domingo, 3 de fevereiro de 2019

Os Poemas de Clara Mello




Os Poemas de Clara Mello

Elmar Carvalho

Neste sábado, na APL, recebi através do confrade Zózimo Tavares o livro Vênus em Câncer, de Clara Mello. Um livro, e principalmente um livro de poemas nos dias de hoje, é sempre uma caixa de surpresa, no tocante à qualidade. Mas tive uma grata surpresa. O pequeno livro, de apenas 59 páginas, é de alta qualidade. Seus poemas podem ser considerados como uma perfeita tradução/tradição do que existe de melhor na contemporaneidade poética. Além do mais, bem editado e revisado com esmero.

A autora é hábil no uso das palavras. Sabe jogar com elas. Não é exagero dizer que é uma malabarista no modo como as dispõe na urdidura e encadeamento dos versos, em verdadeiro trabalho lúdico, prazeroso. Ao extrair polissemias de uma mesma palavra, nos surpreende na construção de seus versos, às vezes criando ressignificados e significados inusitados ou mesmo paradoxais e antitéticos, para dar mais riqueza e síntese ao poema.

Ao utilizar parônimos, pôde “quebrar”, algumas vezes, o discurso mais previsível da frase, criando um contexto inesperado, por vezes coloquial e bem-humorado. Com parcimônia, fez uso de intertextualizações, à procura de releituras e interatividade, inclusive com o próprio leitor, que, em cumplicidade, deve recriar e até procurar outras e novas interpretações.

Ainda quando ela, com a sua facilidade de brincar com os vocábulos, constrói os seus trocadilhos, hoje recurso muito usado na poética contemporânea (às vezes de forma abusiva e exagerada), não faz simples jogos engraçados de palavras, mas lhes dá um denso conteúdo, adequado ao ritmo e temática do poema. Demonstrando maturidade e compromisso com a sua poesia, não teve pressa em publicar os seus versos, uma vez que a obra foi editada em 2018, quando Clara Mello já tinha “20 e poucos anos”, como ela mesma disse no poema Curriculum Vitale.

Parece que herdou a melodia e musicalidade da mãe (Patricia Mellodi) e a inteligência do pai (João Cláudio Moreno), além de haver adquirido outros saberes e sabores que a dinâmica da vida e o seu esforço e leituras lhe deram.

Três poemas de Clara Mello


Esfinge

Essa esfinge
Ainda vai me decifrar
Antes que eu devore
Esse mistério a tempo
Foi só um contratempo
E já tá tudo bem
Eu não minto muito bem
O corpo entrega
o que a fala nega, hesitante
Me dá só um instante
que eu entrego o jogo.
Eu não jogo, eu me jogo
É tão simples que complica
Mas nada disso se aplica
Porque ainda dá tempo
Desse labirinto que eu me meti
Dessa esquina em que eu me perdi
Ainda dá pra sair, eu sustento
Ainda dá tempo
Quem sabe mais tarde
eu tento.

Triz

Cada fato é cicatriz
cada amor um acidente
de que eu escapei por um triz
não sem ferimentos
mas sem ressentimentos
e sigo
feliz.

Simples assim

Eu sou solar
você de lua
mas se anoitece
você vem
amanhecer em mim.

Extraídos do livro Vênus em Câncer (Rio de Janeiro: Multifoco, 2018)   

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