quinta-feira, 13 de março de 2014

MISTÉRIOS DA ALMA HUMANA


13 de março   Diário Incontínuo

MISTÉRIOS DA ALMA HUMANA

Elmar Carvalho

Sempre digo que cada ser humano tem a sua dose de mistérios e segredos, e nunca se revela completamente. Às vezes uma pessoa, tida como pacata, símbolo da própria mansuetude, nos surpreende ao cometer um ato violento, desproporcional à ofensa que ela julga haver recebido. Outras vezes, a surpresa nos vem através de uma confissão, feita pelo próprio indivíduo que julgávamos incapaz de certas atitudes ou sentimentos.

Um amigo meu foi diretor de uma repartição pública durante algum tempo. Nesse período notou que uma moça (vamos chamá-la de Francinete) era muita expedita, muito esperta e proativa. O que tinha de fazer, fazia imediatamente. Observando-lhe essas atitudes louváveis, sobretudo em uma servidora pública, o meu amigo designava-lhe certas diligências, que fugiam à rotina burocrática, e que por isso mesmo requeriam certa perspicácia e rapidez.

Passou a lhe dar essas missões com certa frequência, e ela as cumpria com exemplar celeridade. Contudo, um dia a moça lhe perguntou porque ele não determinava outros servidores para fazer esses serviços não habituais. O meu amigo respondeu, com rasgados elogios, que não o fazia porque ela era muito competente, rápida e desprovida de preguiça, para ouvir de pronto, de forma incisiva e surpreendente esta resposta:

O senhor está enganado. Eu sou muito é preguiçosa. O que eu tenho de fazer faço logo, mas é por pura preguiça, pois desejo me ver logo livre do trabalho.
Evidentemente, o meu amigo jamais esperava por essa insólita resposta. Ficou de queixo caído, como dizem, e passou a distribuir os serviços extras a outras pessoas, embora menos aptas e mais morosas. E notou efetivamente que Francinete gostava do ócio e da inércia.

Numa das Comarcas por onde passei conheci o cabo Ângelo. Era ele um tipo bonachão, sempre cordato e prestativo, risonho e de voz mansa, quase pachorrenta. Nunca se agastava e nunca alterava o tom de voz. Sempre que eu chegava ao fórum, ele se levantava, prestava continência, e cumprimentava-me com um sorriso:
Bom dia, dr. Elmar!
Eu respondia-lhe à continência e ao bom dia, como manda a praxe e a boa-educação.

Entretanto, num dia em que estávamos sozinhos, o cabo confidenciou-me algo que me deixou perplexo. Disse-me que tinha seu lado oculto, que não se conhecia completamente e que tinha medo de si mesmo; que temia surtar e fazer uma loucura; que tinha pavor de, em algum momento, perder o controle de si mesmo e chegar ao ponto de matar uma pessoa.

Fiquei assustado que uma pessoa, aparentemente tão boa, tão pacata, tão educada em suas mesuras e salamaleques pudesse ter medo de si própria, ao ponto de temer tornar-se tão violenta que pudesse matar uma pessoa. Lembrei-me do Honório. Era este um homem tão educado que, quando um amigo lhe pisou num dos sapatos, pediu desculpa.
Mas desculpa de que, Honório? Fui eu quem pisou no seu sapato.
Desculpa, sim, porque você poderia ter caído...
Será se o Honório, tão fino, tão delicado, que parecia a encarnação da própria beatitude, também tinha ganas de assassino?


Desse modo, fico assombrado com o que pode ocultar a alma de um ser humano. Fico imaginando que mistérios poderiam estar ocultos no espírito de um homem tão educado, tão mesureiro, que chegava quase a ser subserviente, e de nome tão angelical como o cabo Ângelo. São mesmo insondáveis os enigmas e segredos incrustados no íntimo de cada pessoa. Ainda que houvesse um escafandro para perquirir o abismo da alma humana, acho que muitos mistérios ficariam indevassáveis.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário