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Corujas, tetéus, casacas e outros bichos
Elmar Carvalho
No local onde nos últimos meses me hospedo em Parnaíba, tenho
ainda uma bela visão, de paisagens próximas e de outras que vejo ao longe.
Assim, vejo os grandes cata-ventos das usinas eólicas, que me fazem recordar os
belos e quase bucólicos cata-ventos de minha meninice, e as dunas que outrora
ornaram a Lagoa do Portinho... Disse “outrora ornaram” porque a lagoa já não
existe, ou pelo menos já não existe em todo seu esplendor e glória.
Bem distante, como um debrum do céu, vejo uma nesga azulada
do que deve ser uma serra. Pensei fosse a Serra Grande, a Serra da Ibiapaba, o
que me faz lembrar os romances indígenas de Alencar, a viçosa e antiga Viçosa
imperial, e as graciosas Tianguá e Ubajara, que conheci em minha adolescência,
quando desejei morar nelas, para melhor lhes sentir as névoas e o frio, e dessa
forma escrever friorentos e nevoentos poemas, cheios de distância e de brumas.
Todavia, alguns dizem ser uma outra serra, menos imponente e mais perto,
pertencente ao município de Luís Correia.
O local a que me refiro se presta a umas boas pedaladas. Por
isso, resolvi adquirir uma bicicleta. Nesses passeios ciclísticos, vejo as
ervas e as flores silvestres da terra ainda sem construções. E isso me faz
recordar a minha adolescência, em que, algumas vezes, eu empreendia longos
passeios pela periferia e arrabaldes de Campo Maior, tendo numa das vezes ido
até a pequenina Serra Grande de Campo Maior ou Serra Azul, ou mais propriamente
morros isolados de Santo Antônio do Surubim.
Fico contente de ainda saber manejar, com certo vigor e
perícia, a “magrela” de várias marchas, tão diferente da minha velha e
despojada Bristol ou Gulliver. A indefinição se deve ao fato de que o nome da
marca já não era visto na época ou de que já se esvaiu na fragilidade da
memória.
Quando estou a passear, vejo várias aves e algumas vezes
desfruto do prazer de lhes ouvir o canto, quando paro de pedalar para melhor
lhes apreciar o gorjeio. Vejo e ouço o bem-te-vi com a sua emblemática
admoestação ou advertência: bem te vi!; os pernaltas e ariscos tetéus, que logo
se afastam ou alçam voo, enquanto alardeiam o suposto perigo com as suas
metálicas trombetas de alarme.
Os casacas também marcam sua presença, como aladas notas
musicais vivas, pousadas sobre as paralelas da partitura dos fios elétricos,
para retomar uma metáfora de um meu antigo poema. Há os casacas-de-couro, de
sóbria plumagem amarronzada e uniforme, como se vestissem um gibão de couro dos
nossos indômitos vaqueiros, de que, creio, lhes adveio o nome. E há os casacas-de-peito-vermelho,
elegantes e belos, como se trajassem um colete vermelho por baixo do paletó
negro das asas. Não há negar, são flamenguistas ostensivos e aguerridos.
Nessas andanças vejo ao longe, em revoada, a magnífica
coreografia dos urubus, que circulando se vão afastando, em sincronizado
movimento de rotação e translação. E numa das vezes flagrei, de maneira para
mim inusitada, dois exemplares dessas aves de rapina a fazerem amor, no cocuruto
do telhado de uma das casas. Disse “fazer amor” porque o casal não se bicava e
nem se espezinhava, antes se cheiravam e se acolhiam e se agasalhavam. Pensei
que os urubus faziam isso entre as gazas das nuvens do poeta, em verdadeiras
pulutricas e acrobacias aéreas, como autênticos e literais nefelibatas.
Mas principalmente encontro, nesses périplos de boas
pedaladas, as circunspectas corujas, encarapitadas em postes ou em montes de
pedras, ou simplesmente postadas no descampado. Olham-me com desconfiança, com
seus olhos argutos, de pupilas arregaladas. Às vezes fogem. Outras vezes
permanecem no mesmo lugar, mas ariscas, em estado de vigília e defesa.
Elas me fazem recordar os caburés dos áridos tabuleiros de
minha terra, e o caburé com frio do poema dacostiano, piando, piando, contudo
sem folhas lívidas cantando... Também recordo as corujas esculpidas da coleção
que aos poucos estou formando, de diferentes tamanhos e materiais. Muitos as
consideram aves de mau presságio, mormente as rasga-mortalha, de dilacerante
canto, que dizem antecipar acontecimentos funestos.
Em minha negra bicicleta, como um esdrúxulo centauro, tento
lhes imitar o piado. Mas parece que o meu crocitar é muito canhestro, porque
elas, do alto do poste em que se empoleiram, me olham com certo desdém, talvez por
me acharem desafinado. Ou por entenderem que eu seja uma grande, desengonçada e
feia coruja.
Porém, em certa ocasião, uma pousou tão perto de mim, que
fiquei com a impressão de que ela me reconheceu ao menos como um primo pobre e
distante, a quem ela não poderia dar muita confiança, a não ser em rápida e
fugaz eventualidade.
Lindo texto, parece-me os velhos tempos que perambulava pelas terras de Viçosa do Ceará ou quando eu jogava bola na beira da Lagoa do Bebedouro em Parnaíba. Ainda hoje no Alto de Fátima aqui em Teresina, não tenho mais os toques de cornetas na alvorada dos quartéis, mas escuto de longe, ainda, os cantos dos bem-te-vis e dos pardais para mim acordar todas as manhãs...
ResponderExcluirCaro Cel. Everardo,
ResponderExcluirMuito obrigado.
Apenas tive o mérito de ir beber diretamente na fonte; ou seja, na natureza.
Caro Elmar Carvalho, feliz Dia dos Pais, que Deus lhe ilumine sempre, conserve sua saúde e lhe dê inspiração.
ResponderExcluirObrigado. Idem para o nobre amigo. E que Deus nos abençoe a nós todos.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA (...) crônica se sobressai pelo hábil apelo à natureza, descrevendo com beleza e sensibilidade a fauna e a geografia do entorno.
ResponderExcluirAs referências a clássicas paisagens da grande literatura enaltece o texto, fazendo-o dialogar com os grandes mestres, informando e emocionando o leitor.
“Corujas, tetéus, casacas e outros bichos” descreve as aves em seu habitat natural, mas vai além, transportando o leitor para o belo cenário construído pela narrativa.
Os diálogos com as aves e as reminiscências de tempos de adolescência são tecidos em linguagem elegante e poética, à altura dos nossos melhores cronistas.
Senti-me pedalando no litoral piauiense, seguido pelo bando de aves e tocado pela brisa leve do mar, sem nenhuma pressa pelo fim de sua bela crônica.
Enfim, “Corujas, tetéus, casacas e outros bichos” habilita-se a conquistar a posteridade, consagrando-se como um grande momento da crônica piauiense.
Parabéns, poeta!
Arnaldo Boson
Obrigado, caro amigo.
ResponderExcluirVocê fez uma bela análise de meu texto, quase cometendo uma outra crônica.