sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

EXORCIZANDO AS DOENÇAS


EXORCIZANDO AS DOENÇAS

Jacob Fortes

A sabedoria popular sustenta, de modo veemente, que os recém-nascidos, bípedes ou quadrúpedes, trazem em seus corpos uma espécie de antígeno pelo qual o organismo mantém-se protegido de doenças por duradouros anos. Seria digamos algo semelhante ao colostro, líquido amarelo secretado pelas glândulas mamárias antes e, principalmente, depois do parto, rico em anticorpos. O colostro tem a função de imunizar o recente, exemplificativamente os bezerros.

Mas o antígeno, talqualmente os repelentes, têm prazo de validade; afugenta enquanto perdura sua ação. A medicina não confirma, mas também não refuta essa crença acerca do antígeno. Verdade ou mentira o fato é que o populacho, esteado na superstição, tradição, ocultismo ou coisa que o valha, acredita piamente nas propriedades que tem o antígeno de enxotar agentes patogênicos; invasores. Nesse aspecto o sistema imunológico é, misericordiosissimamente, o lado inventivo e benfeitor da natureza. O problema é que não se sabe quando termina o prazo de validade do antígeno. Porém uma coisa é certa: experiencialmente sabe-se que o seu combustível é bastante rentável, suficiente para percorrer todo o calendário da primavera e, de brinde, atingir a fronteira do verão. Por causa dos efeitos longevos do antígeno há casos em que o cristão consegue atravessar, ileso, sem avarias, todo o território do verão. Coincidência ou não, quando a criatura, agora do meio-dia para a tarde, põe os pés em solo outonal aí começa o desmantelo, a bagunça, o flagelo. Em bandos ou em manadas, marmotas surgem de todas as paragens, inclusive do estrangeiro, com o firme propósito de se instalar na cacunda do cristão, justamente quando este, despojado da intrepidez da mocidade, (e do orgulho), já não tem munição grossa para reagir. Invariavelmente o lombo está ornado de mataduras causadas pelo albardão dos anos. Esses seres espectrais chegam à socapa, como quem não quer nada, e, ao menor descuido da vigilância, vão-se alojando, cada um a seu tempo, nos organismos humanos deixando-os lesionados, achacados, escarificados, fazendo lembrar os vergões de chicotada que zebravam o dorso dos cativos quando estes participavam das delicadas aulas de correção regidas pela bondosa escravatura. A técnica das marmotas, aliás, muito se assemelha ao movimento dos sem-teto.

Ainda que nenhum organismo esteja imune a enfermidades, verdade é que existem aqueles que têm tendências inatas para atrair essas marmotas; recendem um cheiro agradabilíssimo ao olfato das assombrações. Por causa desse cheiro gustativo certos organismos estão sempre lotados, não há vaga para mais ninguém. Nesse “santuário” de doença em cuja romaria há peregrinos nacionais e importados, o que se vê são doenças do lado de fora, à espera de vaga. Quando o hospedeiro, com o corpo apinhado de doença, já não suporta o peso da carga ele, que mal se levanta, se alui e, afadigado, sai em busca de um médico (alguns preferem os mandingueiros) que lhe possa prescrever um antídoto, um uma surra de pinhão roxo, um alvará de despejo com que possa exorcizar os inquilinos malfazejos. Mas é preciso alertar que a solução nem sempre ocorre de forma imediata, pois há invasores portadores de estabilidade assegurada pela usucapião. Em tais ocorrências há que se recorrer ao tribunal imagiológico cujo itinerário hierárquico é pródigo em instâncias de grande valimento dentre elas a ressonância magnética, o eletrocardiograma, o ultrassom e outras que vão além das catorze estações da via-sacra.

Apesar dos achaques que as marmotas vão causando mundo afora, — além, é claro, de o encherem com o seu assombro —, durante o outono é possível ao padecente conseguir uma boa reforma junto a um bom médico. O mesmo já não se pode dizer em relação aos que pisam em áreas jurisdicionadas ao inverno, a última quadra da vida. Nessa fase, em que a primavera é algo que ficou num passado distante e os que dominavam agora são dominados, reformas já não são eficientes; apenas paliam.

Seja como for, o importante é dulcificar a vida, afugentar do corpo a acidez para não atrair cupins. Se não sabe o nobre leitor, o cupim só habita solos extremamente ácidos. Quem, viajando de automóvel, já avistou, à margem da via, um talhão de solo abarrotado de arranha-céus edificados pelos cupins? Então, eles só habitam essas terras porque são extremamente ácidas. Os solos corrigidos por meio de calcário não lhes servem de estalagem; em vez de palatáveis lhes são repulsivos.

No cardápio destinado a dulcificar a vida há preceitos inumeráveis com que se podem espaventar as marmotas: um deles refere-se à higiene mental derivada de viagens e tudo mais de efeito anticorrosivo às rotinas de ferrolho, incluso espairecer na orla, no bosque, nos palhaços de circo que dão fidelidade do riso.

Ainda que esta prédica esconjuratória possa ressoar aos ouvidos de todos, maior favor prestará aos que — atravessando frajolamente a quadra da mocidade — estão longe de ficar perto de quem está perto do fim. Desavisados, jamais imaginam que um dia lhes baterá à porta uma fatura cobrando-lhes o frescor da mocidade. Pelo SIM, pelo NÃO, convém não olvidar: a natureza que concede é a mesma que toma; forma e deforma, põe e dispõe.

Xô, marmotas. Salvante as doenças grudadas ao meu cangote por força de estabilizada, na minha cacunda não tem mais vaga. Que Deus se apiede dos infelizes hospedeiros.

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