quinta-feira, 29 de maio de 2025

HUMBERTO REIS – UM CIDADÃO E UM AMIGO EXEMPLAR (*)



HUMBERTO REIS – UM CIDADÃO E UM AMIGO EXEMPLAR (*)

 

                                                             Elmar Carvalho

 

Participei das festividades do Cinquentenário de Humberto Reis da Silveira, por sua atividade ininterrupta como parlamentar, e agora participo desta solenidade magna em homenagem ao seu Centenário de nascimento. Mas não vim para falar do grande homem, do grande deputado, do grande político que ele foi. Vim para falar, sobretudo, do homem bom, do homem correto, do homem honrado, do amigo inexcedível que ele foi.

Por ocasião dos trabalhos da Constituinte Estadual de 1989 pleiteei, na qualidade de presidente da União Brasileira de Escritores do Piauí - UBE-PI, que a Literatura Piauiense fosse posta na Carta Magna como disciplina obrigatória no ensino piauiense. Humberto Reis da Silveira defendeu essa causa com toda a sua energia e interesse, tal o apreço que sempre votou à cultura piauiense, o que foi determinante para a sua aprovação, conforme consta no Art. 226 da Constituição Estadual.

            Pelo seu empenho, deliberei, com o respaldo de minha diretoria, outorgar-lhe o título de sócio benemérito da entidade e a Comenda do Mérito Da Costa e Silva. Os dois singelos diplomas, de que se orgulhava, foram afixados em local privilegiado de seu gabinete, enquanto outros, de muito maior cintilância, não lhe mereceram a mesma simpatia e atenção.

            Alguns anos depois, soube que ele desejava colocar-me como seu assessor particular. Meses após, recebi-lhe o recado de que gostaria de falar comigo. Fui ao seu gabinete. Informei o meu nome à Risânia, sua dedicada secretária. Imediatamente fui atendido por ele, que me deu detalhes sobre os serviços que lhe prestaria, esclarecendo que eu não teria nenhum vínculo com a Assembleia Legislativa, mas tão-somente com ele. Tirei férias e licença especial, e pude prestar-lhe assessoramento durante o ano em que comemorou seus cinquenta anos de atividade parlamentar ininterrupta, tendo assim consolidado e aumentado a nossa amizade. Amealhei conhecimentos sobre esse ilustre homem público, de modo que pudesse prestar este testemunho, nesta Augusta Casa, na solenidade de seu Centenário.

            Durante o tempo em que estive a seu serviço, pude constatar o apreço que ele devotava à cultura e à História do Piauí. Um armário de seu gabinete era abarrotado de livros. Sobre sua mesa repousavam importantes volumes de nossa literatura, especialmente antologias da poesia piauiense, cujos poemas ele bem os conhecia, fazendo-lhes referência em nossas constantes conversas, nas quais eu lhe instigava a memória, em busca de esclarecimentos sobre fatos marcantes de nossa História, a respeito dos quais ele discorria com segurança, graças à prodigiosa memória que possuía. Interpretava os episódios de forma convincente e equilibrada, sem demonstrar paixão ou parcialidade, e, sobretudo, sem cometer o pecado mortal de se arvorar à condição de protagonista.

Muitas vezes pedi que ele me concedesse uma entrevista gravada, em que eu pudesse colher esses subsídios históricos, mas ele sempre driblava o meu desejo. Numa viagem que fizemos, a fim de participarmos de uma solenidade cultural em Oeiras, também nos acompanhava o historiador e professor Fonseca Neto, que insistiu, durante todo o percurso, para que ele desse um depoimento sobre a sua vivência política, mas alegou não poder fazê-lo, em virtude de não desejar magoar pessoas e ferir suscetibilidades. Muito tinha o que contar, por ter sido figura proeminente da História e em razão de sua memória privilegiada e do seu poder de observação. Era um memorial vivo de nossa História, um verdadeiro arquivo e guardião dos fatos ocorridos nas últimas décadas. A deusa Clio não poderia ter melhor intérprete.

A sua honestidade é por demais conhecida. Parlamentar por mais de cinquenta anos, em sucessivos e ininterruptos mandatos, secretário de Estado da Justiça, presidente da Assembleia Legislativa, não acumulou metais e nem patrimônio. Não ostentava luxo nem riqueza, mesmo porque não os tinha. Seus rendimentos eram socializados por ele, na ajuda aos pobres e necessitados, mas sem alarde e sem publicidade. Seu patrimônio era de natureza espiritual e ética, consubstanciado em sua vida, em sua generosidade e em seus atos.

