Fonseca Neto
Dizem
que hoje é o “dia da mentira”. E eu digo: legal fosse mentira o
golpe de 64 e a ditadura que implantou.
Eu
tinha onze anos recém-completados. Morava na minha cidade natal,
Passagem Franca, uma “nesga de sertão” dos cocais maranhenses,
cheirando a mel no estio. Estava no quarto ano Primário e minha
professora, Jacira Fernandes Silva. Recordo aqueles dias cruciais
puxando fios de lembranças inapagáveis.
Tudo
por lá se acompanhou pelo rádio. A “rádia” noticiosa mais
falada, a Globo do Rio de Janeiro –além da Nacional. Também a
Clube de Pernambuco e a Sociedade da Bahia (noite). O “Repórter
Esso” dominava.
E
como eu sabia de alguma coisa? Lá em casa não tinha rádio e na
cidade não eram mais que dez ou quinze deles, residências dos
funcionários federais, prefeito, padre, tabeliães e de algum
comerciante mais laborioso. Eu morava ao lado da agência do IBGE, e
da casa do agente, Wilson Moreira de Sousa, um dos homens mais
antenados (literalmente) da cidade –advogado provisionado e
“farmacêutico”, era o “intelectual orgânico” da “política”
local.
Comum
se reunirem em sua casa as lideranças da cidade para conversas
rápidas logo após os noticiários, sobretudo depois de ouvirem a
“Voz do Brasil”, por lá chamada de “Hora do Brasil”.
Naqueles dias não se falava noutra coisa: “dava” nos rádios e
eles comentavam uns com os outros, que estava começando uma “guerra
civil” e os militares iam depor o presidente Jango porque ele
estava entregando o Brasil para o “comunismo”. Conservo em minha
mente fiapos daquelas conversas na casa de “Seu” Wilson: eu por
ali a brincar com o Wilsinho, seu filho, sem me passar em vão aquele
entra sai na casa dele. O secretário da prefeitura, Mundico Paé, o
coletor estadual, João Brasil, o federal, Zé Raimundo Novo, outros.
Nada
me é mais viva na lembrança que a menção à “guerra”, aos
“comunistas” e “estado de sítio”. E exatamente essa a ênfase
que os locutores bradavam naquele tom de fim de mundo e a conversa de
“guerra” o que mais assustava as pessoas comuns. Expulsar
“comunistas” do Brasil dava certo alívio, sobretudo na
criançada, porque sempre se ouvira dizer que passariam por lá “uns
comunistas [ora diziam uns russos] chupando o sangue das crianças”.
Pais usavam essa ameaça para assustá-las ante as danações do
dia-a-dia: “amanhã ninguém sai de casa porque os russos já estão
em São João dos Patos...!”.
Lembro-me
bem naquele 1º de abril o boato sobre a “fuga do Jango”, “asilo”
de fulano, “prisão” de beltrano –políticos famosos do tempo.
Nesse e nos próximos dias, “os rádios” tocando somente dobrados
militares e o noticiário lendo boletins da “Revolução”. “Os
militares iam governar”. Lembro vivamente que aqueles “políticos”
(parece) não celebravam esse governo sem eleição e diziam que
tinha “voltado a ditadura” –agora sei que era uma menção ao
chamado Estado Novo varguista (1937-45). E os que menos achavam
vantagem eram os “correligionários” do prefeito (Anastácio
Borges de Araújo). Por quê? Porque com essa conversa de “ditadura”
só se falava em “intervenção federal” no município (tal em
37) e se o interventor ia ser um deles ou se viria de fora. Também
se especulava muito que o município poderia ser extinto –tal em
1930. Lembro-me do padre falando alguma coisa na Igreja, explicando
que “comunista” chupar sangue de criança era fantasia; também
de uma professora (Carmelita Almeida) desfazendo isso...
Pois
é, a “política” era coisa de gente grande e rica; pobre não
deveria se meter –lembro bem dessa noção, ouvida de pai, mãe,
tios, avós. Como sei que as pessoas comuns só tinham interesse,
ali, na eleição do prefeito, um município já então com mais de
120 anos e que apenas duas “alas” (expressão do tempo) mandavam:
o “povo” dos Vasco e Borges e os Cardoso da Silva. “Alas” que
logo após 64 se organizaram na Arena 1 e na Arena 2. O MDB,
“oposição”, chegou até a eleger um vereador, que logo eleito
virou Arena.
Muitos
sabemos hoje que a principal arma para dar o golpe e destruir aquele
intento democrático de Jango foi a Imprensa, jornal e Rádio Globo à
frente. Lição golpista que não se pode esquecer.
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