Chico Miguel: Poeta de múltiplas
formas criativas
Carlos Evandro M. Eulálio*
E eis que,
tendo Deus descansado no sétimo
dia, os
poetas continuaram a obra da Criação.
Mario
Quintana.
Francisco Miguel de Moura (Chico
Miguel), romancista, cronista, ensaísta e poeta da Geração de 1960, atual
ocupante da cadeira nº 8, da Academia Piauiense de Letras, com dezenas de
livros publicados, vem produzindo uma notável obra poética pós-moderna, sempre
em sintonia com as mais inventivas formas de expressão, sem, no entanto,
abandonar os processos criativos da tradição literária. No seu livro de
estreia, Areias (objeto de estudo neste ensaio), que veio a lume em 1966, já se
identificam índices de uma poesia que o distinguem como um poeta de múltiplas
formas criativas, pela capacidade de transitar da tradição às vanguardas.
Areias retorna ao leitor em
primorosa 2ª edição pela Editora Life, São Paulo, 2021. O livro mantém o
prefácio (Nota à 1ª edição), assinado pelo escritor Fontes Ibiapina que, à
época do seu lançamento, reconhece o poeta Chico Miguel não como estreante, mas
como um veterano na arte da poesia, ao declarar: “... estamos falando de um
poeta. De um postulante, é verdade. Mas postulante com caracteres de titular,
capaz de sentar-se a um fauteuil de cenáculo e reger, com sua batuta de
veterano na arte do verso, uma orquestra de musas” (MOURA, 2021, p. 13). Essa
afirmação de Fontes Ibiapina, quanto à poesia de Chico Miguel, deve-se tanto
pela criatividade do discurso literário do poeta quanto pela elaborada forma de
expressão.
No texto de abertura, em sete
estrofes livres, com versos pentassílabos ou de redondilha menor, o eu lírico
transporta-se para o Jenipapeiro, torrão natal e cenário dos primeiros anos de
vida do poeta. A infância, amplamente celebrada na literatura brasileira por
muitos poetas em diferentes épocas, é também retratada em alguns poemas do
livro, sempre relacionada às primeiras vivências e leituras de mundo do
poeta:
[...]
Vinha a papa-ceia*,
Vinha a lua cheia
e o menino deitado,
deitado na areia
branca, fina, feia.
Depois, peia, peia!
[...]
Não deixes que a areia
Branca da infância
Enferruje e coma
Tua coragem
Como a aranha tece,
Tece a tua teia.
Areias
(MOURA, 2021, p.17)
Nesse poema, tem-se um eu lírico
em terceira pessoa, isto é, um narrador que converte a expressão objetiva do
discurso épico em manifestação subjetiva de uma experiência individual, por
meio da recordação, que caracteriza a essência do gênero lírico, situação em
que o poeta dá voz a um eu, e com ele se confunde. No poema, a participação do épico, em caráter
acessório, corrobora o ponto de vista, segundo o qual nenhuma obra se
classifica exclusivamente num único gênero literário. Daí constatar-se no texto
a fusão entre o lírico e o épico. Ressalte-se o emprego do termo papa-ceia,
como incorporação da oralidade linguística no poema, em alusão ao planeta Vênus
ou Estrela da Tarde, que no firmamento surge na hora da ceia, antes do
anoitecer. Numa outra acepção, Castro Alves menciona a papa-ceia no poema
Canção do Africano, com o intuito de mostrar a solidão do africano oprimido em
terra estranha: O sol faz lá tudo em
fogo, / Faz em brasa toda a areia; / Ninguém sabe como é belo / Ver de tarde a
papa-ceia!
Desde os seus primeiros versos,
Chico Miguel mostra o domínio das mais diversas formas fixas de construção
poemática, principalmente o domínio do soneto, que o compõe de todos os tipos,
como: o tradicional soneto clássico italiano (ou petrarquiano), composto de
dois quartetos e dois tercetos; o soneto de formato shakespeariano, formado por
três estrofes de quatro versos e uma última de apenas dois versos, muito usado por Mário Faustino, e o soneto
monostrófico de somente uma estrofe, formada pelos quatorze versos. A obra
Sonetos da Paixão (Poema em 14 cantos), publicada por Chico Miguel em 1988, é
composta em sua totalidade por sonetos monostróficos, em versos decassílabos.