Durante o ano em que trabalhei ao seu lado, nunca testemunhei nenhum ato que pudesse macular a sua reputação. Todos foram pautados pela lei e pela honestidade, sem demagógicos e hipócritas moralismos. Muitas vezes, quando chegava alguma autoridade importante, eu procurava sair do gabinete, em direção à antessala, mas ele pedia que eu continuasse próximo a ele, o que demonstrava a sua transparência e seriedade. Ali eram tratados assuntos de interesse público, e não os da política de campanário. Entre essas pessoas ilustres, costumava visitá-lo o deputado Homero Castelo Branco, com a sua verve, a sua simpatia contagiante e a sua conversa agradável e atraente, um legítimo causeur. Já o conhecia, mas a partir de então nos tornamos amigos e, mais tarde, confrades na Academia Piauiense de Letras. Tive o orgulho e a honra de prefaciar o seu monumental livro, histórico e genealógico, sobre os Castelo Branco.

Como maçom,  Humberto Reis foi um dos fundadores da Loja Maçônica Cruzeiro do Sul. Agraciado com a maior honraria do Grande Oriente do Brasil no Piauí, recebeu o título de Maçom Benemérito. Mereceu a sombra e o encosto da simbólica acácia, e foi digno de ser adornado com o lustre de suas fulgurantes e belas flores de ouro.

Amigo exemplar, a sua amizade era sincera e verdadeira. Traído, embora poucas vezes, nunca traiu. Fazia o que podia e até o que não podia pelos seus amigos, sacrificando-se, às vezes. Quando fui operado, em virtude de uma neoplasia da qual, em Deus, considero-me curado, todo dia ele me visitava no hospital e, depois, em minha casa, chegando mesmo a me visitar quando ele próprio já estava no início de sua enfermidade, o que muito me sensibilizou e à minha família, especialmente a meu pai, que havia sido seu colega no velho Diocesano.

No Dia das Mães lá estava ele, visitando suas amigas, com uma rosa vermelha na mão direita, para lhes ofertar. Entre essas amigas constava minha mulher, que sempre lhe mereceu essa bela prova de apreço e estima, que comove e dá beleza à vida. Quando demorávamos a nos encontrar, pelas injunções do trabalho e da vida, ele telefonava para se queixar a minha mulher, que imediatamente me ordenava que o procurasse. E eu o fazia logo, para gáudio e honra minha. 

Em seu sepultamento, estava ali presente um homem do povo, um humilde servidor da Secretaria de Justiça, que se postou a meu lado, e me disse haver sido ele o melhor secretário dessa pasta, em virtude de haver prestigiado os seus servidores efetivos, colocando-os nos cargos de confiança e dignificando-os com o seu estímulo e respeito; acrescentou ainda que pôs em funcionamento diferentes atividades ocupacionais para os presos.

Certa ocasião Humberto Reis me relatou um episódio que presenciara, na paisagem árida do adusto sertão piauiense, em sua juventude, que lhe marcou para sempre, quando viajava a cavalo de Jaicós para Teresina. Foi uma verdadeira cena dantesca, desesperada, digna dos versos condoreiros de Castro Alves ou das páginas fulgurantes dos melhores romances de 30; uma mulher, com um espinho de carnaúba, furou o braço magro, para que o filhinho lhe sugasse o sangue. Fortemente comovido, Humberto entregou a essa família de retirantes os mantimentos que conduzia em sua longa viagem.

Entre os seus livros, estavam os da coleção das obras completas de Tobias Barreto, pensador erudito, escritor, jurista e poeta, líder da chamada Escola do Recife, que escreveu estes versos literalmente lapidares:

No meu sepulcro não terei as rosas,

As doces preces que os felizes têm;

Pobres ervinhas brotarão viçosas,

E o esquecimento brotará também.

 

Ao contrário, Humberto Reis da Silveira jamais será esquecido. Permanecerá vivo na História do Piauí pela sua bela trajetória de homem público, que soube exercer com eficiência e probidade os importantes cargos e funções que ocupou.

De Da Costa e Silva, poeta maior do Piauí, um dos excelsos bardos de sua predileção, colho os seguintes versos:

Saudade! Asa de dor do Pensamento!

Gemidos vãos de canaviais ao vento...

As mortalhas de névoas sobre a serra...

para dizer que Humberto Reis, que foi um homem bom e um bom amigo, que amou o bem, o bom e o belo, permanece vivo, sempre lembrado no memorial de nosso peito e no panteão de nossa saudade.

