quinta-feira, 9 de maio de 2024

CEGO BENTO

 

Charge da autoria de Gervásio Castro

CEGO BENTO 

 

Elmar Carvalho

 

Desde 1975, quando fui morar em Parnaíba, passei a ver o cego Bento (Bento Araújo da Cunha, *1921 - +2013) perambulando pela cidade, com seus acompanhantes, um dos quais, seu irmão, também mergulhado nas densas trevas da cegueira, a encher os bares com a música de sua sanfona. Compunham um legítimo conjunto do chamado forró “pé-de-serra”. Após a apresentação, o ouvinte dava ao sanfoneiro o dinheiro de que podia dispor, quase sempre muito escasso. Pouco ou nada sabia da história do cego.

A minha série de poemas titulada “PoeMitos da Parnaíba”, em que canto os “mitos” dessa amada e aprazível cidade, foi elaborada aos poucos, e aos poucos foi publicada no jornal Inovação, periódico valente, de saudosa memória, que não poupava o lombo dos pulhas, salafrários e corruptos. Cada número trazia dois ou três “poemitos”, o Reginaldo Costa sempre me cobrando novos poemas, mas eu já me sentia esgotado na inspiração, pois caracterizar ou caricaturar uma pessoa, no que ela tem de pungente ou anedótico, em poucos versos, é uma tarefa difícil e ingrata. Só anos após a desativação do brioso pasquim é que encerrei a série, creio que com chave de ouro, ao consagrar o último poema ao cego Bento. Tempos depois, estando eu numa barraca, ao pé do mar, na praia de Atalaia, a que prefiro o nome poético e sugestivo de Amarração – de amar, amarrar-se, amar de coração – chegou o cego trazendo a música na caixa e no fole de sua sanfona. Identifiquei-me como o autor do poema que lhe endereçara, e lhe fiz um meteórico discurso. O cego emocionou-se, agradeceu-me, e lamentou não haver sido gravada a minha, talvez importuna e inoportuna, peroração.

Alguns meses atrás recebo uma correspondência sua, na qual está contada, em síntese, a sua vida de pobre e de amante inveterado da música, desde criancinha, em palavras simples, mas claras e precisas. Nasceu para a vida e para a música em 17 de setembro de 1921, no lugar Boa Vista, município de Luís Correia. Casou-se no dia 31 de janeiro de 1951, tendo gerado doze filhos. Aos dez anos já tocava uma gaita de boca, mais conhecida em nosso meio como realejo, enquanto seu irmão Bernardo balançava um badalo, mas afirmando estar a tocar um cavaquinho, o sonho e o desejo se impondo à crua realidade de percalços e pobreza. Seu irmão Benedito batia com o “cabeção” em um tamborete e fazia retinir umas argolas, como se fossem um maracá. Foi assim, com essa improvisada orquestra de crianças irmãs, que se iniciou a bela trajetória musical do cego Bento.

Em 1935, quando tinha 14 anos, seu pai foi morar no lugar Gameleira, onde aprendeu a executar uma pequena harmônica de quatro baixos. Seu irmão Bernardo tocava um cavaquinho, porém sem saber afiná-lo, apenas fazia barulho, mais servindo de percussão do que de acompanhamento, o amor à música muito maior do que a sua habilidade de criança. Benedito, o outro irmão, empunhava o reco-reco. Surgiram os contratos, que possibilitaram a melhora da orquestra. Às vezes, percorriam de sete a oito léguas (multipliquem-se esses números por seis, para se encontrar a quilometragem), a pé, como uma espécie de menestréis de antigamente, para tocarem numa festa.

