terça-feira, 25 de junho de 2013

Gorender: as luzes do combatente


Gorender: as luzes do combatente

Fonseca Neto

Um herói? Não. Um lutador pela causa dos oprimidos. O que em geral se chama de herói não passa de invencionice.

A luta dos trabalhadores perdeu um militante e o Brasil um de seus melhores intérpretes. Refiro-me a Jacob Gorender: nonagenário, pois nasceu em 1923, trata-se de um brasileiro notável por seu engajamento vontadoso da construção do mundo livre das colonizações. Historiador com lugar destacado entre os mais respeitados. 

Nascido e criado em solo baiano, sua caminhada o levou a defender o ideal de liberdade contra o nazi-fascismo em terras da Itália, em 1943 – já então um militante comunista – integrando a Força Expedicionária Brasileira. Ao contrário da maioria que apenas quis derrotar Benito e Adolf, mas não os processos sociais e políticos que explicam o regime que lideraram, aprendeu Gorender que as chamadas “guerras mundiais” são explicativas de um conjunto de misérias que nem de longe os “aliados” e sua linha política hegemônica quiseram superar. Na construção do seu destino pessoal e social, a guerra certamente concedeu-lhe a experiência sensível de reviver o drama de seus próprios pais, judeus não sionistas, afugentados no velho Império Russo e migrados para a Bahia.

Aliás, tal circunstância explica seu itinerário de lutador social contra as opressões. Nathan Gorender, pai, um ucraniano; a mãe, Anna, da Bessarábia. Nathan, militante de esquerda, marxista, que, inclusive, participou das jornadas de 1905: “viu ancorar em Odessa o Encouraçado Potemkim”, contou mais tarde Jacob, o filho historiador brasileiro.

A formação intelectual de Jacob Gorender foi, assim, e na orientação essencial, forjada no calor da luta. Frequentou escolas em Salvador, chegou a iniciar o bacharelado em Direito, mas sua grandeza de pensador humanista e social explica-se por aquela forja, realizando-se num sentido de autodidatismo sem par. Costumava dizer que a circunstância de ter nascido na Bahia fora decisiva para estudar o horror da escravidão neste lado mundo – Bahia que é caldeira genuína do povo negro afro-brasileiro e notório ninho de lutadores da Esquerda.

De fato, um dos trabalhos de forte impacto no debate historiográfico de sua lavra, diz respeito ao “escravismo colonial” na América portuguesa. Debate de muita intensidade e gerador de polêmicas quentes na elaboração dos pensadores da Revolução proletária. Nesse sentido, a contribuição dele é particularmente corajosa porque ousou confrontar o “dogmatismo” de várias organizações de luta dos trabalhadores quanto ao referencial marxista, propondo releituras, por exemplo, de algumas análises de Caio Prado Jr. quanto ao dito escravismo.

A propósito, em pleno furor do ascenso neoliberal, em 1990, quando acabara de desmilinguir o Império Soviético, disse ele o seguinte: “A minha firmeza a respeito do marxismo como método de pesquisa e compreensão da vida social não foi afetada por esses acontecimentos. Eu continuo com a convicção de que o próprio marxismo pode explicá-los. Para isso, entretanto, é preciso que o marxismo seja entendido sem limitações de qualquer caráter dogmático e aplicado com inteira criatividade. O próprio marxismo precisa se renovar”.

Coerente, bafejado por vida longa, Gorender é reconhecido e ainda mais respeitado por muitos justamente pela qualidade e honestidade intelectual que demonstrou em fazer releituras revisionais de sua própria elaboração pretérita.

E ainda mais importante: examinar as novas conjunturas descortinadas sem perder as linhas analíticas essenciais sobre escravidão, movimento operário, partido, dentre outras questões centrais da vida e luta social na perspectiva da liberdade real e da justiça, para além da retórica. Outro exemplo de sua coragem intelectual-militante: sua escritura em “Combate nas trevas”, obra necessária por ajudar entender a arqueologia das opções dos lutadores quando “pegaram em armas” e na mira destas colocaram a Revolução.

Atacado à Direita – o que faz ainda mais realçar sua obra – foi, por essas qualidades elevadas (e sem “formatura”) admitido como um dos luminares da USP, laureado pesquisador do Instituto de Estudos Avançados, pelo qual publicou suas contribuições mais recentes.


Não morreria sem que visse ascender à presidência da República pelo voto popular sua companheira no cárcere do fascismo. Dois ícones do Brasil bonito que os capatazes do eito escravista atacam à luz do dia.

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