LENDO "PULANDO NUVENS"
A pergunta acima não é uma blague, mas uma
constatação que me inclina mais
para o não, visto que, no domínio
literário, o que prevalece é a qualidade
da linguagem e o sentido específico de como
o tema foi trabalhado
artisticamente pelo autor.
Formalmente, o livro
é ousado na sua construção e me lembra logo de cara uma estratégia, tão bem entrevista numa
ensaio “A ciranda da malandragem” de
Jesus Antônio Durigan acerca da
escrita do contista João Antônio (1937-1996), na qual
o ficcionista não só se vale da imaginação - espaço do domínio da ficção, da mimese -, mas do que
lhe oferece a vida, a realidade que, no
caso do livro, são textos que se
contextualizam e se unificam ao mundo de
esperanças e de anseios de Daniel,
jovem sintonizado com os modos
de vida e os costumes saudáveis
de sua geração.
Deste modo, se inserem, de maneira alusiva, ao
texto geral dos relatos o capítulo inicial de Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, uma letra de música de
Gabriel, o Pensador, o soneto “Amarante”
de Da Costa e Silva (1885-1950), um
excerto de uma peça teatral de Ariano Suassuna (1927-2014), um famoso fragmento
poético de Gonçalves Dias( 1823-1864), um fac-símile do poema “O menino que descobriu as
palavras,” de autoria de Cinéas Santos e
Gabriel Archango, marcado por Daniel a
lápis e com as respostas escritas à mão, um fac-símile de um “manifesto redigido à mão, dirigido aos condôminos de um prédio
e reivindicando liberdade
e respeito aos direitos de brincar no espaço comum do moradores. O
nomezinho de Daniel (p.34) aparece no
espaço reservado aos subscritores,
assinalado à mão, um texto de um jovem que
sabe expressar-se literariamente,
como o Dilson Tavares, irmão de Daniel Tavares,este último assunto
nuclear da obra de Zózimo.
Escreve sobre si mesmo e principalmente
sobre Daniel. Ao mesmo tempo busca em
outros textos complemento
de sua inquietação extravasada belamente, harmoniosamente, no texto em seu todo, gerando uma unidade de
sentido e verossimilhança narrativa, ao
fazer convergir outra vozes que, ao cabo,
se confundem e de alguma forma, mutatis
mutandis, se equivalem.
Ora,
construir uma obra assim exige esforço
e criatividade, porquanto, na ficção, ou no gênero híbrido em que
se materializa este livro, misturando memórias,
textos alheios, inserções
autorias compatíveis no campo da linguagem
literária, inclusive a
parte referente aos textos virtuais, em
forma de anexo ao texto geral da obra só a vivificam ainda mais. Na realidade, decorre
desses recursos do autor a qualidade do
texto.
O
exemplo mais ilustrativo dessa
singularidade textual, dessa recolha de
textos diversos mas que tenham direta ou indiretamente ligação cultural com a vida de Daniel
Tavares, é haver Zózimo Tavares
pinçado o tocante texto, acima citado,
“Daniel mano” (p. 115) escrito para servir, como título
e, a meu ver, como metáfora do livro e do seu personagem
principal, Daniel Tavares,
um jovem que, aos 21 anos, filho
do autor, com toda
as esperanças de uma vida vitoriosa,
é de repente, pelos insondáveis arcanos
da vida terrena, afastado de nós mortais.
Zózimo Tavares, jornalista tarimbado,
de estilo objetivo, contudo não
destituído de uma profunda sensibilidade que, por vezes,
alcança as fontes do lirismo, como seria
exemplo, entre outros no livro,
aquele trecho em que ele,
menino, em Água Branca,
Piauí, avistava, da calçada da igreja, na distância, aquele tempo católico que lhe parecia cada vez maior à medida que
dele se aproximava, situação tão
bem expressa da perspectiva da memória e linguagem infantis: “Chega dava tontura!” (“De volta ao começo,” primeira seção, p. 21).
Pulando nuvens é mais um livro sobre a vida, e não sobre a morte, pela vida
pulsando delicadamente na memória
do autor e cobrindo todas as
lembranças tenras, guardadas
no fundo do coração do escritor.
É uma narrativa que se propõe provocar, na sensibilidade dos leitores, o
compartilhamento dos deliciosos momentos
da presença querida desse jovem belo,
forte, amante da vida intensa e de todas as alegrias que a existência pode propiciar a quem sabe amá-la com o peito aberto às amizades, aos amores
de juventude, às predileções
culturais, seja na música,
no teatro, na dedicação ao
parkour, à arquitetura e às passarelas,
no campo da imagem
publicitária, na vida familiar. E
que exemplo de bem-aventurança familiar
nos dá o autor, até mesmo no
sentido pedagógico de um pai extremoso, responsável e
intensamente amoroso de sua família!.
Tudo isso é muito bem
relatado pela voz paterna que, ao contrário de outros
autores, não faz da tragédia familiar um oceano
de lamúrias, mas conserva, no
limite do possível, resguardar o que de vivo e amado o filho lhe deixou.
O
espírito do livro se bifurca entre as recordações do autor e as do filho trazido
ao texto pela força da linguagem
que sustenta a narrativa através da exaltação à vida – urge sublinhar - suscitada pelas múltiplas e preciosas recordações do filho
vivo, falecido precocemente em
acidente ao pular da ponte sobre o rio
Longá, em Esperantina, interior
piauiense.
Em algumas passagens do livro não há como
se comover até às lágrimas
diante de situações que são verdadeiros modelos de amor, de amizade, de solidariedade, entre o autor e o filho,ou
entre o autor e a família.
Confesso que, durante a leitura desse
livro de afetividades – repito -
lamentei não ter conhecido e
abraçado (o abraço forte desse menino-gigante),
esse rapaz que, no verdor dos anos, admirado pelos amigos e por todos os que por acaso
o conheceram. Daniel, na verdade, não
foi embora, não. Está vivo e esbelto
não apenas na memória impressa de
Pulando nuvens – milagre do poder da linguagem -, a qual, em forma de arte, se
torna, fenomenologicamnte, vida perene -
mas também no pensamento fiel e
recorrente das reminiscências que
duram porque são eternas.
*Cf. Orações do meu dia a
dia, coordenação do Pe. Lourenço
Ferronatto.São Paulo : Associação Católica
Nossa Senhora de Fátima. 1ª ed.,
2016, p.7-8.
Cunha e Silva, parabéns pela narrativa e por sua sensibilidade. Conheci o Daniel na Igreja de Fátima, meses ou semanas antes do último e eterno salto para a glória celestial, tive a melhor das impressões.
ResponderExcluirAo Zózimo e familiares a certeza que nunca esteve ou estará sozinho a lembrar do lindo pássaro DANIEL, seus amigos e sensíveis jovens os terão sempre na lembrança..Vida que segue com Daniel nos céus.
Um abraço Itamar
Caro Itamar:
ResponderExcluirV., sempre atento ao espaço literário, sempre alguém que prestigia, estimua, faz crescer o ânimo dos que se dedicam à cultura.
Realmente, V. foi um felizardo por ter conhecido o jovem Daniel, cuja passagem pela Terra não foi em vão.
Aqui deixou o seu exemplo de bom menino, comprometido com os seus múltiplos interesses de sua geração mais livre do que foi a de minha geração. belo exemplo de vida.
Forte abraço do
Cunha e Silva Filho