A partir de 1940, o cego Bento passou a residir na cidade de Parnaíba. O seu conjunto musical já possuía uma sanfona nova, bombo, tamborim, banjo e clarineta. Para se tornar mais conhecido, começou a fazer festas. Os contratos foram, gradativamente, aumentando. Com isso, sua responsabilidade artística foi crescendo, bem como a sua autocrítica, pelo que passou a sentir, em face talvez dos modismos, que o seu repertório já não estava agradando. Por esse motivo, resolveu ser aluno do maestro Raimundo Ribeiro da Silva, mais conhecido como Raimundo Tropa. As aulas lhe foram muito úteis, porquanto passou a conhecer, como ele mesmo diz, “tonalidade do instrumento, escala cromática, escala natural e mais algumas coisas”. Aprendeu a tocar samba, marcha, rumba, fox, xote e baião, músicas que, na época, caíam mais no gosto popular. Cego Bento crescia na competência e na fama.

Nas comemorações do centenário de Parnaíba, ocorrido em 1944, em plena e majestosa praça da Graça de então, a sua orquestra tocou, para deleite do povo, durante nove noites. Foi, talvez, o ápice de sua glória e consagração. No clube Sinorion, durante muitos anos, tocava, no período de carnaval, as encantadoras e belas músicas da época. Era o carnaval gostoso, alegre e típico do Zé Pereira, e não os arremedos e macaqueamentos, hoje tão em voga, do pomposo e “cinematográfico” carnaval carioca. Tocou nos principais clubes da cidade, entre eles o Fluminense, Ferroviário, do Trabalhador, Guarani, Coroa. Animou bailes matutos no aristocrático Cassino 24 de Janeiro. Apresentou-se nas boates das irmãs Justina e Luzia Chaves. Eram os áureos tempos do “Sonho Azul”, dos “bailes azuis” e de outras cores. Animou os reboliços dançantes das boates Madalena (sem Madalenas arrependidas), QG (quartel-general de estripulias estrambóticas e eróticas), Cabeleira, Lulu, Ninho do Xexéu (onde muitos se aninharam em lúdicos e sensuais aconchegos), atuando também na Munguba e no Gordo.

No dia 27 de julho de 1974, cego Bento desativou sua orquestra, e formou o “Trio Igaraçu”, constituído por ele próprio, na sanfona, pelo seu irmão Luís, no pandeiro, e Nonato Gordo, no cavaquinho. Nonato, que fora membro da banda municipal, faleceu, sendo substituído por outro instrumentista. O “Trio Igaraçu” ainda hoje torna mais alegre a praia de Amarração, provocando amarrações no embalo da música e no ritmo dos corações.

Cego Bento, em 17 de setembro de 2002, completou 81 anos de idade, mas, ao contrário do que ele diz na carta, não o fim da vida nem da carreira. Todavia, como ele afirma na carta, e eu já afirmara em versos, pode dizer com todas as letras: “Posso dizer, sou uma tradição, sou uma relíquia, sou folclore, sou museu desta cidade”. E eu somente acrescentaria: um museu muito vivo, muito vivo e alegre, e não triste e fossilizado como certos museus de glórias vãs.

Não podendo, como gostaria, de estampá-los em placa de bronze, estampo nas placas da eternidade estes versos que dediquei ao imortal cego Bento: “Não morrerás, / meu quimérico e homérico cego. / Um mito não morre: / um mito se encanta e permanece.”

Segue meu poema sobre o Cego Bento, na íntegra:

 

Cego Bento

 

Elmar Carvalho

 

Não morrerás,

meu quimérico e homérico cego.

Um mito não morre:

um mito se encanta e permanece.

Teus dois percursionistas

são dois anjos da guarda

de asas dissimuladas.

Um te abriga com a sombra

de seus olhos também sem luz.

O outro é tua estrela guia,

que te conduz em tua noite sem dia,

pelas trevas espessas de teus olhos,

como um Virgílio da nova mitologia.

Não morrerás,

não por seres Bento,

mas por teu talento.

A música escorre de teus dedos,

saltita sobre os teclados,

palpita e resfolega no fole,

cabriola no molejo moleque

do leque da sanfona,

evola-se pelos ares,

remexe as ondas dos mares,

sacoleja as folhas dos palmares,

se quebra e se requebra pelos bares

e remelexe no chamego e aconchego dos pares.

Não morrerás, cego Bento.  

3 comentários: