terça-feira, 18 de março de 2025

O Lado Oculto de uma Mosca



O Lado Oculto de uma Mosca


Fabrício Carvalho Amorim Leite*


Moscas são um nojo — ponto. Falar delas já é castigo. Agora, tolerar uma enchendo o saco no único momento de paz do dia — aquela sagrada meia hora de jornal — é de perder a calma e a compostura.

A criatura parecia ter um único propósito em sua breve vida: me torturar. Não havia trégua. Eu me movia, ela me seguia. Eu espantava, ela voltava. Um combate sem honra, sem regras, sem descanso. Minha paciência, já curta, esfarelava-se a cada zumbido próximo à orelha.

Mas sejamos justos. Esta crônica é tudo, menos imparcial — está mais para um desabafo inflamado, escrito às pressas enquanto a maldita sobrevoa minha cabeça, pousa no meu braço e me afronta com sua presença insolente, quase blasfematória.

Imaginei o que ela pensou: "Que homenzinho patético! Será que não sente o próprio odor?"

Pois bem, aceitei o desafio. Fui direto ao banheiro. Tomei uma bela ducha fervente, com direito a sabão de coco. Vesti roupas limpinhas, confiante na minha superioridade sobre um miserável inseto que vive, no máximo, vinte e oito dias.

Ao sair do closet, lá estava ela. Ilesa. Imponente. À minha espera.

Foi nesse minuto que algo irrompeu dentro do meu íntimo — sombrio, incontrolável. Eu premeditaria um assassinato — que me perdoem os defensores dos animais —, mas aquela mosca não veria a aurora.

Planejei minha vingança com apuro. Pegaria um livro – cujo título não ouso revelar, em respeito ao sagrado – e esmagaria a infeliz com o peso do divino.

Golpeei com fúria. Errei. Errei. E errei.

A amaldiçoada esquivava-se com a destreza de um ser bestial e subia ao teto. Fitei-a com ódio. Ela me encarava de volta, mexendo as patinhas. Zombava de mim.

Tenho certeza: sorria. Aquela praga sorria. Cinco olhos brilhando em puro êxtase, como se debochassem da minha existência, do meu fracasso.

Mas eu tinha mais um plano. Peguei o spray inseticida e mirei com frieza. Era agora.

Apertei o gatilho e disparei um jato mortal. A mosca fez um voo trôpego, em queda, rasante. Acertei!

Ela tombou — não no assoalho, não num simples móvel. Longe do quarto. E, claro, na comida recém-preparada pela minha esposa.

Diabólica. Insolente. Praguejei sem parar. Perdi o que restava da minha humanidade enquanto a inimiga, resiliente, se recompunha. E então, num ato extremo de chacota, voou de novo, rodopiou sobre o muro e sumiu, espalhando seus feitos entre as de sua laia.

Ali fiquei, vencido, refletindo sobre meus erros. Teimosas e sujas, as moscas sempre foram.

Vingativas? Isso, foi novidade. Nem o Discovery mostrou.

Março, 2025

*cronista e contista.   

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