sábado, 5 de novembro de 2016

LENDO "PULANDO NUVENS"


LENDO "PULANDO NUVENS"

 “Meu Deus,  creio que estais aqui presente!”*

  Cunha e Silva Filho

          Será, leitor, que existe crítica literária para certos  livros? Digamos, assim,  para a Bíblia Sagrada,  para As confissões, de Santo Agostinho (354 d.C- 430 d.C),  e para outras  obras  superiores   da cultura universal? Sim e não,  não importa. O que releva é a sua grandeza. Livros há que  são forjados por  inteiro  pelo  universo  fabuloso das subjetividades e sobretudo no terreno das  afetividades,  lexema do campo semântico  que tanto peso  tem na obra ora lançada, que é Pulando nuvens (Teresina: Bienal  Editora, 2016,148 p), do jornalista e escritor Zózimo Tavares, piauiense de coração, mas nascido no Ceará
        A pergunta acima não é uma blague,  mas uma  constatação que me inclina mais  para o não, visto que,  no domínio literário, o que prevalece  é a qualidade da linguagem e o sentido  específico  de como  o tema  foi  trabalhado  artisticamente pelo autor.
        Formalmente,  o livro  é ousado na sua construção e me lembra logo de cara  uma estratégia, tão bem entrevista  numa  ensaio “A ciranda da malandragem” de  Jesus Antônio Durigan acerca da  escrita do contista João Antônio (1937-1996), na  qual  o  ficcionista   não só se vale da imaginação - espaço  do domínio da ficção, da mimese -, mas do que lhe oferece a vida, a realidade que,  no caso do livro,  são textos que se contextualizam e se unificam ao mundo  de esperanças e de anseios de Daniel,  jovem  sintonizado com  os modos  de vida e os costumes  saudáveis de sua geração.
        Deste modo,  se inserem, de maneira alusiva,  ao  texto  geral dos relatos  o capítulo inicial de Feliz Ano Velho, de  Marcelo Rubens Paiva, uma letra de música de Gabriel, o Pensador,  o soneto “Amarante” de Da Costa e Silva (1885-1950),   um excerto de uma peça teatral de Ariano Suassuna (1927-2014), um famoso  fragmento  poético de Gonçalves Dias( 1823-1864), um fac-símile  do poema “O menino que descobriu as palavras,”  de autoria de Cinéas Santos e Gabriel Archango, marcado por Daniel  a lápis e com  as respostas  escritas à mão, um fac-símile  de um “manifesto redigido à mão,  dirigido aos condôminos  de um prédio  e  reivindicando  liberdade  e respeito aos direitos de brincar no espaço comum do moradores. O nomezinho  de Daniel (p.34) aparece no espaço  reservado aos subscritores, assinalado à mão,    um  texto de um jovem  que  sabe expressar-se literariamente,  como  o Dilson Tavares,  irmão de Daniel Tavares,este último assunto nuclear  da obra de Zózimo. 
        Escreve sobre si mesmo e principalmente sobre Daniel.  Ao mesmo tempo  busca  em outros  textos  complemento  de sua inquietação extravasada belamente,  harmoniosamente,  no texto em seu todo, gerando uma unidade de sentido e verossimilhança narrativa,   ao fazer convergir outra vozes que, ao cabo,  se confundem  e de alguma forma, mutatis mutandis, se equivalem.
       Ora,  construir uma obra  assim  exige esforço  e criatividade,  porquanto,  na ficção, ou no gênero híbrido em que se   materializa  este livro, misturando  memórias,  textos alheios,  inserções autorias compatíveis  no campo   da linguagem  literária, inclusive   a parte  referente aos textos virtuais, em forma de anexo  ao texto  geral da obra só a  vivificam ainda mais. Na realidade, decorre desses recursos  do autor a qualidade do texto.
       O  exemplo mais ilustrativo  dessa singularidade  textual, dessa recolha de textos diversos  mas que tenham  direta ou indiretamente  ligação cultural com a vida de  Daniel  Tavares,  é haver Zózimo Tavares pinçado o tocante   texto, acima  citado,  “Daniel mano” (p. 115) escrito para servir, como  título  e, a meu ver,  como  metáfora do livro e do seu  personagem  principal,  Daniel  Tavares,  um  jovem que, aos 21 anos,  filho  do autor,  com  toda  as esperanças  de uma vida  vitoriosa,  é de repente,  pelos insondáveis arcanos da vida terrena, afastado de nós mortais.
