quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Em cada conta um lamento


Fonseca Neto

Ainda começando e já um agosto rico em lançamento de livros em Teresina. Já não mais só em junho, no Salipi, essas traquinagens literárias.
Em cada conta um lamento - incelências, benditos e rezas”, de autoria da professora Marluce Lima de Morais, foi lançado em sessão autógrafa muito concorrida, dia seis. Livro destinado a muita repercussão, tocando o tema comum da morte, no caso específico, o “morrer” no Piauí. Melhor dizendo: o “morrer” enquanto evento que mexe com todas as pessoas e que sempre impacta as relações do viver comunitário. Fato que retempera mitos e místicas.
Marluce é recém-egressa da Ufpi, onde fez graduação e mestrado em História, e o livro é justamente o texto de sua Dissertação sobre os ritos – ou liturgias populares – da morte, estudo que realizou em rica confluência interdisciplinar, especialmente lidando com chaves conceituais e interpretativas também frequentes entre antropólogos, etnólogos... E tudo muito bem costurado com estes, pois, instalada nas oficinas de Clio e de suas escrituras, aventurou-se no mundo da memória e na memória do mundo de seus sujeitos de pesquisa.
Tal a Malu, autora, somos quase todos nascidos nestes sertões de muitos saberes e fazeres no que diz respeito à religiosidade cristã-católica dita “popular”, forjada nas linhagens medievas transpostas para este lado do Atlântico por obra do intruso europeu. Com efeito, as experiências sensíveis que ela submete ao foco de sua investigação ao modo de ciência, encontram-se entranhadas no seu universo vivencial, familiar, de vizinhança, de localidade, enfim, de tradições. No caso, o município de Alto Longá, de onde seus pais, e os avoengos, são naturais e socialmente fabricantes dos modos de viver herdados por via das citadas linhagens, em que pese as solicitações de uma modernidade tardia e de baixo impacto por ali.  
Intitulou certo autor um livro – que virou referência – afirmando que “a morte é uma festa” (João José Reis). Estuda os ritos fúnebres do Brasil antigo, especialmente da Bahia soteropolitana. Pois Malu buscou esses rituais conforme são feitos nos costumes da velha região do antigo curato de Nossa Senhora dos Humildes do Alto Longá – a titular das “contas” – lugar de moradores dedicados à pequena criação e lavoura. Hoje um lucrativo ramo de negócios, os velórios, caixões, féretros e tumbas, mas nas zonas rurais ainda há os orantes da “boa morte” em sentinelas diante de corpos arquejando; há benditos, benzeções, a vela à mão na hora do suspiro final. E também as incelências, cantos lacrimosos para carpir em dor profunda. Para espíritos desprevenidos, assustadoras incelências cortando o silêncio das madrugadas em lâminas agudas. Sabe-se de carpideiras de contrato em meio às carpideiras parentais dos defuntos.
Pesquisou ela nos costumeiros arquivos e literaturas, mas suas fontes são preferencialmente a fala dos sujeitos e a observação participante. Lembrou a própria Malu, ao narrar, no lançamento, sobre o recorte temporal e a trajetória da pesquisa, os ritos funerais de sua própria avó, incrivelmente se fazendo fonte e laboratório de seu objeto, o qual tratou com pertinentes referenciações teóricas e metodológicas. E, claro, a partir de situações fáticas amplamente conhecidas, além de documentadas.
Em cada conta...” exprime o que essa nova historiadora amealhou ao chacoalhar as estruturas mentais piauienses quando atingidas pelo evento morte; os sentimentos em explosão eletrizando as células do corpo e cotidiano coletivos. Dir-se-á, um acontecimento cabal no destino humano, a finitude, afetando a micro história de cada um, em particular.
Malu foi orientada na elaboração desse trabalho de mestrado pela doutora Áurea da Paz Pinheiro, líder do nosso Grupo de Pesquisa “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural” (CNPq), na Ufpi. É também Áurea que prefacia a edição, que sai pela Vox Mvsei – Arte e Patrimônio, dizendo que ela pode ser “apreciada por doutos e leigos”. Aliás, doutos e leigos de Portugal já se anteciparam na apreciação, uma vez que o livro foi lançado em Lisboa ainda em julho.
A autora é jovem docente do Ifpi, em Uruçuí, e que a partir deste mês servirá em Oeiras, a póvoa dagobertiana do Mocha.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário