De José de
Freitas ao Arco-Íris
Elmar Carvalho
Atendendo convite do amigo Raimundo Lima, escritor e juiz
aposentado, fui, em companhia de Fátima e minha irmã Maria José, visitar o seu
sítio, localizado a 20 quilômetros da cidade de José de Freitas. Procurei sair
cedo, para ter tempo de dar uma volta em seus diferentes logradouros, praças e
ruas, a fim de recordar os tempos ditosos em que nela morei, quando tinha 14
anos de idade, e tudo me sorria, e a esperança habitava meu jovem peito. Como
no dizer do poeta, as graças me iam à frente espalhando rosas e a estrada era
verdejante e florida.
Primeiro revi o morro, no centro da cidade, que na época não
tinha nome. Era simplesmente o morro, em cujo cimo se erguia um pequeno Cristo
Redentor, de acolhedores braços abertos. Muitos anos depois, passaram a
chama-lo de “do Fidié”, herói português; eu prefiro chamá-lo de Morro do
Livramento, em homenagem ao antigo nome da cidade e às nossas lutas
libertárias.
Não era poluído, como hoje, por várias antenas de
telecomunicações. Eu o escalava por quase todos os lados, em companhia do
Carlos, do Itamar e outros colegas de traquinagens. Quase nunca usávamos a
escadaria. Quando precisei usá-la, aos 50 anos, o fiz de forma açodada,
estugando os passos; mas logo senti o impacto da idade, e tive de me conter,
para recuperar o fôlego. Era o prelúdio da velhice que já me acenava.
A santa – Nossa Senhora do Carmo, que eu pensava ser a do
Livramento, padroeira da pequena e aprazível urbe – em seu imaculado manto
branco nos acolhia. Ficávamos a seus pés, a conversar, enquanto olhávamos a
paisagem ao longe e o movimento da cidade, então ainda pequena, pacata, mimosa
e bucólica. Consternado, observei que a bela escultura apresentava uma crosta
escura, não sei se apenas sujeira, ou se moradas de insetos, como cupins ou
marimbondos, de fogo ou não. Urge que o poder público municipal ou a paróquia
faça alguma coisa, para que esse belo patrimônio artístico não se arruíne de
forma definitiva e irreparável. Ainda mais que é uma obra do grande escultor
Murilo Couto.
Indo em direção à casa em que morei, perto da de dona Irá,
mãe do Carlos, do Chico, do Nando e do Nonato, passei pelo teatro, que foi
restaurado. Não sei a frequência com que é utilizado em apresentações
artísticas e teatrais. Mas em 1970 ali cantaram Valdick Soriano e o
piracuruquense Roberto Müller. Na frente havia o clube social e dançante, que
já não existe.
Perto, mais precisamente na frente do cemitério velho, dito
dos ricos, havia um campo de futebol, que ajudei a fazer, com o apoio do padre
Deusdete Craveiro de Melo e o auxílio de garotos, meus colegas e vizinhos. Invadido
pelas casas, não mais existe. Existe ainda a igreja de São Francisco, então
inativa, e hoje restaurada e em pleno funcionamento. Foi construída por Cândida
Cunha, uma das habitantes do pequenino campo santo, consoante li, menino, em
sua lápide.
Para minha consternação, a casa em que morei, abandonada
pelos proprietários, talvez em face de interminável inventário, já começa a se
transformar em escombro. Perto dela ficava outro campinho de futebol, onde
joguei diariamente, na posição de goleiro, que era favorecida pela areia fofa
que então existia. Ali, garoto franzino, eu me esticava em ornamentais
“voadas”, a imitar o Félix Miéli Venerando, o Beroso e o Coló. Era cercado por
grandes e frondosas fruteiras. Também não mais existe, tomado que foi por residências
e cercados. A casa e oficina de Zezé Barros, o melhor marceneiro de José de
Freitas, lhe ficava defronte. Era ele um dos peladeiros, conquanto fosse bem
mais velho que nós outros, moleques dos arredores.
Resolvi dar uma olhada no cemitério e no estádio, que tantas
vezes vi em minha infância. São contíguos. Para minha profunda tristeza e
decepção, a praça esportiva, que pensei ter passado por melhoramentos, está em
situação deplorável, com o muro bastante deteriorado. O cemitério, ao menos no
momento em que o contornei, tinha o aspecto de que fora esquecido pelo próprio
esquecimento, como nos versos de Jorge de Lima. Abandonado talvez mesmo pela
morte, a quem deve servir.
Retornando ao centro da cidade, vi o prédio onde outrora
funcionou a famosa Casa Almendra, fundada pelo patriarca José de (Almendra) Freitas.
