Espelho, espelho meu... será que esse ainda sou eu?
Fabrício Carvalho
Amorim Leite
Anteontem, a notícia chegou com grande pompa através dos afáveis
alto-falantes:
"Realocamos os colaboradores dos provadores de roupas em novos
postos estratégicos, garantindo a vocês, queridos clientes, uma experiência
mais inclusiva e personalizada. Boas compras!"
Confesso que, à
primeira vista, senti um certo alívio. Sempre considerei desconfortável e até
intimidadora a presença de alguém à espreita nos provadores, invadindo o pouco
de privacidade que ainda nos resta. Afinal, quem nunca teve a sensação de estar
sendo vigiado pela “polícia secreta” dos grandes magazines?
Naquele ambiente,
cada gesto é observado, cada movimento, seguido com desconfiança. Nos
corredores e em todos os cantos, aquela voz parece ganhar pernas e asas,
repetindo sem parar: Bem-vindo, boas compras.
Acredito, caro
leitor, que posso até entender quem me julga paranoico. Mas garanto: não há
canto no shopping onde eu me sinta à vontade. Sou dos tempos das praças,
quitandas e bodegas, onde os olhares atentos vinham dos bem-te-vis, dos
guriatãs, dos cardeais-do-nordeste e de outros pássaros – sempre vigilantes,
temendo as aves de rapina – ou, no máximo, do dono da mercearia. Seu olhar
atento e o trato acolhedor faziam com que cada freguês se sentisse em casa.
Ao retornar ao mal
(dito) ambiente, reconheço que, sim, havia pequenas alegrias. Como quando Dona Deusa,
do caixa do estacionamento, devolvia o troco com um sorriso aberto. Mas onde
está ela agora? Descontinuada por uma máquina quadrada, que espirra cupons sem
vida. Ainda assim, saudosista como sou, peguei-me dando um bom dia ao vil dispositivo.
Nada. Apenas indiferença.
Dia desses, por um
triz, estive a ponto de ser atropelado por um desses robôs de limpeza.
Lá estava ele, errante pelos corredores do shopping. Indo e vindo,
repetitivo e monótono, parecia mais um asno do que um aparelho astuto. Resolvi
testar sua "humanidade": joguei um chiclete mastigado em seu caminho.
Nenhuma reação. Nem desgosto, nem censura.
Perguntando a um
dos raros humanos que ainda trabalham por lá, descobri, por fim, que Dona
Deusa, como outros, havia sido relegada ao subsolo – uma realocação, onde dá
bom dia às baratas e viventes do lugar, como se fosse uma personagem esquecida
dos contos de fadas de Branca de Neve, sem direito a uma reprise na Sessão da
Tarde.
Como se tudo isso já
não bastasse, chegou a última boa nova: os provadores e até as araras físicas
estão com os dias contados. Em seu lugar, painéis interativos vestirão você
virtualmente, eliminando a necessidade de tocar em um único fio de roupa. Adeus
aos cantinhos discretos, com suas divisórias e espelhos reais.
Araras virtuais,
sim, araras virtuais! Telas, apenas telas!
E, diante do
espelho virtual da loja, tasquei: “Espelho, espelho meu... será que esse ainda
sou eu? ”.
Réplica da tal arara virtual: Ah, ainda é você... ou pelo menos o que restou,
projetado por algoritmos para caber perfeitamente nas vitrines digitais. A
dúvida é: será que você reconhece quem – ou o que – se tornou?
(Fabrício Carvalho Amorim Leite é cronista e
contista.)
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