sexta-feira, 10 de agosto de 2018

BUCHADA DE BODE NA FAZENDA DO ROCIO (*)

Zé Francisco, Neto, Elmar, dona Socorro e o casal Celso e Nevinha
Elmar, Neto e Zé Francisco, em memorável manhã, no Sítio Carajás
Vista observada do Sítio Carajás
Elmar, Neto, João Luís Queiroz e Zé Francisco Marques, no alpendre da antiga sede da extinta Fazenda do Rocio, pertencente à família do meu saudoso amigo Otaviano e do dramaturgo Francisco Pereira da Silva


BUCHADA DE BODE NA FAZENDA DO ROCIO (*)

Elmar Carvalho

No dia do lançamento de meu livro Bernardo de Carvalho – O Fundador de Bitorocara, encontrei-me com o amigo João Luís Queiroz. É ele médico veterinário e dono de uma loja de produtos destinados à agricultura e à pecuária. Fundou, juntamente com Elton Andrade e outros companheiros, a Associação dos Criadores de Caprinos e Ovinos de Campo Maior – Ascamcco, que funciona na antiga sede da Fazenda Rocio, no Bairro São João, no local onde outrora eram realizadas as exposições agropecuárias.

Em presença do professor Zé Francisco Marques, disse-lhe que minha mãe havia descoberto uma senhora que era uma exímia preparadora de buchada de bode, e que eu iria encomendar essa iguaria por ocasião de minha próxima visita a meus pais. O João Luís ficou interessado e me perguntou a data de minha vinda. Em seguida, disse que ele mesmo iria mandar preparar uma buchada, a ser feita com bode de seu próprio rebanho. Marcamos a data e o local do repasto.

No domingo agendado, nos encontramos na casa grande da extinta Fazenda do Rocio. Ficamos no alpendre que possibilitava a visão de umas árvores frondosas e de uma nesga do tabuleiro campomaiorense, apesar de o imóvel ficar atualmente encravado em área urbana. Fizeram parte do ágape, além do anfitrião, o Zé Francisco, o professor Neto Chuíba, senhor feudal do sítio Carajás, o universitário Guilherme Queiroz, filho do João Luís, e este cronista.

Além do multicitado quitute, vieram outras iguarias, entre as quais um delicioso sarapatel. Tudo foi preparado pela moradora da sede da Acampi, que se esmerou no preparo do repasto, que além de farto foi supimpa. Todos fomos unânimes em reconhecer a qualidade gastronômica dos pratos ofertados, que deglutimos com muito brio e entusiasmo, em meio a alegre e descontraída libação. Sendo João Luís Queiroz um grande apreciador da cultura nordestina, sobretudo das cantorias, dos desafios de repentistas, dos poemas de cordel e do autêntico forró nordestino, nos brindou com belíssima camisa em homenagem a Luiz Gonzaga, o insuperável e eterno Rei do Baião, que passamos a envergar imediatamente. Parecíamos estar em sua fazenda do Exu. Ao final, fomos enquadrados pelo meu irmão Antônio José, que como um legítimo cangaceiro virtual nos colocou sob a mira de uma câmera fotográfica.


Como é de minha praxe, propus que fizéssemos uma rodada do que chamo de discursos-relâmpagos, referentes ao evento. Para dar o exemplo e estimular os demais amigos, iniciei a peroração. Enalteci as qualidades e virtudes de cada um dos presentes. Recordei que quase oito anos atrás, a saudosa mãe do João Luís, a pedido de meu pai, orou por minha saúde, e me enviou um escapulário, que me acompanhou durante muitos anos, em sinal de Fé e de agradecimento pela minha cura. Seus pais, Francisco e Nazaré, foram amigos dos meus. A seguir fiz a louvação da bela paisagem do entorno, ainda um tanto bucólica, o que mais se acentuou com a presença de algumas reses bovinas, que coroaram a festa, dando-lhe um aspecto também pastoril. Alinhavei considerações sobre o histórico da velha fazenda do Rocio, mormente a respeito dos familiares de seus antigos proprietários.

Disse que ela pertencera à família do grande teatrólogo Francisco Pereira da Silva, um dos maiores do Brasil, filho ilustre de Campo Maior, que teve a peça Chapéu de Sebo encenada, durante vários anos, em Berlim, na Alemanha. Falei de minha amizade com os filhos dos saudosos João Capucho do Vale e dona Consolação. Recordei que no início da década de 70, quando eu tinha 16 ou 17 anos de idade, o poeta Odylo Costa, filho, e sua mulher, a pintora campomaiorense Maria de Nazareth (irmã de Chico Pereira), visitaram Campo Maior. Cheguei a ver o casal na casa do senhor João Capucho, situada perto do Centro Operário.

A minha timidez da época e de sempre não me deixou cumprimentar Odylo, e lhe dizer que eu também fazia versos, ainda que tortos ou capengas. De qualquer sorte, pedi emprestado, através do Otaviano Furtado do Vale, o seu livro Cantiga Incompleta, que ele autografara para os seus parentes João Capucho e dona Consolação, pais do meu amigo. O poeta era sabidamente um mestre na arte da convivência, e soube construir e conservar belas amizades, entre as quais as dos bardos Carlos Drummond de Andrade, Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, que foram seus padrinhos de casamento. Por sinal, esses vates são de minha admiração, e de todos eles tenho livros em minhas estantes.

