segunda-feira, 25 de junho de 2012

Carta a um jovem crítico



Cunha e Silva Filho

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012

Meu caro jovem crítico:

Ao transpormos um determinada fase etária que não nos permite mais pensar trinta ou mais anos para diante, é tempo mais do que aprazado para poder ter pelo menos a dignidade da velhice a fim de sugerirmos conselhos que, em geral, pouco são seguidos à risca. Cada um, de uma forma ou de outra, consegue encontrar um caminho, ou não, por uma circunstância ou outra.

Mas, vejamos no seu caso. Você me pede não um conselho apenas, mas uma orientação dessas que os escritores mais velhos , alguns, pelo menos, gostam de passar às gerações mais novas.

A primeira coisa que você deve ter em  mente não é declarar-se ser crítico de moto próprio de forma narcisista, vaidosa, sem o mínimo de autocrítica (perdoe-me o trocadilho, que pode soar aos seus ouvidos um tanto pejorativamente) antes que alguém mais experiente lhe possa afirmar diretamente ou por terceiros. É óbvio que você tem, nos seus verdes anos, já um bom discernimento para saber relativamente o que pretende fazer com o vasto campo literário da crítica,  dividido e fracionado em múltiplos aspectos, em muitas correntes, antigas e modernas.Atividade literária esta que, de vez em quando, se proclama morta ou, no mínimo, em crise.

Ninguém, que eu saiba, pelo menos no caso da literatura brasileira, de repente se auto-proclamou: “sou um crítico literário!” Acredito que alguém que tenha porventura feito isso, já se arrependeu há muitos anos e talvez tenha-se debandado para outro gênero (ou gêneros)  que, em tempo, descobriu ser mais conveniente ao seu talento.

Por falar de grande experiência de crítico, além de talento para este ofício, lembro-me, agora, de uma autor de um utilíssimo livro sobre correspondência oficial, que escrevera há muito tempo uma carta ao velho e agora esquecido crítico Agripino Grieco, solicitando-lhe opinião apreciativa a respeito da obra de Camilo Castelo Branco, notável ficcionista romântico português, famoso por obras como Amor de perdição, Amor de salvação, um escritor que deixou uma produção numerosa no campo da ficção. A resposta de Agripino foi, como se podia esperar, de um grande leitor da sua espécie: uma lição admiravelmente resumida do que pensava da obra camiliana, dos seus valores estéticos da sua posição de alto relevo na literatura portuguesa.

A atividade crítica, assim como todas as outras, mesmo as não literárias, pressupõe uma condição fundamental: a formação intelectual. Esta é seu pilar, sem o qual não pode existir o crítico na acepção rigorosa do termo. Alguém, porém, pode argumentar: “E quando não havia o que hoje denominamos formação em Letras, ou mesmo um modalidade já em vigor em algumas universidades brasileiras, que é o curso de estudos de crítica literária? Ora, na falta das universidades, o seguro seria começar pelos filósofos gregos que estudaram questões de altíssima relevância aos estudos literarios, como Sócrates (469 a.C); Platão (427 a. C.), nos diálogos socráticos, discute a doutrina do seu mestre, na obra Íon, em que estuda a inspiração poética; Protágoras, no qual se discutem a virtude e o conhecimento, considerando ambos a mesma coisa; Geórgias, tratando da retórica; Crátilo, ocupando-se da linguagem; Maior, a respeito da beleza. Este último, segundo estudiosos, é de autenticidade duvidosa, assim como Íon,Menexeno, Hípias Maior, Epinômides; .Aristóteles (384 a. C.), com a sua Retórica e a sua Poética.

A par da contribuição gigantesca daqueles filósofos antigos, nenhum passo significativo pode ser dado rumo às atualizações do saber teórico-literário,  como  a intimidadae obras-chave em toda a história da literatura universal não podem ser desconsideradas na formação do jovem crítico. Seu trabalho consiste em combinar um série de área afins e de área complementares: a literatura, a história, a geografia,  a filosofia, a socióloga, a estatística,, os estudos de línguas modernas (espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, numa seleção mínima), e os de línguas clássicas, o grego e o latim.