            Encerrando minhas palavras, lembro a história que ele me contou sobre um palhaço eslavo, que morreu na sua Jaicós, quando Humberto ainda era um menino. Ao visitar a cova do palhaço eslavo, lembrei-me do imortal palhaço de Heine, que em seu poema tanto mais fazia rir quanto mais de tristeza definhava. Inspirado nessa história, compus o poema A Cova do Palhaço em homenagem ao inesquecível amigo Humberto Reis. Eis apenas um trecho dessa poesia:

 

Trazia no rosto

a sofrida marca do desgosto

de uma saudade nostálgica da terra eslava,

que a face lhe escavava

com profundos sulcos de sofrimento

em que se esvaía lentamente.

 

Distante do rincão eslavo,

numa cidadezinha perdida do agreste,

traspassado por irremediável tristeza infinita,

nostálgico de tudo, nostálgico e só,

morreu numa tarde tristonha,

na hora melancólica do sol-posto.

Pó ao pó. Corpo deposto.

           

Mas Humberto Reis, repito, jamais será esquecido. Será sempre lembrado pela sua bondade e pelos bens que com prodigalidade espargiu.

 

(*) Discurso pronunciado no dia 28 de maio de 2025, na solenidade comemorativa do Centenário de Nascimento do deputado Humberto Reis, ocorrida no plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Piauí, em sessão presidida pelo deputado Wilson Nunes Brandão, proponente da homenagem. A solenidade foi transmitida pela TV Assembleia, e se encontra disponível no You Tube (link: https://www.youtube.com/live/e8OG9GvV7pM?si=jR0OG1amkGIl8RNv).

 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Homenagem ao Centenário de Humberto de Campos


 
Meu discurso começa aos 52 minutos e 25 segundos.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Meu Cometa de Papel Machê

Fonte: Google


Meu Cometa de Papel Machê


Por Fabrício Carvalho Amorim Leite


Véspera do meu aniversário de nove anos: 1985. Trapalhadas, censura em tropeço, Xuxa de shortinho micro, bota até o joelho, euforia, um país em histeria.

Tabuada? Um desastre. Presentes? Sempre um acerto. Eu sabia: vó Zoraide, com os cruzeirinhos para os bombons; pai e mãe, um enigma. E os tios? Jogos, os da Estrela, bolas, afagos, traquinagens.

Eu não sei vocês, mas eu já esperava pelo chocolate em guarda-chuvinha. Açúcar puríssimo, colorido, que derretia entre os lábios. A qualidade? Graças à manteiga trans. Ah, como viciava… e ninguém vigiava.

Era um tempo sem spoiler, e meus sentidos já farejavam um pacote escondido. Lá estava, meio oculto no guarda-roupa, atrás da porta de vidro, com cheiro de madeira-madeira. O objeto. A insônia. Um embrulho de papel machê, com laço vermelho, desenhos, juras caladas. Inteiro, ali.

Já escutava o familiar trinar das chaves no bolso. Ela vinha, ia. O armário, sempre o canto dos segredos. Então, quase num cochicho, perguntei: — Vozinha… o que é aquela coisa? E apontei, como quem receia e cobiça.

Sua mudez me irritou. Quem sabe ali tenham nascido minhas primeiras estranhezas sobre a indiferença ou sobre o cinismo adulto.

Senti uma vontade danada de roubá-lo, como Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, ou até de me passar por Ali Babá, mesmo à mercê de boas chineladas ou cipoadas do vô.

Gritei para o armário: — Abre-te, Sésamo!

Ele se fechou. Não cedeu à minha voz fina, frouxa, falha.

Chutei a porta de vidro. Estalo. O vidro trincou. Crash! Crash! Corri para o meu pé de goiaba, certo de que, do alto da copa, ninguém me pegaria. Sobrevivi. Para bem… ou mal.

Voltemos ao embrulho: o ladrão do meu sono, tal qual o cometa Halley, pairando ameaçador sobre minha infância. No mesmo ano em que ele, o cometa, espalhava o fim do mundo. Lembro: abrigado no banheiro, embaixo da cama do vô, aguentando dias, imaginando a perda. Pai, mãe, avós e, com eles, todo o mundo pequeno da cidade do interior.

Pela vez primeira, pensei na morte. Morte: palavra dura, crua, que anos depois a vi despida nas sentinelas, nas moléstias, nas crenças… e nas descrenças. Inexorável, pálida e flácida.

