Fonseca
Neto
Antigos narradores e historiadores já afirmavam ser o Piauí uma terra de transição. E é: não somente de povos, mas o é igualmente sua natureza dadivosa entre as matas abertas amenas e a imensidão da selva amazônica. Até antes de ser Piauí a população deste vale movia-se pelo que hoje se chama de Ceará, Maranhão, Tocantins.
Claro,
não seria por uma terra assim que deixariam de transitar os ciganos,
espécie de linhagem que há mais de quinze séculos, a partir da
Índia, vive em permanente diáspora. Para este lado do Atlântico,
vieram rente às primeiras levas de colonizadores e, em geral, na
condição de “degredados”. E degredados, além de misteriosos, e
sempre perseguidos, vivem pelo Brasil afora. Na minha Passagem Franca
natal, décadas atrás, nos dias em que passavam “os ciganos”,
crianças ficavam mais em casa que na rua para não ser “enganadas”
por eles. Na França, a propósito, relembre-se, há um mês, ninguém
menos que o presidente da República arbitrando conflito envolvendo
uma família “cigana”.
Em
1913, intensa foi a movimentação deles em terras piauienses,
especialmente no norte, caracterizando certo mal-estar na população
de povoados, vilas e cidades. Forte boataria espalhou-se desde a
microrregião da velha Barras, de que por ali havia entrado uma horda
de ciganos e por isso grande era a “correria” de todos.
Telegramas alarmantes chegavam aqui em Teresina e governo e jornais
se encarregavam de atemorizar ainda mais a população. No Peixe,
hoje NS dos Remédios, houvera saque. Ameaçada estaria, inclusive, a
antiga povoação do Retiro da Boa Esperança –naquele ano de 1913
completando duzentos de sua fundação, dada em 1713.
“Um
enorme bando de ciganos, [...] errantes, malfazejos e exploradores,
que não têm pouso fixo e vivem de terra em terra a explorar e
iludir o nosso sertanejo na sua boa fé, [...] invadiu e saqueou a
próspera povoação do Peixe, [...], a quatro léguas da margem do
Parnaíba, roubando e cometendo desatinos inqualificáveis. Logo
depois de terem praticado semelhantes atos de barbaria, retiraram-se
da povoação [...] ameaçando de fazerem o mesmo na Cidade de Barras
[...]” (notícia do jornal “Correio de Teresina”, de
10/11/1913). E imagine-se o pavor de famílias, com conversas do tipo
as que a documentação policial registrava, acusando “... jovens
ciganos [de] raptar donzelas, no intuito de integrá-las ao grupo. O
cigano Gaspar tentara raptar Rosina; Mundico faz tentativas à moça
Maria. Um dos casos mais curiosos foi o da jovem Maria da Cruz de
Medeiros, assediada pelo cigano Aguiar, filho do Rodolfo. O jovem
cigano oferecia presentes, dirigia-lhe gracejos e pedia-lhe
insistentemente os cachos de seus cabelos. Como a moça não
correspondia a suas expectativas, Aguiar prepara-se para
raptá-la...”. E note o leitor a atualidade deste tema: em matéria
publicada no jornal “Piauí” (29/11/1913), havia suspeita que
“entre os ciganos andam também facínoras acusados pela polícia
[...] que se aproveitam da companhia desses bandos nômades de
vagabundos para praticar verdadeiras depredações”. “Suspeita
também conferida no Inquérito pelo tenente da tropa policial que
reprimiu o grupo cigano: ‘[...]. É certo, conforme verifiquei que
nos bandos dos ciganos, existiam muitos cangaceiros conhecidos, vindo
de estados limítrofes...’.”
Para
aliviar os lugares Peixe, Marruás, Retiro, Campo Largo, além da
própria Barras, sede municipal, o governo estadual montou um
batalhão policial para expulsar os “bandoleiros”. Na área, com
superioridade armada, a volante fuzilou vários ciganos e até não
ciganos. O mais grave episódio ocorreu na povoação do Retiro –
hoje cidade de Esperantina, na manhã de 11/11/1913 – quando vários
deles foram mortos e ali mesmo enterrados a esmo.
Passados
cem anos, a memória dessa tragédia sinaliza que teria ficado a
sensação de mortes desnecessárias, num recorrente ato de
covarde-tirania contra o “outro” que se revela enfraquecido. E
sobretudo marca certa consciência local o sacrifício de um
ciganinho inocente que tombou na estrada. Há uma mística católica
em torno dele que parece crescer – e naquele tempo já se dizia que
criança morta vira anjo.
(Citações
havidas da dissertação de mestrado de Maria Auxiliadora Carvalho,
esperantinense, feita na Ufpi, fixando relevante contribuição para
que essa tragédia de lesa-humanidade não caia no completo
esquecimento dos pósteros e previna outras).
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