítica literária.
Conjugando o
conhecimento crítico importado e a atividade crítica no país desde
suas origens até à contemporaneidade, o jovem crítico, por esforço
próprio e pela formação acadêmico-erudita adquirida, dentro ou
fora da universidade, há de conseguir desbravar o seu próprio
método de trabalho que, geralmente, seguirá algumas das correntes
em voga da crítica contemporânea ou mesmo tornar
eclético seu pensamento crítico Com sua abordagem
preferida, e assim fizeram todos os seus predecessores na sua época,
com as exceções dos críticos de formação independente, que
preferiram - vamos dizer - criar os seus próprios fundamentos
teóricos de interpretação das obra. A recepção dos resultados do
seu fazer crítico-analítico é que em geral vai receber a
classificação e o reconhecimento , ou não, de seus pares
nesse gênero. Ficou célebre a frase "crítico ao
Norte!", de Alceu Amoroso Lima quando da publicação
de Dimensões I (1958), de Eduarado Portella, primeiro
volume de crítica literária de uma série de três
com este título.Sua estreia se dera com Aspectos de
la poesía brasileña contemporánea (Madrid,
1953).
Fazendo uma comparação simples, o jovem crítico semelha a um cantor no início da carreira, quando elege um cantor famoso como seu modelo. Seria esta uma fase de imitação até natural, a qual, à medida que passa o tempo, o jovem cantor vai adquirindo voz própria, encontrando finalmente seu caminho no espaço musical.O crítico já experiente sofreu influências, teve suas preferências por certos crítico e isso pode-se fazer notar até nos seus escritos de início de atividade. É que não podemos fugir à nossa formação, às nossas leituras teóricas com as quais mais nos identificamos, embora isso não signifique que possa haver evolução, ou melhor, mudança de direção nos métodos e correntes do pensamento crítico, assim como pode haver mesmo interrupção da atividade de um crítico, o que ocorreu com Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que da crítica militante do Modernismo, passou à produção de pensador e líder católico, no que muito o ajudou a sua grande erudição e os variados campos do conhecimento que dominava bem e com grande talento e capacidade de polígrafo. É bem verdade que, no Jornal do Brasil, de quando em quando, vinha ele com sólidos artigos focalizando questões de crítica e teoria literária.
Fazendo uma comparação simples, o jovem crítico semelha a um cantor no início da carreira, quando elege um cantor famoso como seu modelo. Seria esta uma fase de imitação até natural, a qual, à medida que passa o tempo, o jovem cantor vai adquirindo voz própria, encontrando finalmente seu caminho no espaço musical.O crítico já experiente sofreu influências, teve suas preferências por certos crítico e isso pode-se fazer notar até nos seus escritos de início de atividade. É que não podemos fugir à nossa formação, às nossas leituras teóricas com as quais mais nos identificamos, embora isso não signifique que possa haver evolução, ou melhor, mudança de direção nos métodos e correntes do pensamento crítico, assim como pode haver mesmo interrupção da atividade de um crítico, o que ocorreu com Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que da crítica militante do Modernismo, passou à produção de pensador e líder católico, no que muito o ajudou a sua grande erudição e os variados campos do conhecimento que dominava bem e com grande talento e capacidade de polígrafo. É bem verdade que, no Jornal do Brasil, de quando em quando, vinha ele com sólidos artigos focalizando questões de crítica e teoria literária.
Porém, é de bom
alvitre que não se deixe levar pela mera opinião de terceiros, uma
vez que, no campo da judicatura crítica, o que vai prevalecer são
dois aspectos básicos: a formação cultural do crítico e sua
personalidade literária, sua capacidade de ser original e criativo e
o nível de seus estudos e pesquisas. Por outro lado, ninguém há de
moldá-lo nos seus objetivos traçados, em suas ideias com intenção
renovadora de ir a fundo no fenômeno estético. Só o tempo dirá
até que profundidade alcançaram seus estudos, os autores
pesquisados e seus silêncios sobre outros autores, assim como sua
contribuição aos estudos realizados durante a sua vida útil na
função espinhosa e muitas vezes ingrata e mal compreendida de
crítico. Será entendido por alguns, mal interpretado por outros e
até desprezado por outros mais. A história da crítica literária
em nosso país está apinhada de casos dessa natureza, de polêmica
homéricas, de diatribes, de inimizades e, por incrível que pareça,
de reconciliações.
O seu maior
compromisso, em questões de crítica, estará vinculado à sua visão
de abordar obras e temas literários e de fazê-lo com a maior
seriedade possível em se tratando de uma atividade intelectual que
agrada a egos, causa melindres, provoca frustração, despeito,
inveja e até ódio. Essa dimensão pessoal, personalista e
destruidora não deve fazer parte do exercício da crítica, mas
seres humanos que somos, uma vez ou outra caímos na fraqueza
das vaidades e a literatura, neste caso, por instante, perde seu
brilho e o sortilégio de seu renovada sensação do mistério da
obra literária.
Espero, prezado jovem,
que alguma diretriz ou um pouco de minha experiência venha a
contribuir para, se assim for de sua vontade, vir fazer parte dos
que, como condição primeira de gênero de escrita e de atividade
intelectual, fizeram a opção pela leitura de obras como
possibilidades de aproximação interpretativa e de fazer outros
melhor entenderem a grandiosidade da literatura e de sua importância
para uma visão mais densa da vida, dos homens e do mundo.
Permito-me, quebrando o
protocolo dos gêneros, finalizar esta carta, com uma
bibliografia(vide abaixo) em respeito aos autores citados e ao mesmo
lhe desejo um fecundo caminho de militância crítica.
Com os cumprimentos do
Cunha e Silva Filho
Referência
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