quinta-feira, 4 de julho de 2013

MEMORIAL DA CACHORRA BELINHA

Belinha

Anita e Belinha
Belinha, em dança solo
Belinha, observando o trabalho de Anita



4 de julho   Diário Incontínuo

MEMORIAL DA CACHORRA BELINHA

Elmar Carvalho

Aproximadamente nove anos atrás, uma vizinha perguntou a Fátima se ela não gostaria de ficar com a sua cadelinha, uma vez que não tinha condições de levá-la a clínica veterinária, para consulta e tratamento. Já criávamos a Anita, há alguns anos, desde recém nascida. Essa vizinha não maltratava a cadelinha, mas não cuidava bem dela; não lhe comprava ração adequada, não a levava para banho e tosa, e muito menos, periodicamente, a médico veterinário.

Minha mulher aceitou a oferta, mais por pena do animal, do que por desejo, já que a Anita nos era suficiente e nos alegrava com a sua presença e eventuais travessuras caninas. Seu nome era Belinha. A Anita não foi acolhedora, e se revelou muito ciumenta, ciosa de seu território doméstico, e se mostrou um tanto egoísta, se é que os cães têm esse sentimento tipicamente humano. Embora menor, escorraçava a nova inquilina com os seus latidos e rosnados. Chegava mesmo a inticar com a Belinha, mal esta se aproximava.

Contudo, a nova cadela parecia possuir inteligência emocional, e cultivava a política da boa-vizinhança. Não discutia, ou seja, não rosnava e não latia; se afastava, e procurava ocultar-se debaixo de algum móvel, ou em algum recôndito recanto. Entretanto, num dia em que a Anita abusou dos seus direitos e privilégios de prima donna, e quis mordê-la sem nenhum motivo aparente, a Belinha revidou e a mordeu com muita bravura, demonstrando que tinha coragem e não a temia, mas que apenas não queria confusão, ainda mais na qualidade de novata.

Continuou, com os seus modos tímidos e discretos, a aceitar a liderança e as pirraças da Anita, mas com o episódio acima narrado foi como se lhe tivesse dito: “Olhe, não tenho medo de você. Apenas a respeito, e quero ter o direito de viver em paz, sem brigas e sem discussões”. Com o passar do tempo, as duas passaram a ter uma convivência, não digo afetuosa, mas ao menos pacífica. Com a sua sabedoria de vida, com a sua diplomacia instintiva, sabedora de que a Anita tinha a preferência dos donos da casa, a Belinha lhe cedia passagem e espaço, e mantinha sempre respeitosa distância, cedendo-lhe sempre a primazia, mormente nos dias de “banquete”, que era quando, uma vez por semana, a ração era misturada com carne, que as duas adoravam.

Sempre tive a impressão de que a Belinha parecia possuir os bons sentimentos humanos, quase como se fosse um pouco humana. Um dia, a Anita teve uma hérnia estourada. Parte de uma víscera ficou exposta, o que a fez ganir por causa das dores, que deveriam ser dilacerantes. A Belinha alarmou nossa casa, a subir e a descer a escada várias vezes, com fortes latidos, chamando a atenção da Fátima para o problema de sua semelhante e rival, em admirável solidariedade, esquecida de tudo o que a outra lhe fizera, por mero ciúme.

Quando Belinha veio viver conosco, em pleno vigor físico, procurou nos cativar, quase como se fosse uma artista circense. Usando apenas as patas traseiras, fazia rodopios, movendo-se para os lados e para trás, com as patinhas dianteiras estendidas para nós. Parecia uma bailarina, a executar caprichosa dança. Até parecia capaz de executar um paso doble; creio que só não o fazia porque era modesta e não desejava despertar a ira da rival e voluntariosa prima donna. Era a sua maneira de nos conquistar, de atrair a nossa atenção e afeto. Sem dúvida, isso parecia provocar certo ciúme na Anita, que não sabia fazer esses requintados malabarismos.

Para que Anita não fique mal na “fita” desta crônica, devo dizer que ela não admitia que alguém ralhasse com a Belinha; latia vigorosamente contra quem quem quer que falasse alto com ela. Acrescento que quando Belinha foi acometida da doença de que veio a falecer, ela ficou muito triste, e não mais cometeu qualquer insolência contra ela. Ainda hoje continua triste, como se estivesse saudosa da companheira, que não mais verá. Parece ter em sua alma animal a intuição de que Belinha não mais existe nesta dimensão de que fazemos parte.

Logo no início, percebemos que Belinha demonstrava inexplicável medo de voz de homem, e procurava esconder-se debaixo dos móveis da casa, ou ficava retraída nos cantos mais esconsos. Tivemos, pouco depois, a explicação: antes de ela passar ao poder de nossa vizinha, fora criada em outra casa, em que o dono a tratava com brutalidade. Certamente, fora maltratada pelos seus primeiros donos, e guardou, ao que parece, traumas disso pelo resto de sua vida.

Todavia, aos poucos, perdeu o medo de minha voz e da voz de meu filho, porquanto nunca foi “castigada” por ninguém de nossa casa. Conservou, contudo, a sua humildade e timidez pelo resto de sua vida. Parecia ter acanhamento de sua simples presença, quase como se estivesse a pedir desculpas pelo fato de apenas existir. Chegava discretamente, como se estivesse tomando chegada, com receio de incomodar. Deixava sempre que a Anita escolhesse primeiro o lugar em que desejava ficar, para só então acomodar-se em posto de espera ou repouso, conforme o caso.

Tinha, porém, o defeito de ser “espiã”, se é que podemos aplicar esse conceito aos animais. No momento em que íamos fazer as refeições ou merendar, vinha plantar-se perto de nós, embora procurando não incomodar e sem fazer exigências, com latidos ou rosnados. Apenas esperava as migalhas caírem, ou que eu deixava cair, como se não fosse de propósito. Comia de tudo, inclusive frutas e bombons. Minha mulher reclamava, para que eu não atirasse pedaços de comida, a fim de que ela não ficasse mal-educada ou mal-acostumada. Se eu tivesse previsto que ela já estava perto do termo de seus dias, talvez tivesse simulado deixar escapar mais vezes essas migalhas de que a cadelinha tanto gostava.

De poucos meses a esta parte, notamos que Belinha vinha perdendo de forma acentuada a sua força vital. Envelhecia de maneira muita rápida. Perdia suas habilidades e capacidade motora. Também começava a perder a visão. Já não subia a escada da casa com a rapidez e a habilidade de antes. Subia cada degrau lentamente, em passos curtos, como se estivesse fazendo um grande esforço; muitas vezes precisava descansar por alguns momentos, quando antes executava essa subida em vertiginosa velocidade e sem o menor indício de cansaço. O médico veterinário, diante do resultado dos exames, disse que, além de outras doenças, ela estava acometida de reumatismo e artrose. Contudo, mesmo ante as atrozes dores que deveria sentir, não gemia e nem se inquietava; deitava-se no cantinho que escolhia, tudo suportando com absoluta resignação, talvez também no intuito de não incomodar ninguém.

Quando notamos que a sua situação começava a se tornar grave, pois ela, em certos momentos, sequer conseguia andar, a internamos em uma clínica. No domingo pela manhã fomos visitá-la. Como ela quase não demonstrasse alegria com a nossa chegada, eu disse para a Fátima que o seu estado de saúde deveria ser muito grave, pois quando íamos buscá-la, nas vezes em que a levávamos para tomar banho ou fazer tosagem, ela ficava muito feliz e animada com a nossa presença, porquanto era um sinal de que não fora abandonada e de que voltaria a seu território e lar.

Nessa visita constatei um fato digno de registro, e que muito me emocionou. Uma senhora, de aspecto humilde, tanto pelo porte físico como pelo vestuário, e que não ostentava o menor aspecto de matrona, visitava um vira-lata, que não mais conseguia caminhar. Ela o encontrara na rua, abandonado, desvalido, sem a menor capacidade de locomoção; com a ajuda do marido, o colocou em seu carro, e o levou para fazer tratamento nessa clínica, à sua custa. Além de visitar o cão doente, ainda colocava comida em sua boca, na tentativa de salvá-lo de uma morte que parecia iminente. Infelizmente, não lhe indaguei o nome; apenas guardei em meu coração o seu gesto solidário, humanitário, de profunda generosidade.

Uma hora após chegarmos a nossa casa, o telefone tocou. Foi-nos dada a notícia de que Belinha acabara de morrer. Imediatamente, tomei a decisão de cumprir uma promessa que eu já anunciara; iria enterrar nossa cadelinha perto de um memorial, à margem da BR 343, um quilômetro após a ferrovia que passa na periferia da cidade de Altos. Esse pequeno monumento, com a sua branca cruz estilizada de ferro, foi erguido por meu irmão César Carvalho (Neném) em memória de nosso cunhado e amigo José Henrique Andrade Paz, que ali sofrera um acidente, do qual veio a falecer. Ao passar pelo local, recordarei o meu amigo e recordarei a minha cachorrinha, e terei o sentimento de que ambos estarão em boa companhia, onde quer que estejam, talvez numa das dimensões de que nos fala a mecânica quântica.

Pessoalmente, por volta das 17 horas, cavei a sua pequena cova, com a ajuda do casal César Pinho e Simone, sobrinha da Fátima, e nela depositei o seu corpo, com todo respeito e cuidado, como se fosse um tesouro, ao pé da cruz do memorial do Zé Henrique. E isto me faz lembrar os imortais versos de Guerra Junqueiro, que, com pequena adaptação, que deixo a cargo do leitor, vêm a calhar: “Toc, toc, toc, como se espaneja, / Lindo o jumentinho pela estrada chã! / Tão ingênuo e humilde, dá-me, salvo seja, / Dá-me até vontade de o levar à igreja, / Batizar-lhe a alma pra a fazer cristã!” Sem dúvida, com a sua humildade, com a sua generosidade e a sua capacidade de resignação diante do sofrimento, tinha virtudes que devem ornar o espírito de um verdadeiro cristão.


Hoje, quando vou fazer as minhas refeições, tenho a sensação de que vejo o vulto discreto e sutil de Belinha aproximar-se de mim, agora ainda mais sutil e modesto, e quase lamento não lhe ter “deixado cair” mais generosas migalhas de guloseimas e quitutes, mesmo sob a reprovação bem-intencionada de minha mulher. Para sempre sentirei saudade dessa tímida, discreta e meiga cadelinha, que sobretudo me deixou o exemplo de resignação diante do sofrimento e das limitações que suportou com bravura, sem queixas e sem gemidos, sem rosnados e sem grunhidos.    

3 comentários:

  1. Eu tenho um cachorrinho pincher de aproximadamente uns 14 anos, já não tem a mesma mobilidade, muito companheiro, ciumento, arisco, mas o bichinho não tá bem de saúde, só estou imaginando quando ele partir, agora mesmo tá aqui me dando um beijo na perna. Um casamento pode se desfazer em pouco tempo, já a relação entre um humano e seu bicho de estimação, quase sempre, cumpre o "até que a morte os separe"

    "Podemos julgar o coração de um homem pela forma como ele trata os animais" (Immanuel Kant)


    hl/sp

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  2. Lindo texto. Muitas saudades de Belinha. Com certeza ela era menos chata que Anitinha.

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  3. Pai, essa primeira foto não é a Belinha, é a Anita...emocionante o texto!

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