Dentre as obras de enorme contribuição ao repertório do crítico, destacaríamos, por autores, numa citação sumária e assistemática, as seguintes: as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, as obras de Milton, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Samuel Taylor Coleridge, Nietzsche, Hegel, Locke, Santo Agostinho, Bacon, Wittgenstein, Maquiavel, Marx, as obras de Homero, de Sêneca, de Aristófanes, de Goethe, Shakespeare, Dante, Petrarca, Milton,, Samuel Taylor Coleridge, Miguel Cervantes de Saavedra, Schiller, Gil Vicente, Stendhal, Camões, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud,  Sterne, Poe, Fernando Pessoa, Hölderlin, Thomas Mann, Flaubert, Balsac, Victor Hugo, Dostoiévski, Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Kafka, Borges, Ezra Pound, Edmund Wilson, T.S. Elliot, Faulkner, dos filósofos, ou antropólogos, ou críticos, ou teóricos, ou linguistas, ou pensadores: Boileau, Saint-Beuve, Taine, Bennedetto Croce, I. A. Richards, Sartre, Marcuse, Heidegger, Freud, Lévi-Strauss, Derrida, Foucault, Adorno, W. Benjamin, Saussure, Horkheimer, Spitzer, Dámaso Alonso, Carlos Bousoño, Vossler, Roman Jakobson, Wolfang Kayser, Pierce, Chomski, Todorov, Julia Kristeva, Lukács, Auerbach, Edmund Wilson, David Daiches,  Mihail Bakhtin, Raymond Williams, Renné Welleck, Austin Warren,  Habermas, entre tantos outros de primeira plana.

As citações acima servem apenas para mostrar o quanto é espinhosa e complexa a atividade crítica, a sua preparação acadêmica no sentido de o crítico também exercer a docência superior combinada com o exercício da critica ou do ensaio.Outras vezes, o crítico, sem ser especificamente um professor universitário, por uma natural vocação e amor aos estudos de obras e às questões teóricas, pode com sucesso construir uma obra no terreno da crítica, da historiografia literária e da teoria literária. Exemplo disso no Brasil são muitos, como Agripino Grieco, Fausto Cunha, Assis Brasil. São o que poderíamos chamar de self-made critics , críticos independentes, surgidos fora dos campi universitários.

Meu caro aspirante a crítico,  você sabe que o ato crítico é espinhoso, muitas vezes injusto para seu praticante e exige uma continuidade de atualização e  de leituras de autores em quantidade sem paralelo que vêm surgindo, sobretudo nos últimos anos. Tanto isso é verdade que muitos críticos tendem a se especializar no gênero da poesia e, em segundo plano, na ficção, no teatro. E podemos radicalizar ainda mais, muitos críticos se tornam especialistas em um autor, ou num período literário.Outros ainda, por razões de múltipos talentos, além de críticos, são contistas, romancistas, poetas, ensaístas, historiadores, dramaturgos, crítico de artes.

Uma outra questão problemática e de grande complexidade é a escolha da linha do pensamento crítico, tomada de decisão intelectual que está muito associada à formação das leituras teóricas do crítico e das influências sofridas por ele no tempo e no espaço. Cada aspirante a crítico seria, por assim dizer, produto do seu tempo no que tange ao pensamento crítico que vai lhe nortear a produção .Ao longo da história da crítica literária ocidental, diversas correntes foram surgindo, as quais remontam aos períodos mais fecundos do pensamento helênico e latino, num espectro tão abrangente que Carmelo M. Bonet chamou, em sintese,  de crítica dogmático-hedonista, passando por Platão, Aristóteles e vindo atingir até à época de Cervantes. Para simplificar, nomeemos as mais influentes correntes do pensamento crítico ocidental a partir do século XIX:



1) “Crítica compreensiva;”(Mme. De Staël);

2) determinismo (Taine);

3) crítica biográfica (Saint-Beuve);

4) crítica evolucionista (Brunetière);

5) impressionismo ( Anatole France);

6) crítica expressionista (influenciada pelas ideias de Benedetto Croce);

7) formalismo russo (Roman Jakobson, Boris Eichenbaum e Victor Shklovski);