Mas estava em novembro de 1985, e Halley seguia zanzando lá em cima. Eu podia me perder no presente da tia-avó Raimundinha. O tempo, ou o fim dos tempos, ainda eram meus. Mal soprei a vela e corri ao embrulho, deitado na cama, entre tantos, à espera. Queria aquele, sem saber por quê. Não toquei: desfiz com as mãos.

E então surgiu, nu, num plástico que lembrava a cauda de um cometa, cheio de bombons, pirulitos, caramelos: um astro açucarado que se desfez inteiro em mim. Em seguida, apareceu aquele coleguinha, pedindo um doce... Escolhi o verde, azedo, limão. Fez cara traventa, saiu apressado, tropeçando num andar de pato manco. Ri, sem parar.

Foi num dia desses que, chupando um bombom de morango, por instantes, meu cometa riscou o céu, doce, doce, embalando-me outra vez em papel machê.

Maio, 2025.

domingo, 25 de maio de 2025

O POETA E O INSETO

Fonte: Google

 

O POETA E O INSETO


Elmar Carvalho

 

Uma música longínqua

e melancólica cria ressonâncias

na concha acústica de minha alma.

A bebida eu a tomo em longos goles.

Um inseto pousa sobre

a mesa e me faz companhia.

Sorve um trago da porção/poção

(derr)amada. E se embriaga.

A tristeza imensa me deixa cruel:

enxoto o pobre inseto bêbado que

ensaia um atropelado voo. E cai.

A tristeza continua a crescer e a cair

em minha alma como infiltrações de estalactites

em (f)urna mortuária ..........................................

quinta-feira, 22 de maio de 2025

OUTRO ENTARDECER EM AMARANTE

Fonte: Google

              

OUTRO ENTARDECER EM AMARANTE


Elmar Carvalho

 

Na véspera das eleições gerais, estando tudo absolutamente tranquilo, fui contemplar o pôr-do-sol amarantino. Ao passar pela avenida Desembargador Amaral, em demanda do cais do rio Parnaíba, vi umas pessoas sentadas na calçada do Museu do Divino, criado e mantido por Marcelino Leal Barroso de Carvalho, que foi meu professor no curso de Direito da UFPI. Graças ao seu empenho e recurso financeiro, foi reativada a antiga Festa do Divino, com sua alegria, cores, músicas, insígnias e estandarte, cujo cortejo percorre os vetustos casarões e ruas de Amarante.

 

Tempos atrás, dentro da programação desse folguedo religioso, tive a satisfação de ter o meu livro Lira dos Cinqüentanos lançado na grande sala de um dos solares da cidade. Hoje, Marcelino é ele o diretor geral do Instituto Camillo Filho, que ajudou a fundar, ao lado do professor Charles Silveira, de quem também fui aluno. Fui cumprimentado pelo professor Melquíades. Pedi-lhe transmitisse ao seu irmão Marcelino as minhas considerações. Conduzido pelo defensor público Ivanovick Pinheiro, que viera disputar uma partida de futebol em Amarante, fui postar-me em meu observatório, no Pelicano.

 

Meia hora depois, passou pelo cais, onde eu me encontrava, o professor Melquíades, que fora dar uma volta pela cidade, acompanhado pela família. Ele, na condição de exímio violonista, participa da parte musical da Festa do Divino. Mas não é só virtuose do violão, o que já seria muito; toca também instrumento de sopro, órgão e piano. Portanto, é literalmente um homem de sete instrumentos. Formado em Filosofia, tem especialização em História da Arte e Arquitetura. Ante a sua pós-graduação, Melquíades tem escrito alguns textos historiográficos, e passou, evidentemente, a interessar-se mais pela História do Piauí, e de Amarante, em particular.

 

Em sua passagem pela beira-rio, entretivemos uma rápida conversa. Disse-me ele que as velhas carrancas, que guarneciam a proa das embarcações do Parnaíba, antecederam, ao que tudo indica, as do São Francisco. Existem informações sobre esse amuleto em livros do estrangeiro Ludwig Schweenhagen, que o homem simples chamava jocosa e onomatopeicamente de “chove n’água”, e da professora Mafalda Balduíno. É vero que alguns intelectuais torcem o nariz com relação a certas teses do primeiro, como a de que os fenícios estiveram no Piauí, especialmente em Pedra do Sal, que seria uma espécie de porto desses antigos navegantes, e Sete Cidades, cujas caprichosas formações rochosas, esculpidas pelo tempo, o vento e a chuva, devem ter incendiado a fértil imaginação do austríaco.

 

Segundo me contou Melquíades Leal, as carrancas do Parnaíba tinham um artefato de couro de boi, algo semelhante a duas asas laterais, que dispunham de um mecanismo que lhes dava movimento. Os indígenas, que perlongavam a sinuosidade do Velho Monge, direcionavam suas flechas contra a carranca, e não contra os seus passageiros e tripulantes, por ser um alvo mais à vista e porque aparentava conduzir o barco. Eram as carrancas diabólicas.

 

Acrescentou o mestre, que um desses barcos, com o seu artefato artesanal, foi atingido por um raio fulminante, na barra do Saco, que fica poucos quilômetros a montante da barra do Canindé, fazendo a embarcação incendiar e mergulhar para sempre nas águas do Parnaíba, onde ainda se encontra. Certamente, o episódio fantástico e cinematográfico deve ter atiçado o imaginário dos ribeirinhos, com mais um fato histórico a se confundir com a mitologia cabocla. Após essa rápida conversa, o professor Melquíades se retirou e eu voltei a observar o rio e a serrania distante, que já começava a sofrer os influxos do sol poente.

 

De onde eu estava, pude ver, no lado maranhense, uns jovens a jogar futebol na coroa do rio. Lembrei-me de meus tempos de peladeiro e de minha adolescência, em que eu pensava ingenuamente que essa quadra demoraria a passar. Na juventude não pensamos na morte e nem na velhice, a não ser de relance, quase como se fôssemos imortais. As luzes mortiças da cidade de São Francisco começaram a acender, e logo os jogadores foram embora. Os poucos banhistas deram seus últimos mergulhos e também se retiraram.

 

Já o céu estava raiado do vermelho crepuscular. As serras se apagavam pouco a pouco, até imergirem na noite que tudo envolveu. Essa bela hora solene, propícia à meditação e a pensamentos mais elevados, em que o silêncio ou uma música suave em surdina seria o complemento ideal, foi brutalmente esmagada pela zoada ensurdecedora de um inoportuno aparelho de som, com suas tuítas e amplificadores embutidos num automóvel. Depois de importunar a todos, com a sua música ruim e estridente, o som foi desligado.

 

Pensei que iria ter um justo e merecido sossego. Ledo engano. O carro deu marcha à ré, e veio para mais perto de onde eu estava. Então começou o martírio de um interminável estribilho, em que a cantora, com sua voz de taquara rachada, repetia à exaustão: “não aguento mais”, “não aguento mais”... Não sei o que ela não aguentava mais, pois não tinha o menor interesse em sua letra horrorosa. Agora, quem não aguentava mais aquela bagunça sonora era eu.

 

Apesar disso, foi gratificante contemplar, mais uma vez, o belo e bucólico entardecer de Amarante. É um magnífico espetáculo, em que a natureza se esmera e se excede em nos prodigalizar graciosamente.

24 de novembro de 2010

domingo, 18 de maio de 2025

MÍSTICA

Imagem: AI Copilot


MÍSTICA


Elmar Carvalho

 

           I

 

Arrebatado por um carro de fogo

eu próprio em fogo transformado

os céus galguei

as fúrias todas como louco aplaquei

e a escada cintilante de Jacó

passo a passo subi.

Devassei as vísceras mecânicas

da baleia do profeta

e a gênese do primeiro

átomo desvendei.

Penetrei o caos primacial

e o primeiro vagido

da vida escutei.

E Deus estava lá

por trás de tudo:

logo após em regressão

a explosão do átomo primordial.

 

           II

Meu anjo da guarda

em sete anjos transmudado

minha guarda de honra revistava

e com sua espada de fogo

ou raio laser

franqueava-me a entrada

da gruta dos leões

enquanto Daniel dormia

à minha sombra.

sábado, 17 de maio de 2025

Fonseca Neto e a sua História de Oeiras

 


Fonseca Neto e a sua História de Oeiras


Elmar Carvalho


Hoje adquiri na Entrelivros a obra de nosso caro Fonseca  Neto sobre Oeiras. Me vi presente em algumas de suas páginas, pelo que sou muito grato ao estimado confrade e amigo.

O amigo Dagoberto é o protagonista de vários textos, inclusive em páginas que falam de sua admiração pelo grande Eça de Queiroz.

Dessa forma fiz os seguintes versinhos:

Eça se dizia um pobre homem de Póvoa do Varzim.

Dagoberto é um varão plutarquiano da Póvoa do Mocha.

E eu sou um poeta sem eira nem beira da Ribeira do Surubim.

 

Minha amiga Lisete Napoleão

Com seu imenso coração

Disse assim:

“Você tem “ eira, beira e tribeira“ , mocinho!!

Eu colocaria assim:

Eu sou poeta com Eira, beira e tribeira da Ribeira  do Surubim.”

E não satisfeita, ainda me deu um ultimatum:

“Pode corrigir!! E logo!!”    

quinta-feira, 15 de maio de 2025

MALANDRO OCEÂNICO E ALCIÔNICAS MÚSICAS

 

Fonte: Google

MALANDRO OCEÂNICO E ALCIÔNICAS MÚSICAS


Elmar Carvalho

 

Outro dia, ouvindo a cantora Alcione, lembrei-me de Renato de Paula. Num dia qualquer de 1977 ou 78, meu pai, então gerente da ECT em Parnaíba, foi abordado por esse cidadão, durante o expediente da agência, na parte da manhã. Vinha ele de Tutoia, onde fora cumprir alguma missão da diretoria regional da empresa no Maranhão.

 

Aproveitara para conhecer o litoral piauiense. Alegando que extrapolara as diárias que recebera, pediu a meu pai que lhe emprestasse determinada importância. O velho disse não dispor no momento daquele valor, e veio com o Renato me pedir que lhe arranjasse a importância, asseverando que tão logo ele chegasse a São Luís me reembolsaria.

 

É óbvio que eu não gostei muito da solicitação, uma vez que estava vendo aquela pessoa pela primeira vez. De qualquer sorte, respondi que dispunha da quantia apenas em minha pequena poupança, na agência da Caixa Econômica Federal. O Renato afiançou-me que não me preocupasse, que tão logo chegasse à capital maranhense remeteria o dinheiro. Um tanto contrafeito fui fazer a retirada e lhe entreguei. Era um dia de sexta-feira, pois a Caixa não funcionava no sábado. Não lhe pedi para assinar nenhum cheque, recibo ou promissória. Resolvi aceitar sua palavra.

 

No domingo seguinte, fomos à praia de Atalaia, em Luís Correia. Tomamos umas cervejas e comemos tira-gosto de camarão. A cantora Alcione, chamada a Marrom, estava na moda, com a sua voz vibrante, metálica, quase de trompete, a cantar os seus sambas gostosos, dengosos, românticos. A música mexeu com o saudosismo de Renato, e ele se lembrou de sua ilha de Upaon-Açu. Ficou indócil, eufórico, e pedia para repetir algumas músicas; ficava a cantarolar, acompanhando-as.

 

Era ele um mulato de seus quarenta anos de idade, já um tanto gordo, com pinta e jeito de malandro carioca, no bom e legítimo sentido da palavra. Algumas cervejas e alciônicas músicas depois, ao entardecer, retornamos a Parnaíba. Confesso, temi pelo reembolso de meu suado dinheirinho. Mas, para meu espanto e agradável surpresa, poucos dias depois meu pai veio me entregar o dinheiro que Renato de Paula mandara.

 

Nunca mais o revi nem ouvi seu nome. Contudo, fiquei com a alegre lembrança de um bon vivant, amante de música e de cerveja, que sabia honrar sua palavra e seus compromissos.

23 de novembro de 2010

domingo, 11 de maio de 2025

(IN)DEFINIÇÃO

Fonte: Google

 

(IN)DEFINIÇÃO


Elmar Carvalho

 

Eu sou aquele

que vacila absorto

nos umbrais que permeiam

e medeiam o que foi

e o que poderia ter sido.

Sou aquele

que oscila perplexo

entre o sono e a vigília

e inventa sonhos nunca sonhados

e pesadelos jamais inventados.

Eu sou aquele

que ateia fogo

e dança sobre as brasas

e sobre as cinzas do caos

e sonha em não ser

o ser que é

e não é.

sábado, 10 de maio de 2025

quinta-feira, 8 de maio de 2025

DANÇA E NAMORO EM TERREIRO DE MACUMBA

 

Fonte: Google

DANÇA E NAMORO EM TERREIRO DE MACUMBA


Elmar Carvalho

 

Contou-me o amigo e colega Edison Rogério, faz alguns dias, que rapazola, ainda adolescente, vinha de uma festa, alta madrugada, quando ouviu o bater longínquo de tambores. Tomara umas boas talagadas de pinga, em companhia de uns colegas, e se dirigia para sua residência, em Pedreiras – MA. Levemente tocado pelo álcool, o baticum dos tambores lhe caíram fundo na alma, quase como um chamado irresistível, que lhe despertou o imaginário e a curiosidade, talvez por força de alguma memória atávica longínqua, ou seja lá o que tenha sido.

 

O fato é que o colega, com a audição e os demais sentidos aguçados, se dirigiu para o lugar distante de onde vinha o batuque. Descobriu que as batidas vinham de dentro de um terreiro ou salão de umbanda ou macumba. O nosso bravo Rogério adentrou o salão da dança ritualística; envolvido pelo som dos tambores, inebriado pela magia da dança e do incenso, e talvez pelos requebros de alguma cabocla que dançava, oxalá já cavalgada por algum espírito lascivo, entrou na dança.

 

Tomou mais algumas doses da branquinha, e enfeitiçado pelo ritmo dos tambores, pelos giros e rodopios da dança e – quem sabe? – por algum espírito brincalhão e festeiro, Edison Rogério dançou como um mestre consumado, como um verdadeiro virtuose das danças ritualísticas, a ponto de impressionar o macumbeiro dono do salão. No dia seguinte, ao acordar, por volta das onze horas, foi abordado por seu pai, que lhe indagou sobre o que andara fazendo. Ele não se lembrava de tudo em detalhes, e tinha vagas lembranças de sua performance extraordinária no salão de dança umbandística.

 

Seu pai, então, lhe contou que fora procurado bem cedo pelo macumbeiro, que lhe dissera nunca ter visto ninguém dançar tão bem como seu filho, e por isso tinha vindo lhe pedir para que o rapaz fizesse parte de seus seguidores. Edison Rogério nunca mais pôs os pés naquele terreiro de tambores e dança tão encantados; tudo fora apenas aventura e brincadeira de um adolescente, a desbravar a magia da vida e do mundo. Certamente o terecô perdeu um virtuose da dança ritualística, enfeitiçada, mas a magistratura piauiense ganhou um bom juiz.

 

Essa história do Edison Rogério me fez recordar os meus tempos de adolescente. Estava passando uns dias de férias em Barras, terra natal de meu pai, em companhia do Zé Moura, que foi um dos grandes atletas do futebol piauiense. Todas as noites atacávamos em diferentes pontos da cidade, em busca de alguma garota, para um namoro rápido e descompromissado. E quase toda noite conseguíamos uma menina diferente, para uns amassos, como na época se dizia. Certa vez, atraídos pelo bater de tambores, fomos sair em um salão de macumba ou umbanda, que ficava próximo à curva da estrada que seguia para a barragem.

 

Vimos o interior do salão e o caboclo que tocava os tambores, em ritmo frenético, com tanta garra e energia, mas logo saímos para o terreiro, para conversarmos com umas moças, que logo soubemos ser filhas da dona do templo. Quando a conversa já estava bem adiantada, prometendo render bons frutos, a macumbeira, ou antes, a bruxa daquele terreiro apareceu com um cabo de vassoura, e furiosa nos botou para correr. Ainda bem que aquela velha bruxa não sabia voar em vassoura, e ficou apenas empunhando o cabo, a vociferar e a desferir imprecações contra uns jovens, que queriam apenas um ameno e inocente aconchego com suas belas filhas.

17 de novembro de 2010

domingo, 4 de maio de 2025

UM LANCE DE BÚZIOS

Fonte: Google

 

UM LANCE DE BÚZIOS


Elmar Carvalho

 

O grande búzio

soltava seu super sopro

feito de sonho e ilusão

e soprava suas conchas multicores

seus búzios bizarros e bizantinos

que saíam se iam e se esvaíam

transformados em flores

borboletas e besouros

que entravam em outra dimensão

pelo portal – pórtico triunfal –

de outro grande búzio

e voltavam a ser conchas e búzios

do além-mar da morte. 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Livre, ou quase

 

Fonte: Google

Livre, ou quase

 

Por Fabrício Carvalho Amorim Leite

 

Olhei para cima. Fuga ou capricho? Talvez os dois.  Foi então que vi. Lá estava ele. Não, não era Deus. Era apenas um pombo. Um vira-latas qualquer. Horrível, sujo, pleno — como só os que não devem favor à beleza sabem ser.

 

Cinza das calçadas rachadas que todos pisam. Pena torta, como promessa descumprida. Bico imundo de esgoto e peleja. Se fosse belo, estaria preso. Chamariam de "ave exótica", dariam um nome humano, colocariam numa gaiola personalizada com alpiste premium e mil chamegos breves. Mas não era. Era livre. Ou quase. Sorte dele? Quem sabe.

