31 de outubro Diário Incontínuo
AS ESPIGAS FURTADAS
Elmar Carvalho
É um tanto comum, hoje em dia, atribuir-se a culpa da
falta de limites de muitos jovens às leis, especialmente ao Estatuto
da Criança e do Adolescente. Esses arautos dizem que o estado
interfere demasiadamente na família, sobretudo na maneira de os pais
criarem os filhos. Apregoam que as crianças não podem receber
surra, nem mesmo leves palmadas, e não podem ser colocadas para
trabalhar. Alegam que esses dois itens – castigo e trabalho –
eram importantes na educação e formação moral de um jovem.
Talvez essa análise seja simplória, e não seja
correta. O que parece, em muitas famílias, é que os filhos não são
observados de perto pelo pai e pela mãe, que em muitos casos
trabalham em empregos fora de casa. Desse modo, os infantes, sob os
cuidados de empregadas ou de avós, não seriam admoestados em seus
deslizes, e se acostumam a fazer o que bem entendem. Já com doze ou
mais anos, quando os pais querem lhes impor regra e disciplina, se
rebelam e não aceitam as recomendações paternas, porquanto a isso
não foram acostumados desde tenra idade. Sou da opinião de que a
formação moral e a disciplina devem começar já a partir dos
primeiros anos de vida.
Com relação ao trabalho, outrora os lavradores,
sobretudo, tinham muitos filhos, tanto por falta de educação no
planejamento familiar, como porque alegavam que os filhos eram a
riqueza dos pobres. Desde os oito para os dez anos, colocavam os
menores para lhes ajudar nos serviços de agricultura, mesmo porque
poucas localidades dispunham de escolas. Como a prole era enorme, os
lavradores contavam com a ajuda de filhos até ficarem velhos, ou não
tão velhos assim, já que a expectativa de vida era muito baixa,
sendo que um rurícola de 45 anos de idade já parecia um ancião,
com a pele enrugada, os dentes extirpados ou cariados e os cabelos
encanecidos.
Desse modo, os filhos trabalhavam para os pais até
constituírem suas próprias famílias, sendo os mais velhos
substituídos sucessivamente pelos irmãos mais jovens. E haja parto
e haja menino. De qualquer sorte, todos continuavam a dar dia de
serviço para os velhos pais, ao menos em relação aos serviços
mais pesados, como broca, derrubada e capina, através do sistema de
troca de diárias (ou não), no chamado regime de economia familiar.
De algum tempo a esta parte os lavradores passaram a ter a
aposentadoria rural, que lhes dá uma certa dignidade e conforto.
Todavia, como é fácil de se notar, por ser óbvio, se
o garoto ia para o trabalho, não poderia frequentar a escola, e isso
contribuía para que os filhos dos mais pobres e analfabetos
continuassem analfabetos, e situados entre os mais pobres. Foram
infantes que praticamente não tiveram infância, pois em sua faina
pesada não brincavam. Nessa época a disciplina era muito rigorosa,
geralmente vigorando a lei da chibata, em casa, e a da palmatória,
na escola. Para certos mestres, a palmatória parecia ser mais
importante que a Cartilha de ABC ou a tabuada. Parecia o emblema da
educação rude desse tempo antigo, em que os alunos eram
sabatinados, e a cada resposta errada eram “contemplados” com um
“bolo” ou palmada aplicada com esse instrumento.
Ao falarmos sobre os rigores da educação de
antigamente, um amigo contou-me o fato que passo a narrar, e que
ilustra um pouco o que tentei transmitir neste breve registro. O Duda
– é esse o nome do meu amigo, paulista do interior – frequentava
livremente o sítio de um amigo de seu pai, que ficava perto do de
sua família. Era considerado pelo casal de proprietários como se
fosse um filho, e eles tinham a maior satisfação com as suas
constantes visitas, com direito a merenda e refeições.
Numa dessas visitas, o Duda viu várias espigas
empilhadas em determinado local da varanda. Os grãos estavam tenros,
macios, dourados, prontos para serem cozidos ou assados. O garoto,
sem nenhuma malícia, muito menos a menor ideia de que estivesse
fazendo algo errado, escolheu quatro ou cinco espigas e as colocou na
garupa de sua bicicleta, e retornou para a casa de seu pai. Ao
chegar, as colocou perto de seu calçado, em seu quarto, sem dar
maior importância ao episódio.
Quando seu pai, que era médico, retornou do serviço,
logo notou a presença do milho perto dos sapatos do filho.
Imediatamente lhe perguntou sobre a origem das espigas, tendo o rapaz
contado o fato, sem nenhuma omissão, e sem nenhum sentimento de
culpa, mesmo porque achava nada ter feito de errado. O pai
explicou-lhe que ele furtara as espigas, uma vez que não as pedira
aos donos, e mandou que ele, em sua companhia, fosse devolvê-las.
Assim foi feito. Os donos do sítio até se agastaram
com o pai do Duda, pois disseram que ele era como um filho para eles,
e tinha toda a liberdade para levar quantas espigas quisesse; que ele
levara o que na verdade lhe pertencia, porquanto eles jamais lhe
negariam alimento. O médico não aceitou a justificativa, e o certo
é que esses amigos ficaram um tanto distanciados, por causa desse
incidente, durante algum tempo. Contudo, esse episódio parece ter
contribuído de forma poderosa na formação moral do Duda, uma vez
que ele não mais praticou fato semelhante.
Acrescentou-me que certa feita, já casado, passou por
um belo e grande milharal, em que não havia cerca. Como sua jovem
mulher desejasse obter duas ou três espigas, o Duda preferiu
caminhar mais de um quilômetro, até chegar à casa do proprietário,
embora elas estivessem ao alcance da mão de quem percorresse aquela
estrada. Bateu palmas, até aparecer o agricultor. O meu amigo
contou-lhe o sucedido, e propôs comprar quatro ou cinco espigas. O
fazendeiro, com cara de pouco amigo, retrucou de forma ríspida,
peremptória e abrupta:
– Não vendo e não dou!
Deixo que cada leitor tire a sua própria conclusão
desse caso mais do que emblemático, e que pode ser uma grande lição
de vida.
Embora, certas circunstâncias nos façam pensar que não vale a pena sermos corretos, pra cada uma delas, podemos nos apegar a outras dez situações que nos provam o contrário.
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