ASSOMBRAÇÃO DE PLACENTA
Jacob Fortes
Sétimo e Oitavo eram irmãos. As suas infâncias, no regaço
libertário do sertão, escoaram-se remansosamente sob as notas da passarada em
festa, porém pontuadas por momentos que marcam qualquer quadra infantojuvenil:
contendas, vivacidades, ledices, daninhezas.
Enquanto Sétimo revelava, desde cedo, gosto pelos estudos,
traço da mãe, puxadora de novenas, Oitavo, forjando-se nas coordenadas do pai,
consagrava-se à vida campestre e seus instantâneos.
A separação dos irmãos tornou-se inevitável. Sétimo, em busca
de seu destino, desatou-se cedo, ao primeiro buço, pelo mundo, meio que
assustado com a própria coragem, em busca de estudos eminentes, deixando Oitavo
nos quefazeres da vida campesina. Isso foi nos tempos em que a vida agreste era
marcada pela fé, pela religiosidade, pelas histórias de assombração e pelo
Lunário Perpétuo: um almanaque popular, bíblia dos camponeses, ilustrado com
xilogravuras e difundido, mais das vezes, por meio de oitivas durante os serões
familiares sertanejos. (o Lunário foi inventado em Valência m 1594 e expurgado
pela inquisição em 1632).
Enquanto Sétimo, ao cabo de anos, prosperava no magistério
superior na capital, Oitavo, — cujo vezo irresistível consistia em realizar
caçadas para posteriormente, assentado nos calcanhares, recontá-las com pitadas
de achegas fantasiosas — crescia na fama de contador de histórias; mentiroso
ante as bocas delatoras. Do glossário de histórias desse façanhudo contador,
desarquivei ASSOMBRAÇAO DE PLACENTA para difundi-la entre os que ainda rendem
homenagem ao fabulário brasileiro. Ei-la.
A caçada, infrutífera, chegara ao termo. Oitavo, fatigado,
exortou os cachorros, esfalfados, a pegarem o caminho de casa; estes à frente,
Oitavo atrás. O clarinar altissonante do
carijó “lasca-peito”, saudando a alvorada, reafirmava a Oitavo a proximidade de
sua casa. Repentinamente, na pretidão da noite, um vulto, indistinto, mas que
remetia a uma noiva de véu, pôs-se no meio do caminho, suspenso do chão feito
um pêndulo retesado. Conflagrado de arrepios Oitavo, num misto de reprimenda e
obsequiosidade, vozeou: — por favor, retire-se do meu caminho! A figura branca, verticalizada e dormindo na
mudez, permaneceu estática; envolta no que parecia ser um jaleco alvacento.
Oitavo repetiu o aviso agora de forma exasperada, mas debalde. Quedo estava e
quedo permaneceu o espectro. Baldadas todas as advertências e evitando
fraquejar no medo, avultado, que lhe fizera decair a coragem, Oitavo bradou: —
se deseja algo de mim diga logo, mas retire-se do meu caminho. Se não sair por gosto seu sairá pelo gosto da
minha faca e sob ela cairá. Mais uma vez a aparição manteve-se inerte, fato que
excitou Oitavo ao combate; movido, evidentemente, por um medo maior que a
coragem. Sem nenhum tipo de reação do fantasma, Oitavo, de faca à mão, instintivamente
arremessou, com ímpeto, uma pedra, circunstância que fez o vulto, incontinente,
desabar como se tivesse dependurado nas alturas; desapareceu por completo.
Pasmado, Oitavo escutou, na sequencia, o relincho da Medalha, sua égua de
estimação, da cor do azeviche, que, sofrendo na dor de demorado partejo,
assustara-se com a pedra que lhe caíra à anca e, arrojando-se à frente, num
impulso, conseguira, enfim, expulsar o potrinho de modo cabal. A consequente
ruptura do envoltório placentário, cândido, fez desaparecer, por completo, a
assombração de placenta.
“Nem tudo que parece é, porém tudo é se assim lhe parece”.
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