      Zózimo Tavares, jornalista   tarimbado,  de estilo  objetivo, contudo não destituído  de uma  profunda sensibilidade que, por vezes, alcança  as fontes do lirismo, como  seria  exemplo,  entre outros  no livro,  aquele  trecho  em que ele,  menino,  em Água Branca, Piauí,  avistava,  da calçada da igreja,  na distância, aquele tempo  católico que lhe parecia  cada vez maior  à medida que   dele se aproximava, situação  tão bem  expressa  da perspectiva  da memória e linguagem   infantis: “Chega dava tontura!”  (“De volta ao começo,” primeira seção,  p. 21).
     Pulando nuvens é mais um  livro sobre a vida,  e não sobre a morte, pela  vida  pulsando  delicadamente  na memória  do autor e cobrindo  todas as lembranças  tenras,   guardadas  no fundo do coração  do  escritor.
   É uma narrativa que se propõe provocar, na sensibilidade dos leitores, o compartilhamento  dos deliciosos  momentos  da presença   querida desse  jovem belo,  forte,   amante da vida  intensa e de todas  as alegrias que a  existência pode  propiciar a quem  sabe amá-la com  o peito aberto às amizades,  aos amores  de juventude,   às predileções culturais,  seja  na música,  no teatro, na   dedicação ao parkour, à arquitetura e às passarelas,  no campo da imagem  publicitária,  na vida familiar. E que exemplo  de  bem-aventurança  familiar   nos dá o autor, até mesmo  no sentido  pedagógico de um  pai extremoso, responsável e intensamente  amoroso de sua família!.
        Tudo isso é  muito bem   relatado  pela  voz paterna que, ao contrário de outros autores,  não faz  da tragédia familiar  um oceano  de  lamúrias, mas conserva, no limite do possível,   resguardar  o que de vivo e amado o filho lhe deixou.
        O  espírito do  livro  se bifurca entre  as recordações  do autor e as do filho  trazido  ao texto  pela força  da linguagem   que  sustenta  a narrativa através da exaltação  à vida – urge sublinhar -   suscitada pelas  múltiplas e preciosas recordações do filho vivo,  falecido precocemente em acidente  ao pular da ponte sobre o rio Longá, em Esperantina,  interior piauiense.
       Em algumas passagens do livro  não há como   se comover até às lágrimas   diante de situações  que são  verdadeiros modelos de amor, de amizade,  de solidariedade, entre o autor e o filho,ou entre o autor e a família.
     Confesso que, durante a leitura desse livro de afetividades – repito -   lamentei  não ter conhecido e abraçado (o abraço forte desse menino-gigante),  esse rapaz que, no verdor dos anos, admirado  pelos amigos e por todos os que por acaso o   conheceram. Daniel, na verdade,  não  foi embora, não. Está vivo e esbelto  não apenas na memória  impressa de Pulando nuvens – milagre do poder da linguagem -, a qual, em forma de arte, se torna, fenomenologicamnte,    vida  perene -  mas também  no pensamento fiel e recorrente das reminiscências   que duram  porque  são eternas.


*Cf. Orações do meu dia a dia,  coordenação do Pe. Lourenço Ferronatto.São Paulo : Associação Católica  Nossa Senhora de Fátima. 1ª ed.,  2016, p.7-8.

2 comentários:

  1. Cunha e Silva, parabéns pela narrativa e por sua sensibilidade. Conheci o Daniel na Igreja de Fátima, meses ou semanas antes do último e eterno salto para a glória celestial, tive a melhor das impressões.
    Ao Zózimo e familiares a certeza que nunca esteve ou estará sozinho a lembrar do lindo pássaro DANIEL, seus amigos e sensíveis jovens os terão sempre na lembrança..Vida que segue com Daniel nos céus.
    Um abraço Itamar

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  2. Caro Itamar:

    V., sempre atento ao espaço literário, sempre alguém que prestigia, estimua, faz crescer o ânimo dos que se dedicam à cultura.
    Realmente, V. foi um felizardo por ter conhecido o jovem Daniel, cuja passagem pela Terra não foi em vão.
    Aqui deixou o seu exemplo de bom menino, comprometido com os seus múltiplos interesses de sua geração mais livre do que foi a de minha geração. belo exemplo de vida.

    Forte abraço do
    Cunha e Silva Filho

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