Tinha várias filiais, e era uma das maiores firmas do Piauí em seu ramo de
atividade. Algumas vezes vi o senhor Ferdinand Freitas em seu interior, em seus
afazeres. Nessa época, idos de 1970, ela só possuía uma sucursal, em Teresina,
se não incorro em equívoco. Para aumentar a minha nostalgia o Bar Glória,
orgulho dos freitenses, esvaiu-se no tempo, e já não ostenta a sua glória
passada, o moderno balcão frigorífico e seus saborosos picolés.
Emocionado com tantas lembranças, me pareceu enxergar o vulto
do padre Deusdete, vestido em sua batina, entre as naves da velha matriz. E
como arremate dessas lembranças contemplei o Ginásio Moderno Estadual Antônio
Freitas, onde fiz o segundo ano ginasial na época em que o Brasil ganhou o
tricampeonato mundial de futebol.
Recordei meus colegas e mestres. Nomeio alguns de meus velhos
professores: Pe. Deusdete, Sebastião (colega de meu pai nos Correios), José
Acélio Correia (gerente do BEP) e a professora Durvalina Pereira dos Santos,
que apesar de promotora de Justiça e de lecionar matemática, que sempre foi um
bicho papão, jamais intimidava ou amedrontava seus alunos, como era um vezo dos
professores de matemática da época.
Entre os alunos (e contando, confesso, com a ajuda do amigo
Francisco Costa, radialista e fiscal da SEFAZ, de elefantina memória) cito: Zé
Bacharel (da família Chaves, vereador em várias legislaturas), Farias, Edmilson
e Carlos Leite, João Rocha, Paulo Paiva e José Nascimento (Zé Rosinha),
recentemente falecido, que veio a se formar em medicina. Sem dúvida, cada um
seguiu o caminho que lhe coube percorrer, embora eu os tenha perdido de vista
nas muitas esquinas e desvãos da vida e do tempo.
Feita esta última e sacra estação em busca do tempo perdido
nos esconderijos de um passado de mais de quatro décadas, fui à procura do pote
de ouro no Arco-Íris, sítio dos amigos Raimundo Lima e Benedita, juízes
aposentados.
Quando Raimundo adquiriu essa fazenda, pediu algumas
sugestões para lhe mudar a designação. Por ser poeta e admirador de Manuel
Bandeira, sugeri-lhe “Pasárgada”, título de um belo poema do velho bardo e nome
da velha cidade persa de Ciro, e “Vale do Marataoã”, por ficar à margem
esquerda do histórico rio, outrora integrante do topônimo da ancestral cidade
de Barras.
Ao chegar, foi que fiquei sabendo: ia ser comemorado o
aniversário do bravo Raimundo. Não irei revelar de quantos anos. Foi uma linda
festa, sem som volumoso e estridente, e sem cachaçada. Os irmãos, primos,
sobrinhos, tios, genros e noras se estimavam, mas não houve necessidade de
selfie. À sombra do alpendre e de um pé de mama-cachorro, personagem do livro infanto-juvenil
do dono da casa, mantive uma agradável palestra com este, com o irmão Josué
Bonfim e José Pedro Araújo.
Antes do almoço o Lívio Bonfim, casado com Lara Larissa,
romancista e cronista, filha dos donos da casa, proferiu uma bela oração de
agradecimento a Deus, por todas as dádivas recebidas, inclusive o alimento,
que, por sinal, foi um manjar digno de deuses da gastronomia. E que me fez
pecar, tal a gula de que fui justamente acometido.
Grande Poeta, foi de fato um verdadeiro dia-no-campo, igual aqueles que tanto enleia a criançada, e que instigou a sua memória e nos permitiu beber na fonte inesgotável da sua saudade. Com esta crônica com sabor campestre, mas ao mesmo tempo histórica, passeamos como que virtualmente pela pequenina, mas aconchegante, Livramento. Foi, de fato, um dia que ficou tão bem caracterizado nesta gostosa crônica!
ResponderExcluirNo final do périplo - no tempo e espaço abordado pela crônica - só faltou uma "gelada" debaixo do pé de mama-cachorro, visto que é terminantemente proibida pelo nosso bom anfitrião, Dom Raimundo (de Alencastro Figueiroa) Lima. Valeu!
ResponderExcluirTão bom ler crônica cujo autor as vivência,é um mixto de alegria e sofrimento.A volta ao passado,a lugares onde fomos felizes mesmo tendo consciência de que o tempo não perdoa os que se ausentam,e as mudanças nos afetam,enfim é a vida!Parabéns pela crônica-poesia.
ResponderExcluirMuito obrigado.
ExcluirEstimo que tenha gostado.