sábado, 29 de março de 2014

O DILEMA DO JUMENTO


O DILEMA DO JUMENTO

Jacob Fortes

Tema dos mais recorrentes no Nordeste brasileiro diz respeito à figura do jumento; mascote nordestina conhecida popularmente por jegue. O jumento, que remonta os tempos coloniais, testemunhou: as secas, o reinado dos coronéis de patente, a cultura do couro, o cangaço, as emigrações caudais, o fanatismo religioso, e, evidentemente, as chagas e lepras sociais que nunca esconderam a sua paixão por aquele pedaço de mundo ensolarado. Durante séculos esse animal proletário ajudou o homem, por conseguinte ao país, ora como cargueiro da riqueza do campo, ora, no papel de cavalo de pobre, transportando, desde crianças a anciãos, tudo quanto lhe escancharam ao lombo. O mérito desse resignado serviçal obteve o reconhecimento de muitos, sobremaneira dos que dele se serviram, mas para outros essa inestimável folha de serviços prestados parece de pouco valimento; insuficiente para assegurar respeito unânime. Diferentemente dos cavalos, cujos nomes carinhosos fazem lembrar virtudes, (nem sempre reais), os jumentos são tratados, mais das vezes em tom de mofa, por inumeráveis apelidos que, na sua grande maioria, lhe conferem defeitos. Aliás, no dizer de Euclides da Cunha, o jumento é o animal mais caluniado. Porém, as desqualificações e zombarias que rosnam contra a sua figura são tentativas que visam deslustrar as excepcionais qualidades desse animal tardo; de mansidão evangélica. Afinal, que outro animal de doma tem mais resistência, mais temperança, mais energia, mais sobriedade, mais tenacidade e mais poder de adaptação ao meio inóspito em que vive? Que outro animal, resignadamente, realizou todo tipo de trabalho proletariado durante séculos? Que outro animal suportaria os habituais rigores da seca?

Depois de séculos de trabalhos realizados sob o estímulo do chicote, eis que lhe veio em socorro, inesperadamente, uma princesa antiescravagista, não a Isabel. Triunfante, a princesa tecnológica chegou trazendo carta de alforria, em forma de cavalos mecânicos, por meio da qual libertou o jumento da condição de cativo. O mundo caracteriza-se por mudança “O tempo não existe exceto para mudar”.

Alforriado pela modernidade, e de porteira aberta por se haver em desuso o jumento, carregando o cartaz da obsolescência, pôs-se a errar pelas paragens nordestinas percorrendo, numa pachorra de lesma, todo o tempo vazio a sua frente. Prolífero por essência — sem contraceptivo que lhe modere a prole — foi agregando descendentes, ocorrência que o salvou da condição de solitário. Durante sua errância acabou por descobrir rodovias mornas que as adotou como sua estalagem preferida onde, invariavelmente, se mantém emperrado por toda a noite. Ao empacar-se, de través, nas vias exclusivas dos cavalos mecânicos, incorreu em grande culpa epifenômeno que lhe rendeu o libelo acusatório de ser o principal causador de acidentes nas estradas nordestinas: federais; estaduais e vicinais. Nisto ele é confesso, mas outros animais, igualmente à solta, também protagonizam acidentes, que são levados injustamente a débito apenas do principal acusado; de lombo timbrado com a fama da distração.

Para piorar o insidioso fado do jumento, recentemente jornais noticiaram que a sua carne seria exportada para a China. Aliás, a urgência em aprovisionar aquela gente de alimentos incomuns remete para a ideia de veloz crescimento populacional, ocorrência, diga-se, fomentadora da fome no mundo. Se não forem retesadas as rédeas da natalidade não dista muito para que a espécie humana se veja decuplicada. Nesse patamar de bocas inumeráveis jumentos apenas irão paliar; ao invés de repasto serão apenas hóstias.

Mas o menino Jesus há de interceder para que o seu favorito meio de transporte, (ainda marcado com o seu xixi), seja poupado do matadouro ainda mais porque, depois de haver suportado tantas vexações, tornou-se digno de salvar-se, se é que sofrimento é penhor de salvação. Essa a minha fé; onde há fé o mal recua. Em vez de servir de carnagem ao povo chinês prefiro que o jegue permaneça, juntamente com as cabras, ornando a paisagem catingueira do Brasil até que a ação deletéria do tempo lhe faça perecer; porém nos braços maternais do seu berço nordestino. Evidentemente os órgãos responsáveis, (que adoram explicações e cantilenas em vez de resultados), hão de pôr-se em ação firme de modo a tornar solúvel esse controvertido problema asinino, em prol da boa ordem rodoviária.


Ante ao malfadado propósito de transformar o corpo do jumento em mantimentos orientais urge que manifestações nordestinas retumbem em desfavor desse desalmado e asneado intento. Ao invés da morte, em paga pelo bem que praticou, o jumento faz jus a merecido descanso, inclusive porque quando Jesus voltar para a segunda e última chamada de salvação, desta feita no Nordeste brasileiro, o jumento deverá estar no seu lugar, no habitat que lhe foi reservado pelo criador. E no frontispício das cidades nordestinas seus admiradores erigirão uma escultura em sua homenagem para exaltar toda a serventia que teve ao homem. No rodapé da escultura haverá uma gravura onde se lê: “Dileto amigo jeguinho, receba o nosso preito de admiração e gratidão”.      

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