Na obra Areias, dos 42 poemas ali reunidos, 26 são sonetos. Haja vista a
preferência atual pelas formas livres, o soneto ainda se mantém como expressiva
manifestação da poesia lírica. Mesmo aqueles poetas ditos modernistas de
primeira hora são autores de consagrados sonetos, como Mário de Andrade
(Quarenta anos), Ronald de Carvalho (O filho pródigo), Manuel Bandeira (Luar de
maio) e Cassiano Ricardo (Céu e mar). Nas gerações que se seguiram à de 1922, o
soneto também se faz presente nas produções de poetas, como Mário Quintana (Na
minha rua há um menino doente), Jorge de Lima (O acendedor de lampiões),
Cecília Meireles (Soneto antigo), Vinícius de Moraes (Soneto de fidelidade),
Augusto Frederico Schimdt (Mar desconhecido), Carlos Drummond de Andrade
(Encontro) e outros.
Além do soneto, entre as diversas
formas fixas de poesia trabalhadas por Chico Miguel, vale mencionar o
acróstico, numa de suas raras feições, denominada teléstico, cuja
particularidade consiste na construção da coluna do nome em destaque a partir
da última letra de cada verso:
Elisa
De tuas unhas quero o esmaltE
do
vestido – o carnavaL
do riso – a boca que rI
do
corpo – todas as carneS
de
dentro do corpo – a almA
(MOURA, 2021, p. 68)
Na poesia de Chico Miguel, o tom
memorialista (autobiográfico), que reaviva no leitor cenas do passado e os
sentimentos que este desperta, é recorrente nos poemas Relógio, Recado a Papai
Noel e Canção do Vento, como nestes versos:
Quero
ir à casa do vento,
ver
tudo quanto ele faz
Quando
sai de madrugada.
-
Ah, meu tempo de menino!
O
vento leva e não traz
[...]
Se
veste fatiota nova
no
feriado ou domingo.
Vento
das minhas ideias,
tal
como as águas dos rios,
levas
tudo para o mar:
-
O mar do meu coração!
Canção
do vento (MOURA, 2021, p.30)
O sentimento da terra natal, como
marca da vertente telúrica na obra poética de Chico Miguel, tem neste soneto o
exemplo mais representativo desse tema em sua obra:
Entre
dois chapadões – terra bendita,
de
alma mais pura do que a branca areia,
terra
que ouviu, de minha mãe contrita,
rezas
a Deus logo depois da ceia.
És
tão humilde e pequenina aldeia
que,
pela vida em nosso peito habita.
Qual
semente daquele que semeia,
és
semente do amor – terra bendita!
Terra e calor do sol, o frio do
luar
a gigantesca sombra do juazeiro,
da carnaubeira, a voz a farfalhar
Vê-se, em roda à capela, o
casario,
como
a adorá-la...Ó Jenipapeiro!
De
frente: o vale, o lajeado, o rio.
À minha Vila (MOURA, 2021, p.
22).
O tema da poesia é abordado com
frequência pelo autor, como neste poema em forma de epigrama, extraído da obra
O Coração do Instante, composição de origem grega, de curta extensão e de
conteúdo concentrado:
Libertar
um anjo
Prender
os demônios
devorar os enganos...
Nenhum poema é perfeito
ou simples
pra salvar o mundo.
Novo Epigrama (MOURA, 2016, p.
365)
Esse epigrama, de caráter
metalinguístico, questiona em seus versos a própria significação do poema, pela
voz do eu lírico em diálogo com o social.
Os
temas filosóficos e existenciais que falam das questões universais do homem em
seu cotidiano, como o amor, a morte, o tempo, a solidão, a saudade e a
esperança também comparecem em sua obra. São exemplos os sonetos Espera-Esfera,
Filosofia do Trivial, Perdida Esperança, Dúvida e C’est fini. Os poemas O
operário, Caminhos, Milagre da divisão, Canto do amor sincero e Paródia a
Camões abordam problemas sociais do Nordeste, comuns na sua região. Entre os
vários motivos tratados, destacamos um deles, como o êxodo rural:
Não
dizem donde vêm
nem
pra onde vão.
