quarta-feira, 17 de abril de 2013

Os dias do golpe



Fonseca Neto

Dizem que hoje é o “dia da mentira”. E eu digo: legal fosse mentira o golpe de 64 e a ditadura que implantou. 
Eu tinha onze anos recém-completados. Morava na minha cidade natal, Passagem Franca, uma “nesga de sertão” dos cocais maranhenses, cheirando a mel no estio. Estava no quarto ano Primário e minha professora, Jacira Fernandes Silva. Recordo aqueles dias cruciais puxando fios de lembranças inapagáveis. 
Tudo por lá se acompanhou pelo rádio. A “rádia” noticiosa mais falada, a Globo do Rio de Janeiro –além da Nacional. Também a Clube de Pernambuco e a Sociedade da Bahia (noite). O “Repórter Esso” dominava.
E como eu sabia de alguma coisa? Lá em casa não tinha rádio e na cidade não eram mais que dez ou quinze deles, residências dos funcionários federais, prefeito, padre, tabeliães e de algum comerciante mais laborioso. Eu morava ao lado da agência do IBGE, e da casa do agente, Wilson Moreira de Sousa, um dos homens mais antenados (literalmente) da cidade –advogado provisionado e “farmacêutico”, era o “intelectual orgânico” da “política” local.
Comum se reunirem em sua casa as lideranças da cidade para conversas rápidas logo após os noticiários, sobretudo depois de ouvirem a “Voz do Brasil”, por lá chamada de “Hora do Brasil”. Naqueles dias não se falava noutra coisa: “dava” nos rádios e eles comentavam uns com os outros, que estava começando uma “guerra civil” e os militares iam depor o presidente Jango porque ele estava entregando o Brasil para o “comunismo”. Conservo em minha mente fiapos daquelas conversas na casa de “Seu” Wilson: eu por ali a brincar com o Wilsinho, seu filho, sem me passar em vão aquele entra sai na casa dele. O secretário da prefeitura, Mundico Paé, o coletor estadual, João Brasil, o federal, Zé Raimundo Novo, outros.
Nada me é mais viva na lembrança que a menção à “guerra”, aos “comunistas” e “estado de sítio”. E exatamente essa a ênfase que os locutores bradavam naquele tom de fim de mundo e a conversa de “guerra” o que mais assustava as pessoas comuns. Expulsar “comunistas” do Brasil dava certo alívio, sobretudo na criançada, porque sempre se ouvira dizer que passariam por lá “uns comunistas [ora diziam uns russos] chupando o sangue das crianças”. Pais usavam essa ameaça para assustá-las ante as danações do dia-a-dia: “amanhã ninguém sai de casa porque os russos já estão em São João dos Patos...!”.      
Lembro-me bem naquele 1º de abril o boato sobre a “fuga do Jango”, “asilo” de fulano, “prisão” de beltrano –políticos famosos do tempo. Nesse e nos próximos dias, “os rádios” tocando somente dobrados militares e o noticiário lendo boletins da “Revolução”. “Os militares iam governar”. Lembro vivamente que aqueles “políticos” (parece) não celebravam esse governo sem eleição e diziam que tinha “voltado a ditadura” –agora sei que era uma menção ao chamado Estado Novo varguista (1937-45). E os que menos achavam vantagem eram os “correligionários” do prefeito (Anastácio Borges de Araújo). Por quê? Porque com essa conversa de “ditadura” só se falava em “intervenção federal” no município (tal em 37) e se o interventor ia ser um deles ou se viria de fora. Também se especulava muito que o município poderia ser extinto –tal em 1930. Lembro-me do padre falando alguma coisa na Igreja, explicando que “comunista” chupar sangue de criança era fantasia; também de uma professora (Carmelita Almeida) desfazendo isso...
Pois é, a “política” era coisa de gente grande e rica; pobre não deveria se meter –lembro bem dessa noção, ouvida de pai, mãe, tios, avós. Como sei que as pessoas comuns só tinham interesse, ali, na eleição do prefeito, um município já então com mais de 120 anos e que apenas duas “alas” (expressão do tempo) mandavam: o “povo” dos Vasco e Borges e os Cardoso da Silva. “Alas” que logo após 64 se organizaram na Arena 1 e na Arena 2. O MDB, “oposição”, chegou até a eleger um vereador, que logo eleito virou Arena.
Muitos sabemos hoje que a principal arma para dar o golpe e destruir aquele intento democrático de Jango foi a Imprensa, jornal e Rádio Globo à frente. Lição golpista que não se pode esquecer.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário