Aqui jaz uma história de amor
José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com
Pode até parecer manifestação mórbida,
mas que me dá prazer, dá, visitinha casual ao cemitério. Ali reflito o destino
inexorável do tempo. Ou o além deste tempo. Moção de fé e esperança, o elã que
me promete outras esferas.
Perambulo por
entre sepulturas, detenho-me nas fotos, inscrições e luxo. Figurões que se
mostravam imperecíveis em vida; agora sabe Deus o veredicto recebido. Vetustos
jazigos incrustados nos muros do Cemitério São José, anônimos, carcomidos,
vagas lembranças da segunda metade do século 19. Na época, escravos não tinham
direito a preservar a memória ou algum luxo naquele rincão. O destino dos
corpos desaparecia na insignificância do terreno, onde, hoje, se ergue a Igreja
de São Benedito. Ilustres benfeitores e prelados, porém, gozavam privilégio a
jazigos no interior dos templos.
Em Lisboa, o
Cemitério dos Prazeres chama a atenção pelo nome e honrarias. Datado do século
19, distingue-se pelo aparato arquitetônico e cultural de celebridades, como
escritores, escultores, músicos, poetas e estadistas. O luxo e preservação dos
monumentos exigem controle rigoroso na entrada e saída de visitantes, com
agenda marcada. Exposições e eventos que desmitificam a ideia de cemitério da
angústia.
Quando nem a
morte põe fim às grandes histórias de amor, elas se perpetuam através da
memória, nas artes e nos túmulos. Romances que se tornaram conhecidos por
desafiarem preconceitos e regras sociais, como a saga de Inês de Castro,
decantada por Camões, ou Iracema de José de Alencar
Visitei uma
das muitas catacumbas romanas. Os primeiros cristãos abriam túneis, fora da
cidade, que ultrapassavam dez km de extensão, onde enterravam mortos ou fugiam
à perseguição imperial. Ainda adolescente, como seminarista, visitei Redenção,
no Ceará. Na entrada do cemitério, letras garrafais, em latim, alertavam-me:
HODIE MIHI, CRAS TIBI. Hoje, sou eu; amanhá serás tu.
O povo da Ilha
de Madagascar segue tradição de enterrar seus mortos com batucadas, danças e
comida farta. Uma festa celebrada a cada sete anos ou mais, abrem as criptas e
desenterram os restos de ancestrais e os envolvem em lençóis, em grande
alegria, bailes, comes e bebes. Dançam abraçados aos restos mortais, certos de
que eles transmitem virtudes.
Vi, bem de perto, os corpos das santas Rita de
Cássia, em Cássia, Itália; o da freira Clara, falecida há oito séculos, em
Assis; o de Terezinha de Jesus, em Lisieux, França. Todas vestidas da cabeça
aos pés, em sarcófago de vidro sob o altar. Sinceramente, só decepção: os belos
e jovens rostos, apenas máscaras mortuárias perfeitas. Incorruptilidade
milagrosa, por que só ocorre numa mesma religião cristã? Então, me lembra
genial bispo Santo Agostinho, filósofo, doutor em teologia, convertido boêmia
do quarto século da decadente Roma, padroeiro dos cervejeiros e teólogos: “O
cuidar dos funerais, a escolha da sepultura, a pompa das exéquias, visam mais à
consolação dos vivos do que ao interesse dos mortos”. Ou estes versos de
Salgado Maranhão: “Devagar as inscrições se apagam/Na balbúrdia do efêmero/E
estátuas de sombra”.
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