8) o new critcism, de procedência anglo-americana, divulgado por Afrânio Coutinho e aplicando entre nós a abordagem da obra literária considerando sobretudo o seu estudo nos seus elementos intrínsecos dissociados de componentes extra-literários, procurando ainda na obra a sua autonomia de forma de linguagem, no estilo, nos aspectos formais,  i.e., em elementos como personagens, espaço, tempo, enredo, ponto de vista, metáfora, símbolos, imagens, símiles, mitos, métrica, rimas, ritmos, enfim,  as partes de sua  estrutura linguística em estado de tensão com o padoxo, a ironia, a ambiguidade, utilizando-se de uma retórica objetiva e afastada de conceitos de natureza impressionista, subjetivista como sensações, relação entre autor e obra (biografismo) ou seja, a obra analisada como se fosse um objeto científico, mas visando a fins estéticos;

9)  fenomenologia (Edmund Husserl). Outras versões da Fenomenologia:

10) reader-response criticism (Stanley Fish, Wolfgang Iser);

11) estetica da recepção (Hans Robert Jauss);

12) crítica estruturalista (Roland Barthes, Jonathan Culler);

13) pós-estrututuralista (Barthes, Lacan, e Foucault);

14) desconstrução ( Jacques Derrida);

15) teoria feminista ( Elaine Showwater, Jacqueline Rose, Mary Jacobus, Kaja Silverman);

16) psicanálise (Jacque Lacan através da base teórica vinda de Freud);

17) crítica marxista (Karl Marx, Engels);

18) novo historicismo/ materialismo cultural ( Raymond Williams, Catherine Balsey, Jonthan Dollimore, Alan Sinfield e Peter Stallybrass, Stephen Greenblatt, Louis Montrose);

20) teoria pós-colonial (Edward Said);

21) discurso de minorias (promoveu-se dentro das instituições dos EUA os estudos da escrita negra, latina, asiático-americana, nativo-americana;

22) queer theory



. É óbvio, caro jovem, que outras correntes e métodos críticos contemporâneos ou mesmo mais remotos não foram  referidos aqui por completo. Contudo, o jovem crítico, a partir de suas próprias leituras e cruzamentos de leituras teóricas,  irá delas tomar conhecimento ou, quem sabe, poderá fazer parte de sua abordagem de escolha.



 Você, desejoso de estabelecer familiaridade mais profunda com a atividade da crítica literária, não deve negligenciar que, na França, além dos mais conhecidos movimentos teóricos surgidos nos últimos anos, e divulgados para outros países europeus e para as  Américas, a cultura francesa voltada para a análise crítica de autores e para os aspectos teóricos envolvidos, oferece um grande espectro de abordagens muitas vezes pouco conhecidas em nosso país e, para isso, cumpre estar atento para algumas obras que deem boa fundamentação sobre o assunto, como, para ilustrar, podemos ler em A crítica literária de Jérôme Roger e até mesmo um livrinho antigo, La critique littéraire, de J.C. Carloni e Jean C. Filloux, o primeiro traz um Quadro Cronológico, mencionando, em duas colunas; na primeira obras literárias, cuja citação começa com Homero e, na segunda, valiosos títulos de obras de crítica.. Na primeira obra e na segunda, constam bibliografia sobre crítica literária.

Conjugando o conhecimento crítico importado e a atividade crítica no país desde suas origens até à contemporaneidade, o jovem crítico, por esforço próprio e pela formação acadêmico-erudita adquirida, dentro ou fora da universidade, há de conseguir desbravar o seu próprio método de trabalho que, geralmente, seguirá algumas das  correntes em voga da crítica contemporânea ou mesmo  tornar eclético seu  pensamento crítico  Com sua abordagem preferida, e assim fizeram todos os seus predecessores na sua época, com as exceções dos críticos de formação independente, que preferiram - vamos dizer - criar os seus próprios fundamentos teóricos de interpretação das obra. A recepção dos resultados do seu fazer crítico-analítico é que em geral vai receber a classificação e o reconhecimento , ou não,  de seus pares  nesse  gênero. Ficou célebre a frase "crítico ao Norte!", de Alceu Amoroso Lima quando da publicação de Dimensões I (1958), de Eduarado Portella, primeiro  volume de  crítica literária   de uma série de três com este título.Sua estreia se dera com  Aspectos  de la poesía brasileña contemporánea (Madrid, 1953).

Fazendo uma comparação simples, o jovem crítico semelha a um cantor no início da carreira, quando elege um cantor famoso como seu modelo. Seria esta uma fase de imitação até natural, a qual, à medida que passa o tempo, o jovem cantor vai adquirindo voz própria, encontrando finalmente seu caminho no espaço musical.O crítico já experiente sofreu influências, teve suas preferências por certos crítico e isso pode-se fazer notar até nos seus escritos de início de atividade. É que não podemos fugir à nossa formação, às nossas leituras teóricas com as quais mais nos identificamos, embora isso não signifique que possa haver evolução, ou melhor, mudança de direção nos métodos e correntes do pensamento crítico, assim como pode haver mesmo interrupção da atividade de um crítico, o que ocorreu com Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que da crítica militante do Modernismo, passou à produção de pensador e líder católico, no que muito o ajudou a sua grande erudição e os variados campos do conhecimento que dominava bem e com grande talento e capacidade de polígrafo. É bem verdade que, no Jornal do Brasil, de quando em quando, vinha ele com sólidos artigos focalizando questões de crítica e teoria literária.

Porém, é de bom alvitre que não se deixe levar pela mera opinião de terceiros, uma vez que, no campo da judicatura crítica, o que vai prevalecer são dois aspectos básicos: a formação cultural do crítico e sua personalidade literária, sua capacidade de ser original e criativo e o nível de seus estudos e pesquisas. Por outro lado, ninguém há de moldá-lo nos seus objetivos traçados, em suas ideias com intenção renovadora de ir a fundo no fenômeno estético. Só o tempo dirá até que profundidade alcançaram  seus estudos, os autores pesquisados e seus silêncios sobre outros autores, assim como sua contribuição aos estudos realizados durante a sua vida útil na função espinhosa e muitas vezes ingrata e mal compreendida de crítico. Será entendido por alguns, mal interpretado por outros e até desprezado por outros mais. A história da crítica literária em nosso país está apinhada de casos dessa natureza, de polêmica homéricas, de diatribes, de inimizades e, por incrível que pareça, de reconciliações.

O seu maior compromisso, em questões de crítica, estará vinculado à sua visão de abordar obras e temas literários e de fazê-lo com a maior seriedade possível em se tratando de uma atividade intelectual que agrada a egos, causa melindres, provoca frustração, despeito, inveja e até ódio. Essa dimensão pessoal, personalista e destruidora não deve fazer parte do exercício da crítica, mas seres humanos que somos, uma vez ou outra caímos  na fraqueza das vaidades e a literatura, neste caso, por instante, perde seu brilho e o sortilégio de seu renovada sensação do mistério da obra literária.

Espero, prezado jovem, que alguma diretriz ou um pouco de minha experiência venha a contribuir para, se assim for de sua vontade, vir fazer parte dos que, como condição primeira de gênero de escrita e de atividade intelectual, fizeram a opção pela leitura de obras como possibilidades de aproximação interpretativa e de fazer outros melhor entenderem a grandiosidade da literatura e de sua importância para uma visão mais densa da vida, dos homens e do mundo.

Permito-me, quebrando o protocolo dos gêneros, finalizar esta carta, com uma bibliografia(vide abaixo) em respeito aos autores citados e ao mesmo lhe desejo um fecundo caminho de militância crítica.

Com os cumprimentos do

Cunha e Silva Filho


Referência biblliográfica:

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AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1984.

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CULLER, Teoria literária: uma introdução. Trad. e notas de Sandra Guardini T. Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções  Culturais Ltda, 1999.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma orientação. Trad. de Waltensir Dutra. Martins Fontes: São Paulo, 1997.

________________. Thre function of criticism. – from the Spectator to Post-Structuralism. Thetford, Norkolk: Thetford Press Ltd., 1984.

GRAY, Martin. A dictionary of literary terms. 2nd edition. 3rd impression. Essex, England: Longman York Press.1994.
COSTA  LIMA, Luiz (org.). 2 vols. Teoria da literatura em suas fontes.2 ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1992.

MONDIN, Battista. Curso de filosofia – os filósofos do Ocidente. Vol. 1. 2. Ed São Paulo: Edições Paulina, 1981.

ROGER, Jerome. A crítica literária. Trad. de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

SOUSA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 3 ed. São Paulo^Ática, Col. Princípios, 1990.


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