terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O enviado do Diabo



O enviado do Diabo
Pádua Marques Cronista, contista e romancista
Mané Vinvim, Domingos, Sardião, Florindo, Seu Lino, Pilão, Tunga, Zé Preto, Menelau, Capote e Miguel Arcanjo estavam ali no porto Salgado naquela terça-feira de mão no queixo esperando uma decisão do encarregado dos estivadores pra saberem como iria ficar a situação dos dias parados, sem movimento e muita conversa naquele meio pra fim de agosto em Parnaíba. Alguns deles haviam passado já umas três noites na beira do rio matando muriçocas.

No amanhecer do dia seguinte vinha lá de dentro dos armazéns e lojas alguém com alguma novidade sobre de como iria ficar o serviço daqueles homens que pouco tinham pra levar pras suas casas. Mas isturdia havera de tudo voltar a ser como antes. Em casa da maioria, morando nos distantes, as crianças passavam necessidade e os calangos estavam passando por debaixo das trempes da cozinha porque a Parnaíba estava parada e as mulheres dos estivadores não tinham o de comer pra botar na panela. Tardasse muito podia dar até em morte!

Tudo por culpa de um tal Waldemar Figueiroa, o novo inspetor da alfândega de Parnaíba e que tão logo desembarcou no porto Salgado foi logo impondo mil e uma normas pra tudo quanto era atividade. Era ter conhecimento de que estava atracando um vapor, um barco qualquer e lá estava ele mesmo fazendo revista nas cargas, bagagens e até nas pessoas!

Não tinha conversa e nem privilégios. O coitado do velho que viesse dos Araioses ou de São Bernardo com a filha e o genro se consultar com doutor Mirócles na Santa Casa e ele Figueiroa suspeitasse, era de mandar abrir a mala e revirar tudo. Caísse na besteira de trazer dos Araioses um leitão, um capado, um franguinho que fosse pra um agrado a doutor Zé Narciso corria o risco de ser repreendido e humilhado na frente de todo mundo.

Descesse um canoeiro com cinco ou seis sacos de carvão ou de manga, no porto Salgado e Figueiroa estava rente mandando abrir, derramar no cais pra ver se havia algum indício de contrabando. Senhora ou moça fosse embarcar pra Tutoia e pra de lá ir pra São Luís, ele queria saber o que tinha na bagagem. Armazéns estavam sendo revistados.

As lojas colocadas sob a suspeita de venderem artigos falsificados ou de não recolherem os impostos devidos. Desde então nunca mais se tinha tido sossego naquela Parnaíba. Era o grande, o pequeno, o miúdo, o rico, o mais ou menos, o arremediado! Quem viesse atravessando de canoa de Ilha Grande, do Labino e dos Tatus com alguma mercadoria, era motivo até de prisão.

E a coisa foi engrossando. Os comerciantes passaram a reclamar e agora já em voz alta e em reuniões por uma atitude de quem fosse de direito. Aquilo não estava certo não! Casa Inglesa, Franklin Veras e tantas outras. De tanto se reclamar sobre esta atitude do inspetor Figueiroa, a conversa acabou chegando aos ouvidos de seu Constantino Correia, presidente da Associação Comercial de Parnaíba.

A Associação Comercial de Parnaíba e a Associação Comercial Varejista de Parnaíba se uniram com propósito de dar um cobro no inspetor Waldemar Figueiroa. Naquele setembro de 1927 o comércio da Parnaíba parou. Nem pra frente e nem pra trás! Lojas e armazéns no porto Salgado e vizinhança, fosse do que fosse, ficaram com as portas fechadas por dez dias. Todos os escritórios de representação, importadores e exportadores. E no porto o movimento vindo do Maranhão desceu ao rés do chão. Os estivadores ficaram com os braços cruzados.  

No porto Salgado aqueles dias de incertezas foram os piores pra todos aqueles homens rudes. Sem terem o que fazer, um vapor pra descarregar ou carregar, passavam o dia tomando banho. Uns pescando peixes miúdos, branquinha, bagres e até camarão de água doce.

Outros ficavam apostando quem tinha mais força pra atravessar até a ilha em frente, mostrando destreza, nadando só com um braço. Mergulhando por mais tempo, catando isso ou aquilo no fundo do rio, caçando jacarés nos alagadiços na Ilha de Santa Isabel, achando graça, mangando uns dos outros.

