segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Zé Preto da Pixurica

Foto meramente ilustrativa

Fonseca Neto

Famoso na Passagem. Marceneiro com oficina num pequeno salão de porta para o largo da Matriz. Altivo. Amigo de todos. Brincalhão e festeiro.
De menino, lembro dele, alto, esguio, rosto marcado, com peças de cedro e de outras madeiras, suor pingando, a confeccionar os mais diversos tipos de artefato. E a lembrança é ainda mais forte dos velórios e caixões de defunto, tipo de acontecimento que, de uma ou de outra forma, sempre impactou a vida comunitária desde os primeiros ajuntamentos humanos: Zé Preto era o mais exímio fazedor de urnas funerárias de nossa cidade. Dependendo das condições financeiras dos encomendantes, fazia caixões mais ou menos fornidos e enfeitados. Para defuntos “adultos/casados”, caixões cobertos de tecido preto, com galões prateados pregados com tachinha pelas laterais e na tampa; caixões de solteiro com pano azul; de crianças (“anjos”), branco. 
Cidade com iluminação elétrica até às nove e meia da noite, Zé Preto tinha a habilidade de ajeitar Petromax e os tinha em quantidade para aluguel. Assim, nas noites de velório, no pacote da encomenda do caixão, incluía o fornecimento desses então sofisticados candeeiros de luz. Guardo viva a lembrança do Zé descendo a rua do Grajaú com seus Petromax acesos. Ou por outra, carregando um caixão vazio ao ombro rumo à casa do falecido. Se a morte ocorria à tarde, todos já ficavam sabendo que naquela noite a cidade não dormiria porque a batida do martelo lá na sua oficina seria ouvida até à “ponta da rua...”. Eram os anos de 1960 e em alguns velórios ainda se cantava as incelências, assustadoras. Mas o Zé também era quem socorria a iluminação dos bailes de família e até as noitadas da zona do “pecado” lá do Morro do Mandacaru –e da baixa do Pau d’Arco.
Uma figura o Zé, ligado às tradições negras do povo negro do Bom Lugar, fora a vida inteira um acatado capitão do Mastro, na festa da Lavandeira, “dia de preceito”. Sua ronqueira célebre, uma das primeiras a anunciar o início da festejo de São Sebastião, à meia noite de nove para dez de janeiro. Quando o mastro chegava à sua porta, na tarde do dia 10, mais tiro de ronqueira, pinga, frito, ovos; e um tiro de velho rifle 44... E são quase indescritíveis as feições ardorosas dele, à frente, e de muitos negros naqueles instantes de celebração dessa folgança devota –aliás, vi algo parecido recentemente, em São Luís, numa celebração de 29 de junho, uma dúzia de nonagenários negros, belos, portando e fazendo rufar enormes caixas e bombos rituais feitos de tronco, na festa dos bumba-bois da tradição. 
Além do dia da Lavandeira, toda a quermesse do padroeiro São Sebastião parecia feita para ele, morador nos vagos dos fundos da Igreja, vizinho do “pade”. Nessa época, o “terreiro” de Zé e Pixurica ficava repleto de vendedores de balão e suas cápsulas de carbureto; vendedores de refresco, pirulitos e bombons diferentes dos que se via nas quitandas o ano todo; por ali, malas-tabuletas de joias de verdade e de “fantasia”; Zé acolhia uma ou outra banca de Roda do Jogo do Bicho em sua porta...  
Nas festas de negro, no salão de seu quase vizinho João Preto, assim nas festas dos “artistas” e “operários”, na União, dia 1º de Maio, lá estava o Zé, de paletó branco. E no mesmo lugar, nos bailes de branco, em mangas de camisa, era o porteiro. 
Boas lembranças dele e de dona Maria Pixurica, esposa dedicada. Ele morreu relativamente novo e, pelo inesperado, chocou a cidade por muito tempo e a crônica do fato assim se resume: caiu doente e aplicaram-lhe uma injeção; infeccionou absurdamente, virou um abcesso e morreu de um dia para o outro. Pixurica prostrou-se em luto profundo e dizia que não o tiraria nunca mais. Os filhos ficaram já criados.
O nome dele de registro era José Pereira de Sena. Serviu à cidade, respeitado em sua arte, ofício e bem-querença. Das Áfricas: cidadão da Passagem Franca da minha infância.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário