sábado, 24 de outubro de 2015

Aqui jaz uma história de amor


Aqui jaz uma história de amor

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Pode até parecer manifestação mórbida, mas que me dá prazer, dá, visitinha casual ao cemitério. Ali reflito o destino inexorável do tempo. Ou o além deste tempo. Moção de fé e esperança, o elã que me promete outras esferas.

         Perambulo por entre sepulturas, detenho-me nas fotos, inscrições e luxo. Figurões que se mostravam imperecíveis em vida; agora sabe Deus o veredicto recebido. Vetustos jazigos incrustados nos muros do Cemitério São José, anônimos, carcomidos, vagas lembranças da segunda metade do século 19. Na época, escravos não tinham direito a preservar a memória ou algum luxo naquele rincão. O destino dos corpos desaparecia na insignificância do terreno, onde, hoje, se ergue a Igreja de São Benedito. Ilustres benfeitores e prelados, porém, gozavam privilégio a jazigos no interior dos templos.

         Em Lisboa, o Cemitério dos Prazeres chama a atenção pelo nome e honrarias. Datado do século 19, distingue-se pelo aparato arquitetônico e cultural de celebridades, como escritores, escultores, músicos, poetas e estadistas. O luxo e preservação dos monumentos exigem controle rigoroso na entrada e saída de visitantes, com agenda marcada. Exposições e eventos que desmitificam a ideia de cemitério da angústia.

         Quando nem a morte põe fim às grandes histórias de amor, elas se perpetuam através da memória, nas artes e nos túmulos. Romances que se tornaram conhecidos por desafiarem preconceitos e regras sociais, como a saga de Inês de Castro, decantada por Camões, ou Iracema de José de Alencar

         Visitei uma das muitas catacumbas romanas. Os primeiros cristãos abriam túneis, fora da cidade, que ultrapassavam dez km de extensão, onde enterravam mortos ou fugiam à perseguição imperial. Ainda adolescente, como seminarista, visitei Redenção, no Ceará. Na entrada do cemitério, letras garrafais, em latim, alertavam-me: HODIE MIHI, CRAS TIBI. Hoje, sou eu; amanhá serás tu.

         O povo da Ilha de Madagascar segue tradição de enterrar seus mortos com batucadas, danças e comida farta. Uma festa celebrada a cada sete anos ou mais, abrem as criptas e desenterram os restos de ancestrais e os envolvem em lençóis, em grande alegria, bailes, comes e bebes. Dançam abraçados aos restos mortais, certos de que eles transmitem virtudes.

         Vi, bem de perto, os corpos das santas Rita de Cássia, em Cássia, Itália; o da freira Clara, falecida há oito séculos, em Assis; o de Terezinha de Jesus, em Lisieux, França. Todas vestidas da cabeça aos pés, em sarcófago de vidro sob o altar. Sinceramente, só decepção: os belos e jovens rostos, apenas máscaras mortuárias perfeitas. Incorruptilidade milagrosa, por que só ocorre numa mesma religião cristã? Então, me lembra genial bispo Santo Agostinho, filósofo, doutor em teologia, convertido boêmia do quarto século da decadente Roma, padroeiro dos cervejeiros e teólogos: “O cuidar dos funerais, a escolha da sepultura, a pompa das exéquias, visam mais à consolação dos vivos do que ao interesse dos mortos”. Ou estes versos de Salgado Maranhão: “Devagar as inscrições se apagam/Na balbúrdia do efêmero/E estátuas de sombra”.    

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