O Lado Oculto de uma Mosca
Fabrício Carvalho Amorim Leite*
Moscas são um nojo — ponto. Falar delas já é castigo. Agora,
tolerar uma enchendo o saco no único momento de paz do dia — aquela sagrada
meia hora de jornal — é de perder a calma e a compostura.
A criatura parecia ter um único propósito em sua breve vida: me torturar.
Não havia trégua. Eu me movia, ela me seguia. Eu espantava, ela voltava. Um
combate sem honra, sem regras, sem descanso. Minha paciência, já curta,
esfarelava-se a cada zumbido próximo à orelha.
Mas sejamos justos. Esta crônica é tudo, menos imparcial — está
mais para um desabafo inflamado, escrito às pressas enquanto a maldita sobrevoa
minha cabeça, pousa no meu braço e me afronta com sua presença insolente, quase
blasfematória.
Imaginei o que ela pensou: "Que homenzinho patético! Será que não sente o próprio odor?"
Pois bem, aceitei o desafio. Fui direto ao banheiro. Tomei uma bela
ducha fervente, com direito a sabão de coco. Vesti roupas limpinhas, confiante
na minha superioridade sobre um miserável inseto que vive, no máximo, vinte e
oito dias.
Ao sair do closet, lá estava ela. Ilesa. Imponente. À minha
espera.
Foi nesse minuto que algo irrompeu dentro do meu íntimo — sombrio,
incontrolável. Eu premeditaria um assassinato — que me perdoem os defensores
dos animais —, mas aquela mosca não veria a aurora.
Planejei minha vingança com apuro. Pegaria um livro – cujo título
não ouso revelar, em respeito ao sagrado – e esmagaria a infeliz com o peso do
divino.
Golpeei com fúria. Errei. Errei. E errei.
A amaldiçoada esquivava-se com a destreza de um ser bestial e
subia ao teto. Fitei-a com ódio. Ela me encarava de volta, mexendo as patinhas.
Zombava de mim.
Tenho certeza: sorria. Aquela praga sorria. Cinco olhos brilhando
em puro êxtase, como se debochassem da minha existência, do meu fracasso.
Mas eu tinha mais um plano. Peguei o spray inseticida e mirei com
frieza. Era
agora.
Apertei o gatilho e disparei um jato mortal. A mosca fez um voo
trôpego, em queda, rasante. Acertei!
Ela tombou — não no assoalho, não num simples móvel. Longe do
quarto. E, claro, na comida recém-preparada pela minha esposa.
Diabólica. Insolente. Praguejei sem parar. Perdi o que restava da
minha humanidade enquanto a inimiga, resiliente, se recompunha. E então, num
ato extremo de chacota, voou de novo, rodopiou sobre o muro e sumiu, espalhando
seus feitos entre as de sua laia.
Ali fiquei, vencido, refletindo sobre meus erros. Teimosas e
sujas, as moscas sempre foram.
Vingativas? Isso, foi novidade. Nem o Discovery mostrou.
Março, 2025
*cronista e contista.
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