INVEJA
Elmar Carvalho
Afonso Rodrigues Miranda iniciou sua carreira no
serviço público aos 22 anos de idade, logo após ter concluído seu curso de
Economia. Cordato, trabalhador, diligente, prestativo, logo se tornou chefe da
seção de pessoal de sua repartição. Era um literato, e colaborava em alguns
jornais e revistas da capital. Amante da música, tocava violão com rara
perícia.
Aos domingos, tomava sua cervejinha com moderação. Bom
conversador, gostava de contar fatos engraçados ou interessantes, que ouvira ou
lera, alguns remontando ao seu tempo de garoto. Às vezes, recitava poemas,
tanto de sua autoria, como de grandes mestres da literatura brasileira e
piauiense. Com muita inteligência emocional, desenvolvia suas atividades com
criatividade e eficiência, porém da maneira mais simples possível, por entender
que as soluções menos complexas são invariavelmente as mais eficazes e mais
econômicas.
Dois ou três anos após seu ingresso na administração
pública, foi trabalhar em sua seção um servidor recém aprovado em concurso
público. Chamava-se Abel Silva do Nascimento, e era três anos e alguns meses
mais novo que Afonso. Também era formado em Economia. Começou a observar os
modos e o jeito de conversar do chefe, que considerava elegante. Procurou mesmo
se tornar seu amigo, e veio a ser o seu substituto eventual na chefia da seção.
De maneira sutil, diria mesmo imperceptível, começou a
imitar o chefe, tanto no trajar, como no seu modo de conversar e gesticular. Passou
a usar camisa por dentro da calça, com um bom cinto, como costumeiramente
Afonso fazia. Não relaxava uma caneta no bolso da camisa, tal qual o outro
gostava de fazer, tendo mesmo uma coleção vistosa desse objeto. Chegou ao
cúmulo de comprar um par de sapatos exatamente igual ao dele.
Não bastasse isso, procurou ler algumas obras
literárias, se bem que um tanto de maneira forçada, e ainda que suas leituras
fossem apressadas e superficiais, sem maiores aprofundamentos e reflexões.
Quando menos se deu pela coisa, eis que Abel iniciou a colaboração em jornais
da cidade. E disso fazia alarde. Proclamava que sua vocação vinha da infância,
quando, na verdade, antes ninguém lhe conhecia como tendo veleidades
literárias, ainda que pífias ou precárias.
Não tinha o respeito de muitos de seus pares, todavia
a sua carreira literária prosseguiu com certa regularidade, graças à sua
pertinácia e “forçação de barras”. Vez ou outra lançou mão das ideias de seu
mestre, mudando uma vírgula aqui, um ponto acolá, e colocando uma palavra
sinônima em outro ponto ou trecho. Não era uma cópia servil, em alguns casos,
mas com certeza vários de seus textos podiam ser considerados como um exemplo
de plágio.
Contudo, uma coisa era certa: Abel não tinha a
simpatia e o carisma de seu mestre. Ademais, adquiriu alguns desafetos por ser
um tanto falastrão e falador da vida alheia. Por outro lado, no afã de fazer
amizades, correndo feito barata tonta de um lado para outro, terminou
angariando certo desprezo, tanto dos colegas do serviço público como dos
literatos, que reprovavam a sua superficialidade, diletantismo e oportunismo,
mormente ao tentar se promover a qualquer preço.
Vendo Abel o sucesso profissional e o crescimento literário
de Afonso, a sua admiração pelo seu chefe começou a se transformar em inveja, a
princípio tênue, dissimulada, quase imperceptível, mas que foi, com o passar do
tempo, tomando corpo, se tornando visível, através de insinuações, “brincadeiras”,
certas ironias veladas, e até mesmo por intermédio de atos, ações e omissões,
no desígnio inconfessável de minimizar ou ocultar o brilho de seu paradigma,
conquanto jamais admitisse, nem mesmo para si próprio, sua condição de
discípulo e muito menos de êmulo.
Abel, por ser boêmio, perdulário e ainda viciado em
jogatina, vivia sempre atrapalhado em suas finanças. Ao contrário, Afonso,
inclusive por ganhar mais, tinha sua casa própria, seu carro e um pequeno
sítio, de nome Pasárgada, perto do povoado Cacimba Velha, onde passava os
finais de semana, com sua mulher e seus dois filhos. Vez ou outra, convidava
Abel para um churrasco, em que degustavam algumas cervejas. Tudo isso em meio a
uma boa conversa e banhos na piscina. Poemas eram recitados, e Afonso, com sua
bela voz, entoava algumas lindas canções, acompanhando-se ao violão, que
dedilhava quase como um virtuose.
Uma ou duas horas antes do retorno, Afonso parava de
beber. Tomava um demorado banho na piscina e tirava um revigorante cochilo, no
intuito de conduzir o automóvel com segurança. Numa dessas ocasiões, quando o
carro chegou a um determinado ponto despovoado da estrada, à boca da noite,
Abel pediu para que Afonso parasse o veículo, pois desejava urinar. O motorista,
que vinha no banco à sua frente, lhe pediu para que aguentasse um pouco, pois
aquele trecho era perigoso, já tendo acontecido vários assaltos. Acrescentou
que dali a apenas dois quilômetros existia um posto de gasolina, onde ele
poderia urinar em segurança e com mais conforto.
Abel, contudo, não gostou da negativa, e insistiu para
que Afonso parasse imediatamente o veículo. Novamente este, com bons modos,
repetiu as suas ponderações. Então, de modo totalmente inesperado, ouviu-se um
estampido no interior do automóvel.
Abel estourara os miolos de Afonso, com um tiro em sua
nuca. Sangue e pedaços de cérebro salpicaram o teto do carro, pois o disparo
fora efetuado de baixo para cima. O veículo, descontrolado, embora estivesse em
baixa velocidade, saiu da estrada e entrou num matagal ralo, mas nenhum
passageiro sofreu a mais leve lesão. Estavam no automóvel, Afonso, sua mulher,
os dois filhos do casal e o assassino.
Feitas as investigações, efetuadas as necessárias
perícias e ouvidas as testemunhas, presenciais e referenciais, o delegado
indiciou Abel como tendo praticado o crime de homicídio doloso por motivo
fútil, sendo este o fato de Afonso não ter parado o carro logo que o homicida exigiu.
O promotor de Justiça ajuizou a denúncia com esse mesmo entendimento.
Em nenhuma ocasião alguém falou em inveja; muito menos
Abel, mesmo porque ninguém jamais admite possuir esse triste sentimento.
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