Mas por trás daquela alegria por não terem trabalho, aqueles estivadores amargavam uma tristeza grande. Suas famílias passavam necessidades.  E nos Tucuns e mais embaixo nos distantes da Parnaíba, nos pontos de cabarés, com suas mulheres feias, umas gordas, outras sujas, mais outras magras, desdentadas, enfraquecidas, desalinhadas, com filhos pelo meio, de vestidos encardidos e cheirando a azeite de coco ou a tição de fogo sapecado, a pobreza dominava. Quitanda que fosse não queria mais vender fiado. Gente doente na porta da Santa Casa era só o que tinha.

Já entre aquela gente pobre tinha quem estivesse se saindo pra pegar no que era alheio, vivendo de jogo apostado. E veio entre uns estivadores aquela vontade de vingança com o inspetor Figueiroa ou até mesmo com donos de lojas e armazéns. Se era pra dar prejuízo que desse pra todo mundo!

Zé Preto, negro de uns vinte e poucos anos, parrudo, cabeça quadrada, de boa altura, vindo de São Bernardo ainda molecote e que cresceu e se criou ali pelo porto Salgado, sempre de faca peixeira por dentro do cós do calção imundo de sujo, foi lá nos fundos de um armazém e trouxe ainda na boca da noite uma vasilha até o meio, cheia de cera de carnaúba, um molambo e um tição de fogo aceso.

Enquanto os companheiros estavam entretidos com o jogo de baralho pra matar o tempo e as muriçocas, ele Zé Peto, já correndo a noite pra entrada na madrugada, foi até a casa de pedra desceu os degraus e caiu na água levando a vasilha já acesa. Era pra jogar no interior da embarcação Estrela do Mearim. Tivesse gente dentro ou não, o intuito era tocar fogo, causar prejuízo.

Mas o negro acabou fazendo barulho e alguém lá de dentro, talvez um vigia, se acordou e perguntou quem era que chegava. Zé Preto não respondeu. De novo o embarcadiço perguntou quem era. Zé Preto começou a ficar com medo. Quem pode mais do que Deus?  Quem pode mais do que Deus? Quem pode mais do que Deus?

O negro estivador se arrepiou dos pés à cabeça, segurou a peixeira na cintura, saiu se abaixando até alcançar a popa da embarcação e se faqueou na água. A vasilha com a cera de carnaúba ainda pegando fogo foi deixada no convés. Lá mais em cima os colegas ouviram o barulho de alguém na água e a gritaria e correram pra ver do que se tratava. Mas Zé Preto, favorecido pela escuridão, deu um mergulho profundo e quando saiu foi do outro lado, entre os matos da beira do rio, já na Ilha de Santa Isabel.

Enquanto isso no outro dia e nos dias seguintes chegavam mulheres vindas dos distantes com recas de meninos, sujos, famintos, doentes, pedindo comida nas portas das famílias mais ricas. E aquilo fez com que pela primeira vez as senhoras dos maiorais pedissem aos maridos que fosse feita alguma coisa pra afastar aquele flagelo. 

Os maiores comerciantes da Parnaíba se reuniam pra abrir as burras e criarem um meio de ajudar aqueles miseráveis. Se desse comida, tipo arroz, feijão, farinha, massa de milho, açúcar, um quarteirão de azeite,  roupa, rede pra dormir, um paletó velho, algum calçado, um pão de sabão de coco pra tomarem banho e lavagem de trens, remédio. Nada de dinheiro!

Essa situação de calamidade na Parnaíba naquele mês de setembro com o comércio perdendo dinheiro, a fome e as doenças se aproximando das casas dos ricos na praça de Santo Antonio, na porta do Colégio das Irmãs e do largo da igreja de Nossa Senhora da Graça e do Rosário dos Pretos, a pobreza e a inquietação capazes de causar até morte!

Ladrões, ditos amigos do alheio, se apossando de tudo, até de uma galinha no quintal, acabou chegando aos ouvidos do governo no Rio de Janeiro, a capital da República dos Estados Unidos do Brasil. Lá mais uns dias e chegou a decisão de afastar Waldemar Figueiroa do cargo de inspetor da alfândega.    

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