segunda-feira, 4 de agosto de 2014

OS INIMIGOS E A SUCURI


OS INIMIGOS E A SUCURI

Jacob Fortes

Quando os meus pais, durante os serões familiares sertanejos, fantasiavam a minha mente infantil de contos míticos e lendas, narraram, certa noite, uma história que diziam ser verdadeira protagonizada por dois inimigos. Essa história obviamente já não permanece incólume nas prateleiras do meu armazém; ruiu-se pela ação deletéria dos anos. Apesar disso, empenho-me em recontá-la mesmo que para tanto recorra ao meu armarinho inventivo, entulhado de bugigangas e pedaços de quinquilharias à espera de serventia.

Domingos e Aristeu, parentes consanguíneos, desfrutaram de relações fraternas durante o calendário infanto-juvenil. Tempos depois, na idade adulta, no papel de pais de família, circunstâncias familiares envolvendo acusações infundadas instalaram a discórdia: tornaram-se inimigos marcados pelo ódio recíproco. Apesar disso, não andavam às turras, não se combatiam; respeitavam-se cada qual com o seu silêncio e sua taciturnidade. Esforços de amigos e parentes para que pudessem se avir, baldaram-se.

Suas casas, ambas na borda alta da Lagoa da Traição, imenso alagado à margem do rio do mesmo nome, Boqueirão da Fronteira, CE, não eram próximas nem distantes, apenas avizinhadas. Um grito imódico ou o cocoricar de um galo não garnisé era o que distava uma da outra. Essa era a régua do sertanejo de antanho.

Porcos de propriedade dos desafetos, criados à solta, desapareciam com certa frequência. Os sumiços dos suínos, e de outros animais de pequeno porte, eram atribuídos à cobra sucuri-preta que habitava o enorme alagado cingido por densa vegetação, mormente remela-de-galinha. O alagado, quando visto à distância, apascentava todos os olhares, inclusive os mais desamparados, mas metia medo ao ser olhado bem de perto. É que a imensidão da lagoa era coberta por uma planta aquática flutuante, mais conhecida por aguapé, de flores violáceas ou azuis. Nada se podia divisar abaixo do cobertor vegetal que a natureza colocara sobre a superfície, ainda mais porque a água era demasiadamente turva na qual, segundo o imaginário da região, habitavam seres pavorosos.

Ainda que a maioria dos moradores apontasse a cobra como a principal suspeita pelo desaparecimento dos animais domésticos, Aristeu, no entanto, preferia colocar a suspeição sobre os ombros do seu desafeto, Domingos. (O gesto de Aristeu ilustra o aforismo segundo o qual, “os amigos não tem defeitos, mas os inimigos, se não os tem, eu boto”).

Era um dia de abril do ano de 1941. O poente ensanguentado prenunciava o desfalecer do dia e Cara Branca, a porca exuberante, e bojuda de prenhez, de propriedade de Aristeu ainda não havia retornado a casa para saborear a ração que lhe apetecia, que lhe fazia cativa ao cocho. A hipótese mais provável para a ausência do animal era a de encontrar-se amocambada, em trabalho de parto. Em tais circunstâncias os animais instintivamente se isolam para partejar. O adiantado da hora desaconselhava qualquer incursão para arrebanhá-la. Porém, o desvelo de Aristeu falou mais alto: apetrechou-se e partiu pressuroso em busca de sua Cara Branca. Enquanto caminhava Aristeu dizia de si para si que no beiço da água a porca não haveria de está, pois os bichos, na hora do partejo, procuram lugares enxutos e isolados. Sem se descuidar dos riscos iminentes, Aristeu investigava o íntimo da vegetação, sobretudo balças espinhosas, cipoal e remela-de-galinha.

Não demorou muito o turvar do vespertino privou Aristeu de reger o seu intento. Sendo assim, nada mais restava senão recomeçar a busca no dia seguinte. O último raio morrediço do poente era o que bastava para nortear o caminho de Aristeu até a sua casa; obviamente se estugasse o passo. E quando já transpunha os limites da concavidade da lagoa eis que, subitamente, Aristeu foi atingido pelo bote veloz da sucuri preta. Por certo quis a cobra, como é da sua tática, enroscar-se em Aristeu na altura do tronco a fim de comprimi-lo e impedir a sua respiração.  Sucede que os passos céleres de Aristeu, quase de chouto, frustraram parcialmente o intento da serpente que enleou apenas o braço esquerdo mantendo-o subjugado. Aí começou o combate de vida ou de morte. A cobra puxava Aristeu em direção à água, pois o afogamento é a melhor alternativa para matar uma presa. O rabo da sucuri, aliás, é dotado de duas unhas que, apoiadas em raízes ou lajedos, lhe dão a firmeza de que precisa para puxar a presa. Aristeu, por sua vez, tentava se desvencilhar da peçonhenta sem permitir que ela se enroscasse nas suas pernas. Tomado pelo cansaço e a aflição de estar em desvantagem, pois progressivamente se aproximava da água da lagoa, Aristeu emitiu gritos tonitruantes ao seu inimigo Domingos para que o socorresse. Dona Maria, que preparava o jantar daquele dia desfalecido, alardeou prontamente ao marido Domingos sobre os gritos desesperadores que ecoavam a partir da Lagoa da Traição. Os gritos pavorosos fizeram Domingos e sua esposa Maria concluírem que algo horripilante estava ocorrendo para as bandas do alagado. Armados de facões acorreram em direção à lagoa e, chegando ao local, encontraram Aristeu se debatendo, numa ânsia louca, com o braço esquerdo praticamente dilacerado. Pouco restava a Aristeu inclusive porque, com água na altura dos joelhos, já não tinha o apoio da terra firme. Domingos, de um golpe, cortou a cobra em dois pedaços, sendo que um deles permaneceu espiralado no braço de Aristeu.

O inusitado episódio — que fez de Aristeu o penitente mor das redondezas — serviu para restabelecer a concórdia entre as duas famílias.

Quanta à porca fujona reapareceu dois dias após o episódio, famélica, puxando uma fieira de nove bacorinhos, todos de carinha branca. Aristeu, até o final dos tempos, fora apelidado de bracinho, numa alusão ao seu braço que secara completamente.

É inescapável a qualquer leitor extrair ensinamentos deste ou daquele episódio. Eu, que também sou leitor, tenho o direito de dar o meu palpite: O caso Aristeu abona a certeza de que quando as lições do amor são ineficazes as da dor se impõem de modo severo, por vezes. “A pedra preciosa não pode ser polida sem fricção; nem o homem aperfeiçoado sem prova”.          

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