quarta-feira, 13 de junho de 2012

A CIDADE DA MEMÓRIA



13 de junho   Diário Incontínuo

A CIDADE DA MEMÓRIA

Elmar Carvalho

No livro As Cidades Invisíveis o viajante veneziano descreve ao imperador dos tártaros, Kublai Khan, as cidades que ele supostamente teria visitado. Relata as singularidades de cada uma, e o comportamento peculiar ou bizarro de seus habitantes. De algumas cidades, como Diomira, alguém guardará a beleza que terá visto em outras cidades.

A exemplo de Isidora, muitas cidades têm o seu “murinho dos velhos que veem a juventude passar”. Os velhos naquele recanto conversam acerca de seus desejos, que são apenas diáfanas recordações. Sempre cada pessoa verá a sua cidade de uma maneira diferente de outra pessoa. E a mesma pessoa poderá ter visões diferentes de sua cidade, conforme o tempo e a emoção em que a situe. É que da mesma maneira que Zaíra, uma cidade pode ser feita das relações entre suas medidas e os acontecimentos do passado.

As cidades da memória são enganosas, e podem ter um poder maligno ou benigno como Anastácia, uma das cidades relatadas ao Grande Khan por Marco Polo. Na verdade, as cidades sempre se apresentam de forma diferente para cada visitante, conforme o ângulo em que foi vista pela primeira vez, de acordo com o acontecimento, triste ou alegre, que ele vivenciou. E como Zirma, pode ser redundante, a repetir-se, a repetir-se sempre para deixar alguma imagem tatuada no pergaminho da alma.

Em certo ponto da narrativa, o Grande Khan e Marco Polo parecem convergir no entendimento de que o viajante e narrador, quando falava das várias cidades, estava na verdade a falar de uma única e mesma cidade: Veneza. Veneza com suas gôndolas, românticas e algo antiquadas, seus canais, suas águas, seus palácios suntuosos, suas praças e seus mistérios. Quase todo homem parece ter uma cidade eleita, quase sempre a da sua infância e adolescência; após atingir meio século de vida, a ela sempre almeja retornar, ainda que somente através da lembrança e da emoção, na busca inglória do tempo proustianamente perdido.

Através da memória e da saudade, jamais ele se decepcionará. Sempre a sua cidade será a cidade que ele guardou em seu coração, em suas recordações. Revê-la poderá ser uma traição, uma cilada, uma armadilha, porque jamais ele retornará à cidade que imaginou em sua saudade. Algo terá mudado. Muitas pessoas terão mudado de hábito, ou até mesmo se mudado para outra urbe. O cenário mudou e a ambiência mudou. Jamais ele encontrará os formosos seios de Duília, que lhe encantaram na adolescência. A dona dos apetitosos seios terá perdido o encanto de sua juventude, e os seios, como dois pomos amargos, estarão murchos e disformes.

No magnífico conto Viagem aos Seios de Duília, de Aníbal Machado, José Maria, após mais de quarenta décadas de ausência e 36 anos de serviço público, como funcionário detentor de “competência e austeridade exemplar”, no dizer de Adélia, a moça que o saudou, enjoado do tédio da aposentadoria, empreendeu penosa viagem ao pequeno burgo de sua infância e adolescência, perdido nos socavões e cafundós das Minas Gerais, no sonho de encontrar os dois pomos encantadores de Duília, que ele entreviu apenas por alguns segundos.

O alumbramento durara apenas uns segundos, quando a jovem, talvez por piedade, lhe abrira o decote da blusa, mas estava durando uma eternidade. Ao final da desgastante viagem ao rincão de sua juventude, reviu a mulher. Estava velha e alquebrada. A beleza dos seios se perdera, sem deixar vestígios. No breve e amargo diálogo, o homem disse que fora à procura de seu passado. A mulher retrucou:
- Viajar tão longe para encontrar com uma sombra! Veja a que fiquei reduzida.

E ainda o advertiu de que ele não deveria ter voltado ao lugar de suas primeiras ilusões. Eram apenas duas sombras, que não conseguiram se encontrar. José Maria não reviu a mulher, cujos seios altivos e exuberantes lhe encantaram por fugidios segundos, em sua adolescência. Viu apenas a ruína do que ela fora. E ele próprio era o escombro de si mesmo. Da mesma forma, seguindo a admoestação de Duília, talvez não seja recomendável retornar à “cidade invisível” de nossa saudade, que talvez, à semelhança da cidade mítica de Maurília, remanesça somente em nossa memória ou em antigos e encardidos cartões-postais.

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