Os
caminhos são mudos,
não
sabem se vêm ou se vão.
[...]
Levam
Joões (ficam Marias),
levam
nuvem, levam chuva,
levam
fomes, levam vidas
montadas
em “paus-de-arara”
-
Tudo a caminho do sul.
Caminhos
(MOURA, 2021, p.26)
A intertextualidade constitui um
dos recursos empregados com muita habilidade por Chico Miguel. Em diálogo com
Da Costa e Silva, temos um exemplo de referência explícita ao poema Saudade,
neste soneto intitulado Visão do Rio Parnaíba:
Parnaíba, te vejo intensamente
na dor de “velho monge”
resignado,
a dar vida, prendido na corrente,
a derramar-te longe, e fatigado.
[...]
Nessa faina, ora calma, ora
inquieta,
humildemente, carismaticamente,
cantas do canto que cantou o
poeta.
(MOURA, 2021, p. 46)
Logo
abaixo do título do soneto (Visão do Rio Parnaíba), o poeta esclarece o leitor
entre parênteses: “Com o perdão de Da Costa e Silva, o maior dos poetas
piauienses”. Essa advertência reforça a ideia de originalidade do poeta, ao
abordar um tema tão recorrente em textos de outros autores. A paródia, outro
tipo de intertextualidade, está presente nos sonetos Paródia a Camões e
Vaidosos Mortos. O primeiro retoma o poema camoniano Sete anos de pastor Jacob
servia, para relacioná-lo “às revisões salariais da classe trabalhadora, em
1965”:
Quantos
anos de escravo “jó” servia
o
patrão só por simples bagatela!
Mas
servindo ao patrão, servia a “ela”,
enquanto
o preço do feijão subia.
(MOURA,
2021, p. 72)
O
segundo, alusivo ao soneto de Olavo Bilac “Virgens Mortas”, faz uma homenagem
ao centenário de nascimento do Principe dos Poetas brasileiros.:
Quando
um vaidoso morre e na terra se apodrece,
murcham
flores vizinhas – cardos num momento,
para
a glória da cinza – Isto é glória ou tormento?
Ao
pé dele, é à pressa, atinam fazer prece.
(MOURA,
2021, p. 73)
Quanto aos poemas em estrofes e
versos livres, Chico Miguel os compõe conforme modernas e contemporâneas formas
de expressão literária, com harmonia e musicalidade, como neste belíssimo poema
lírico-amoroso, extraído do livro Poemas ou/tonais (1991), cujo ritmo se
instaura no texto pela fusão da imagem com o significado que se apresentam
simultaneamente, como experiência de percepção da realidade, ao revelar algo
sobre nós mesmos ou sobre o mundo idealizado pelo eu lírico:
na
flor de teus lábios
me
vi renascido
e
nos teus olhos grandes
me
fiz crescer
quebrei
silêncios
gigantes
acorrentei-me
aos
passos negados
à
carne trêmula
às
asas quebradas
com
as nuvens crianças
veio
o outro entardecer
e
na escureza das distâncias
curamos
incuráveis ânsias:
-
o céu não vai saber.
Na flor dos teus lábios (MOURA,
2016, p. 134).
O
universo poético de Chico Miguel tem suscitado da crítica inúmeros ensaios
teóricos que o destacam como um dos nomes mais representativos da poesia
brasileira. A exemplo de Manuel Bandeira, Chico Miguel acompanha as
transformações literárias de caráter inovador, que tiveram como marco a Semana
de Arte Moderna, adaptando-se ao modo de produção poética, nas formas mais
inventivas da poesia, do concretismo aos dias atuais.
* Carlos Evandro Martins Eulálio,
professor e crítico literário, é membro efetivo da Academia Piauiense de
Letras, segundo ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João
Francisco Ferry.
Referências
ALVES, Castro. In Canção do
Africano, extraída da obra Os Escravos, São Paulo: Martins, 1972.
MOURA, Francisco Miguel de.
Areias. 2.ed. São Paulo: Life Editora, 2021.
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Poesia (IN) completa. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016, Coleção
Centenário, 56.
Bibliografia consultada:
CUNHA, Helena Parente et al. Os
gêneros literários. Teoria Literária 5ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1999.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da.
Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1984.
(Bibliografia consultada)
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