quinta-feira, 18 de abril de 2013

A GÊNESE DE “VIDA IN VITRO”




18 de abril   Diário Incontínuo

A GÊNESE DE “VIDA IN VITRO”

Elmar Carvalho


Uma de minhas mais antigas lembranças é uma visão noturna de Campo Maior. Não sei se a conservo fiel, tal qual teria acontecido, ou se ela foi desfigurada pelo tempo, roída pelo esquecimento ou se acrescida por outras lembranças posteriores. Não sei o contexto em que ela aconteceu, e já pouco me recordo de fatos ocorridos um pouco antes ou um pouco depois.

Vinha de uma viagem com meu pai, trazendo-me ele em sua bicicleta; não sei sequer, ao certo, se eu vinha na garupa ou no varão do veículo. Era já início de noite, quando atingimos as colinas que antecedem o bairro Flores, percorrendo a estrada, então de piçarra, que liga Barras a Campo Maior. Sei que vi, ao longe, as luzes do casario. Perguntei algumas coisas a respeito, tendo meu pai me respondido que já estávamos chegando, e aquelas eram as luzes das casas. Foi uma visão surpreendente para mim, e, em minha infância, a achei de uma beleza ímpar e mágica.

Senti uma forte emoção ao imaginar que em cada uma daquelas casas, sinalizadas pelas luzes, morava uma família, moravam meus semelhantes, pessoas que poderiam ser minhas amigas, com as quais eu poderia conversar, interagir. Talvez, na soledade noturna das campinas, apenas eu e meu pai, envolvidos por esmagadora escuridão e silêncio, eu tenha sentido as luzes da cidade como um alegre sinal de esperança. Senti de forma intensa, como nunca mais voltei a sentir, a minha humanidade, a minha comunhão com a raça humana, da qual faço parte e à qual desejo eternamente pertencer.

Foi apenas por um curto momento, mas pareceu-me entrar em cada uma daquelas casas, e reconhecer cada um de seus moradores como um semelhante, um próximo, um amigo. Foi como se eu os reconhecesse como um parente ou mesmo um igual a mim. Foi uma espécie de magia, uma revelação, um insight inexplicável, que talvez tenha durado apenas um átimo de segundo, mas que, embora de forma esfumaçada, ainda perdura até hoje, como um resquício de algo que nunca acabou de todo.

Muitas décadas depois, voltando de uma viagem a serviço da Sunab, vi, do alto da rodovia, as luzes das casas do residencial Promorar, em Teresina. Não sei se me retornou a lembrança do que acabei de descrever, mas o fato é que me senti irmanar a cada uma das pessoas que habitavam aquelas pequenas casas, que eu sequer conhecia. Imaginei que cada uma delas fosse um pequeno mundo, com alegrias, tristezas e mesmo tragédias.

Imaginei que naqueles lares poderia haver obscuros heroísmos do cotidiano, vícios e pecados ocultos, bem como admiráveis e secretas virtudes. Desejei escrever um longo poema sobre tudo isso, como se a máquina da existência humana se houvesse escancarado para mim. Numa madrugada de insônia e ansiedade, fato raro de me acontecer, rascunhei esse poema. Contudo, o abandonei, porque não lhe encontrei a qualidade que eu gostaria que tivesse.

Por longos meses continuei a ruminar esse poema, a desejar escrevê-lo, com sofreguidão. Mas ele, como uma fêmea manhosa e arredia, se entremostrava, mas depois se esvanecia, quando já quase se entregava. Porém, certo dia, quando eu retornava da cidade de São Pedro do Piauí, no tempo em que eu ainda era juiz substituto, escrevi, ainda cansado da viagem, de um só fôlego, esse arisco poema, que hoje pode ser fisgado nos mares internéticos. Dei-lhe o título de Vida in Vitro. Era como eu via, pelo menos no momento em que o escrevi, a minha vida e a dos outros. A vida em sua grandeza e miséria, em suas virtudes e vicissitudes, em seus abismos e cordilheiras, ostentação e mistério.

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