sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

O Homem-Estátua




O Homem-Estátua


Fabrício Carvalho Amorim Leite*


Por um tempo, com certo alívio, esqueci sua presença. Mas ele não tardou a emergir novamente. Surgiu diante de mim, firme, imóvel, adverso, como algo que desafiava o relógio e o esquecimento. Tomou forma, materializou-se, e ali estava ele, de novo. O que ainda queria de mim, eu não sabia.


— Pai, ele é um artista? — minha filha perguntou, entregue ao exercício de ser criança.


— Um homem-estátua? — continuou, com a curiosa leveza de quem transforma o mundo em perguntas alquímicas.


As palavras ricochetearam no vidro — diretas. Por autodefesa, aumentei o som do carro. Ainda assim, não encontrei saída.


— Acho que ele... vigia a rua — arrisquei, desconfortável. Ela se calou. Uma trégua.


Ele estava sempre lá, sentado no cruzamento. As pernas finas, dobradas como hastes de caneta, os joelhos apontando para o céu. Entre as mãos envelhecidas, uma vasilha de manteiga vazia, como quem espera, imóvel e alheio, por um gesto que nunca vem ou por olhares apressados, muitas vezes carregados de desprezo. Querendo ou não, ele foi se enraizando ali, imóvel como uma estátua, moldada pela indiferença, na paisagem da minha rotina — afinal, era o caminho mais curto.


Muitas vezes pensei em parar o carro. Perguntar seu nome, oferecer um café, talvez até dar um abraço. Mas o orgulho, ou talvez só a falta de fé nas pessoas, sempre me fez seguir adiante.


No fundo, era ele quem me observava, incrédulo. E eu, ao cruzar a esquina, escondia-me atrás dos vidros escurecidos, devolvendo o olhar, como quem encara um problema que não quer resolver.


Um dia, vi suas costas. A blusa puída de futebol trazia um nome: Jairo. Um vestígio, um rastro. Talvez ele quisesse ser encontrado. Ou seria o nome de outro. Guardei aquilo como um sinal de convite.


No dia seguinte, desci o vidro e ousei: — Bom dia, Sr. Jairo.


Ele não respondeu, mas também não desviou o olhar. Talvez, numa próxima vez, eu tivesse coragem de parar, repetir "Sr.Jairo" e estender a mão. Ou, simplesmente, permanecer quieto, tentando entender algo nele — ou em mim mesmo.


Mas (sempre há um, mas), os dias seguiram, e a notícia chegou. Passei por ela quase sem notar, mesmo sendo um leitor fiel do jornal local. Lá estava, em letras miúdas, num canto quase oculto da página: “Homem de 67 anos encontrado morto na Rua dos Bambus foi sepultado como ignorado”.



Essa palavra me perseguiu. Ignorado. Ignorado por quem? Por nós? Por mim? Foi ela que me obrigou a mudar o trajeto, como se desviar fosse suficiente para enterrá-lo junto com a minha vergonha.


Depois de um tempo, sem conseguir escapar das perguntas da pequena, ela me olhou e, com aquela franqueza preocupante que só as crianças têm, disse:


— Pai, o homem-estátua ainda está aqui. Ele nunca saiu. É o senhor que ainda não está vendo — já sem saber se, naquele momento, o homem-estátua era ele ou eu, paralisado, testemunhando a um mundo apressado demais.

(*) Cronista e contista.

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