A minha retração me impediu de ganhar – quem sabe? – um exemplar de Cantiga Incompleta, autografado pelo autor, mas hoje tenho a sua Poesia Completa, edição organizada por Virgílio Costa, seu filho, em lugar de honra em minha biblioteca, que fui forçado a “enxugar” bastante no ano passado, por falta de espaço físico. Para minha maior satisfação, na oportunidade em que consegui essa obra, adquiri também os três volumes de Teatro Completo de Francisco Pereira da Silva, publicados pela Funarte em 2009, igualmente organizados pelo Virgílio Costa, que é escritor, historiador e pintor.

Na apresentação da obra, que enfeixa 32 peças, o Ministro da Cultura, Juca Ferreira,  diz que o grande dramaturgo “fez da pobreza e da secura do Nordeste sua temática principal e formou, com Ariano Suassuna e Osman Lins, uma tríade de expoentes da dramaturgia regionalista”, mas reconhece a universalidade de FPS quando diz que a sua obra “extrapola os temas regionais e, em muitos casos, se volta para a realidade cultural do país”. Grandes diretores e atores, entre os quais Gianni Ratto, Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi, Francisco Cuoco, Zilka Salaberry, Maria Gladys, José Wilker e Sérgio Britto, encenaram obras de sua autoria. Uma de suas peças foi transformada em filme. Não obstante tudo isso, Sérgio Mamberti, em nota introdutória, reconhece que Chico Pereira foi um artista extremamente modesto. Sua timidez já me fora relatada pelo ator Tarciso Prado, que foi seu amigo e lhe tinha profunda admiração.

Ele era tio de Olavo Pereira da Silva Filho, arquiteto, um dos mais destacados lutadores da preservação arquitetônica do Piauí, autor de importantes obras sobre os velhos solares do Piauí e do Maranhão, e que arrebatou um dos maiores prêmios nacionais dessa área cultural. Era primo de Abdias Silva, campomaiorense, com quem tive a honra de me corresponder, que foi um dos maiores jornalista do país, e do memorialista Francisco Cardoso da Silva.

A alta qualidade de sua obra, o seu estilo apurado, a sua técnica esmerada, no momento em que o teatro nacional enveredou pelo experimentalismo e em busca de pretensas ou verdadeiras vanguardas, fez com que a sua fatura teatral, embora bem recebida pela crítica, fosse “bastante ignorada pelo público”, segundo foi observado na cronologia, na qual consta que sua dramaturgia fora escrita numa hora errada, ipso facto, além de haver encontrado “certa hostilidade da elite sulista à cultura e ao desnudamento da pobreza nordestina”, de onde o dramaturgo teria extraído sua principal temática.

Ao contemplar a velha sede da Fazenda do Rocio, não pude deixar de me lembrar dos versos em que o poeta H. Dobal disse ali haver tomado banho de leite. E não pude deixar de lamentar que o notável teatrólogo campomaiorense pouco seja lembrado e festejado em sua terra natal, apesar de há muitos anos uma lei estadual ter determinado a criação do Memorial Francisco Pereira da Silva. Até hoje essa lei nunca foi executada. Não sei o que impede a criação desse Memorial, uma vez que o autor já é falecido e é um dos maiores teatrólogos brasileiros.

17 de janeiro de 2013

(*) Crônica republicada como uma homenagem ao professor Neto Chuíba (Antônio José Araújo Silva), falecido em 27/07/2013, em Campo Maior, em sua residência no Sítio Carajás, onde estive várias vezes, acompanhado de nosso amigo comum Zé Francisco Marques, professor e musicista.

3 comentários:

  1. Nunca me esqueço em 2001,aos 15 anos fui convidado por um colega de sala para passar os festejos da cidade de Piripiri, terra natal dele. Então fomos nos dois, mais um outro colega de sala, fomos e voltamos para Piripiti de onibus. Acho que passamos tres dias na cidade,coincidia com o feriado da Proclamação da República. Um certo dia houve na casa do meu colega anfitrião um almoço de buxada de bode, nunca tinha comido,talvez até ouvido falar. Só lembro com certeza o esforço muito grande de esconder que não tinha gostado dessa comida típica.Sim, eu degustei, não podia fazer essa desfeita na casa onde eu estava hospedado.

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  2. Amigo Poeta Elmar,
    Mais uma vez você nos brinda com uma belíssima crônica, onde os personagens ricamente retrataram o cotidiano da nossa gente. A abordagem sobre a buchada de bode e o sarapatel foi de dar água na boca!
    Gostaria de agradecer o exemplar de "Rosa dos Ventos Gerais", gentilmente presenteado e autografado por você em nosso recente encontro.
    Abraços,
    Ben-Hur Sampaio

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  3. Na época das campanhas eleitorais, certos políticos que sentem até nojo de buchada, comem essa iguaria, dizem que gostaram muito e inclusive lambem os beijos. Vejam só a que ponto chegam certos hipócritas, sacripantas e demagogos.

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