HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XXIX
Revelações
Elmar Carvalho
“Quando eu tinha sessenta anos de
idade e já morava na capital há muitos anos, ao passar um final de semana em
Évora, revi o meu amigo Anselmo Miranda, que fora morar em Brasília há mais de
três décadas. Na banca de revista do Dourado, situada na Praça Lucas Mendes
Furtado, ou simplesmente praça central ou da matriz, soube que ele se
encontrava na cidade e estava hospedado na casa de seu irmão Jonas, o
secular casarão de seus pais, já falecidos.
Após conversarmos sobre amenidades,
cultura e assuntos do cotidiano de nossas vidas, bem como sobre velhos temas
eborenses, o Anselmo, sem pruridos de vergonha, receios de censura familiar ou
freios inibitórios morais, narrou-me a história de sua avó materna, a matriarca
de sua família, sustentáculo de sua mãe e de seus tios.
Como desejo fazer um resumo e também
por não ter capacidade de reproduzir suas frases com fidelidade, prefiro
contá-la com as minhas próprias palavras, da maneira mais simples possível,
porque o que tem importância neste texto é a história em si, e não os atavios e
figuras de estilo que pudesse lhe colocar.
Disse-me Anselmo que, quando garoto
de seus doze anos, ao brincar no quintal com dois irmãos e alguns amigos,
acometido na época por certo tipo de verminose, foi procurar no muro um torrão
de barro, que lhe parecesse mais saboroso, para comer. O muro era de adobe, mal
conservado, um tanto desaprumado, pelo menos em certos pontos, e apresentava
muitas gretas e furos, em que eventualmente se escondiam carambolos e lagartixas.
Ao procurar a sua 'iguaria', acabou encontrando
num dos buracos, enrolado num saco plástico, um papel esmaecido, que lhe
pareceu ser uma carta, escrita à mão, com caneta tinteiro ou bico de pena. As
letras estavam um pouco borradas, mas eram grandes, firmes, bem delineadas e
escritas com tinta azul. Anselmo a guardou com cuidado e a levou até sua avó, a
quem se dirigia a missiva.
Tudo fazia supor que quem a escrevera
tivesse boa instrução, o que era uma raridade na data de sua assinatura: 24 de
dezembro de 1936. Estava assinada por Pedro Tavares de Mendonça. Sua avó, com
muita delicadeza, retirou a carta do invólucro plástico. Colocou-a sobre a mesa
e a desdobrou com toda cautela, para não danificá-la.
Mandou que Anselmo se sentasse à
mesa, perto dela. Contraiu as feições; seus olhos marejaram um pouco, mas era
uma mulher forte, de fibra e logo se recompôs. Afinal, sozinha, sem a ajuda do
marido, cujo paradeiro nunca se soube ao certo, criara os nove filhos, lavando,
passando e costurando para algumas famílias abastadas de Évora. O jovem
imaginou que lhe seria revelado constrangedor segredo familiar.
– Meu neto, esta carta trouxe de
volta uma história antiga de nossa família, que eu pensava já estar enterrada
há muitos anos. Mas o destino e a sua curiosidade de garoto desenterraram esse
segredo familiar. Vou ler a carta para você.
Leu-a com razoável desembaraço e sem
se deixar trair pelas fortes emoções que certamente lhe transtornavam o
espírito. Anselmo teve a grande surpresa de descobrir que a sua avó não era
analfabeta, como ele pensara desde que se entendera por gente. Ela lhe revelou
que desde o momento chocante em que leu essa carta, pela primeira e única vez,
tomara a decisão de nunca mais ler nem escrever coisa alguma. Por isso todos pensavam
fosse ela iletrada, quando na realidade aprendera a ler e a escrever com
considerável desenvoltura. Ao terminar a leitura, fez o seguinte comentário (a
que se seguiu a história de sua vida, que sem dúvida daria um belo romance):
– Esta carta foi o presente de natal
que seu avô me deu no ano de 1936. Abandonou-me e fugiu com uma mulher nova
para lugar incerto e não sabido, como dizem os advogados como ele. Pelo menos
deixou a casa e os móveis. Não deixou nenhum níquel para o sustento de nossos
nove filhos, que criei com muito esforço e trabalho pesado. Mas Deus nunca me
faltou e nem há de faltar.
A carta era iniciada por um longo e lacrimejante pedido de perdão, a que
se seguia uma injustificável justificativa, uma justificativa que na realidade nada
justificava. O último parágrafo era um patético e exagerado adeus, algo
semelhante a um trecho de dramalhão, em que dizia não ter ‘culpa de haver se
apaixonado perdidamente’ por sua nova amada, que ‘ninguém mandava em seu
próprio coração’. Encerrando, dizia que fora fraco, covarde mesmo, mas não
tivera coragem de lhe contar pessoalmente essa sua incontrolável e irresistível
paixão.
Dona Rosa Soares de Mendonça, cujo nome
de casada sempre foi mantido, desfiou a sua história como se quisesse mesmo desabafar,
botar para fora uma história que escondia há muitos anos. Dizia apenas que o
marido fora embora para o Amazonas, em busca de fortuna, onde teria morrido, já
que nunca mais mandara notícias. Nascera ela em Angical. Quando tinha 15 anos,
o advogado Pedro Tavares de Mendonça, vindo não se sabe ao certo de onde, apareceu
na cidade e botou banca de advocacia. Era dez anos mais velho que ela.
Quando fez 16 anos foi a uma festa e
dançou com ele no clube da cidade. Era considerado um bom partido, apesar de as
informações sobre as suas origens familiares serem vagas. Alguns rapazes,
talvez enciumados, murmuravam que talvez ele tivesse feito “mal” a alguma moça,
irmã e filha de valentões, e tivesse fugido. Também alguns pais, ciosos da
honra de suas filhas, disso suspeitavam, todavia sem nenhuma informação
concreta.
Rosa, no auge de sua juventude, era
considerada a moça mais bela de sua cidade. Séria, prendada, diligente, ainda
sabia ler e escrever, mesmo numa época em que a instrução pública era muito incipiente
e elitista. O doutor Pedro sabia que para tê-la como mulher teria que se casar.
Portanto, não perdeu tempo. Logo a pediu em casamento. Um ano após a cerimônia,
alegando que seu escritório de advocacia não prosperara, e já com o primeiro
filho nascido, resolveu se mudar para Évora, uma cidade maior, onde com certeza
teria mais clientes.
Depois ela passou a desconfiar de
que, além dos motivos profissionais, ele desejava uma cidade maior para mais
bem dissimular e esconder a sua vocação boêmia, a sua incurável índole de dom
Juan. A bem da família e da paz conjugal, procurou não saber de informações e
nem de boatos, e tampouco buscou averiguar as suas desconfianças e indícios de
infidelidade do marido. O desfecho do seu caráter fora aquela carta e a sua
fuga com a amante.
Quando o meu amigo Anselmo terminou o
seu relato familiar, aparentemente sem muita emoção, talvez porque tivesse
aceitado isso como um fato irrevogável, contra o qual não adiantava se rebelar,
imaginei como seria o muro no qual, em esconso furo, ele encontrara a velha e
esquecida carta. Não pude deixar de trazer à memória estes versos de Alberto de
Oliveira, que li e reli em minha surrada antologia da Fename: ‘É um velho
paredão, todo gretado, / Roto e negro, a que o tempo uma oferenda / Deixou num
cacto em flor ensanguentado’.
Conquanto desnecessária, faço a
ressalva: em lugar de cacto, cujos espinhos também pungem, leia-se carta.”
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