A SAGA DE
VAQUEIROS E BOIS BRAVOS
Valério Chaves
Des. inativo do TJPI
O mundo mágico da poesia popular
envolto em mistérios, crendices, romances de cordel e encantamento - capaz de
transformar pessoas, animais, coisas em entidades e outras estórias fantásticas
- faz parte da memória coletiva extraída do cenário da civilização do Nordeste
brasileiro e do dia a dia de uma figura
sofrida que leva a vida debruçada no lombo de um cavalo, protegida pela
fé no seu padroeiro e por sua armadura feita de couro curtido.
Essa personagem sofrida, paciente e
forte é o homem vaqueiro que nasce, cresce e morre na labuta diária das
fazendas de gado; que gasta a maior parte de seu tempo pondo a vida em perigo,
lidando com animais desgarrados nas caatingas esturricadas, entre galhos e
espinhos ou à procura de água e pastagens durante o período de seca no sertão.
Para tanto, usa trajes apropriados:
perneira (calça), gibão, guarda-peito, chinelo, chapéu de couro, além do
chicote, ferrão, esporas e um cavalo de confiança.
A descrição dessa vestimenta tem, no
fundo, um propósito verdadeiramente sentimental. É que o autor desta crônica,
nos albores de sua juventude, talvez por influência do ambiente rural em que
nasceu ou espelhado na profissão do pai, exerceu a profissão de vaqueiro. E
nessa condição, ouviu muita gente falar sobre a pega de dois bois bravos (um
liso e um raposão) nascidos e criados nas matas fechadas das fazendas
Tabuleirão, Boi Morto e Campo Limpo,
situadas na região dos municípios de Porto Alegre e Antônio Almeida, centro-sul
do Piauí.
Sem datas precisas, mas sabe-se que
foi em meados de 1945 que a pega dos bois causou enorme alvoroço entre
vaqueiros dessa região - alguns levados pela fama dos animais (mandingueiros
como eram chamados) pois ninguém, mesmo os mais afoitos, conseguiam pelá-los
pelo rabo, dado a velocidade quando corriam parecendo um raio por entre a
paisagem seca das chapadas e matas fechadas. Até feiticeiros e atiradores
famosos se aventuraram, sem êxito, na pega dos bois do fazendeiro Militão.
Na esperança de alcançar maior fama,
muitos faziam até promessa com santos milagreiros; outros se inspiravam em
literatura de cordel como o romance “O Boi Mandingueiro”, cujas primeiras
estrofes cantavam ou recitavam de improviso, dizendo assim:
No Rio Grande do Norte
Havia um fazendeiro
Era muito respeitado
Pela fama do dinheiro
Criava numa fazenda
Pra qualquer encomenda
Um grande boi mandingueiro.
Esse bicho quando corria
Segundo diz o boato
Tinha equilíbrio no corpo
Com ligeireza de gato
Por meio de forte mandinga
Corria mais na caatinga
Do que veado no mato
Mas pra encurtar a conversa,
vejamos, em resumo, como terminou a aventura da pega desses bois contada em
versos e rimas de moradores nas fazendas da região, valendo citar, a título de
homenagem, o nome de Antônio Saturnino, Manoel Maria e minha mãe Dorcas
Ferreira Pinto, todos já falecidos.
No dia 13 de julho do ano de 1945,
ao romper do dia, um vaqueiro chamado Zé Valério, saiu de casa dizendo para a
mulher que naquele dia ia pegar o boi raposo nas matas do Bebedouro.
O boi ao pressentir a presença do
vaqueiro, correu veloz como relâmpago, abrindo brechas na mata. O vaqueiro, por
sua vez, para não perder de vista, seguiu no encalço passando pelas brechas que
o boi abria, saltando montes de pedras e quebrando galhos de pau.
Depois de alguns minutos de carreira, graças a
uma maior rapidez do cavalo, o vaqueiro pôde alcançar o rabo boi, a ponto de
com um só impulso, enfiar sua faca afiada sobre a anca do animal, até encostar
no cabo, vindo este cair ao chão, berrando, já quase sem vida, aos pés do herói
valente.
A morte do raposão marcou assim a
saga de vaqueiros e bois do Piauí cujo final aconteceu graças a “um cavalo
corredor e um vaqueiro de valor”, como registrado na memória do povo e nas
últimas estrofes do romance feito na época por quem viveu e testemunhou esta
epopeia sertaneja ocorrida em nosso Estado.
Faço o registro dessa peleja entre o
homem e o boi apenas para mostrar que o Piauí ainda é pobre na divulgação de
histórias de sua gente que sofreu, sorriu, viveu e morreu, ou permanece no
interior trabalhando na dureza dos roçados, na criação de gado, enfim, levando
vidas secas, vítima do abandono, da exploração eleitoreira e da deseducação,
sob o olhar desprezível das lideranças políticas.
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