 

Vi quando ele voou pelas portas da igreja. E não era a fé que o movia, era a pura sede. Bebeu do esgoto, sacudiu as asas e voltou para o alto, sem "amém". Entre o teto rachado e o chão encardido, fazia sua penitência, aquela que os homens fingem abraçar, mas não praticam.

 

Lá de cima, enxergava mais do que santos atarefados e túnicas empoeiradas. Via joelhos doídos, defeitos soprados, juras, muitas juras. Via o que ninguém ousa confessar.

 

E você? Reza por medo ou por fé? Pensei, sabendo que os vira-latas jamais rezariam. As aves não rezam. Sentem fome. Medo. Mas descem. Porque farelos não caem do céu, caem, sim, das mãos desatentas de quem pensa ter demais e, no fundo, sobra de menos.

 

Ele sabia disso. Por isso desceu e bicou o biscoito da mão da minha senhora, com a autoridade de quem toma posse do que sobra. Eu olhei, com aqueles olhos que só vira-latas domesticados sabem ter: orgulho disfarçado de compaixão. Ou seria cobiça disfarçada de moral?

 

O pombo seguiu. Feio, imundo, livre.

 

Eu ajeitei as correntes, abaixei a cabeça e agradeci — não pela liberdade, mas pela minha aconchegante gaiola. E no fundo do instinto pedi que Deus me livre do livre-arbítrio.

                                                            Abril, 2025

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O MUSEU DO SÍTIO BOA ESPERANÇA





O MUSEU DO SÍTIO BOA ESPERANÇA


Elmar Carvalho

 

Através do mais recente número da revista Nossa Gente, editada pelo jornalista Raimundo Belchior Neto, tomei conhecimento da existência de um museu, instalado no sítio Boa Esperança, de propriedade do senhor Antônio Conrado. Decidi que em minha primeira viagem a Campo Maior iria conhecê-lo, fato que aconteceu no domingo. A reportagem informava que o sítio ficava no quilômetro 29 da estrada que vai para Barras.

 

Como meu pai não tivesse conhecimento a esse respeito, consultei o Dedé, vizinho de sua casa na rua Capitão Félix, perto do estádio. O Dedé simplesmente sabia tudo e foi preciso nas informações. Disse que o sítio ficava perto da estrada, e era de bom e fácil acesso. Com esse esclarecimento, em companhia do Antônio José, meu irmão, e do amigo Zé Francisco Marques, dirigi-me para lá. Fui recebido cortesmente pelo proprietário.

 

A antiga sede da fazenda é como se fizesse parte do museu, com o seu babaçual, suas grandes árvores e plantas ornamentais, e a gruta onde está entronizado o santo da devoção dos donos da casa. O museu propriamente dito fica num prédio próximo, independente. Ali estavam antigos móveis e objetos, que eu já não via há muitos anos; objetos que foram úteis e preciosos, mas que se tornaram obsoletos ou fora de moda, com as novas invenções e a mudança de gostos e costumes. Numa prateleira estavam enfileirados rádios de vários modelos, alguns a válvula, além dos famosos Semp e ABC.

 

Este último ostentava o seu slogan “a voz de ouro”, que marcou gerações. Sobre uma rústica bancada estavam enfileirados vários ferros de engomar, a carvão, que ainda alcancei em pleno uso. Entre outros objetos, vi baús, bilheiras e um grande e pançudo pote. Recordei os velhos petromax, que iluminavam as noites sertanejas. Entre os objetos artesanais e mais rústicos, havia um imenso pilão horizontal, de vários furos; um corró, que é uma armadilha de varas para pegar peixes; uma tora de madeira oca, em cujo interior havia uma armadilha para prender pebas e tatus.

 

O senhor Antônio Conrado, em conversa, contou que havia vendido alguns dos objetos, mas depois os comprou de volta, para o acervo do museu. Revelou que um dos novos proprietários se recusou a fazer a retrovenda de um móvel; disse preferir doá-lo, para que seu nome constasse na ficha de identificação da peça. O engraçado é que esse proprietário tem o sobrenome Grosso, mas pelo visto trata-se de pessoa fina e educada, para ter essa sensibilidade e percepção.

 

Contemplei uma grande e velha cadeira de outrora. Era numa delas, sem dúvida, que os coronéis da carnaúba, do tucum, do babaçu e demais produtos do extrativismo e do gado ditavam suas ordens e suas leis, num tempo mais simples, em que não havia tanta pressa e tanto estresse. É certo que alguns desses objetos existiam na casa de meus pais, mas foi um prazer reencontrá-los, para poder viajar ao país de minha infância.

 

Na ida e na volta, vimos algumas secas cabeças d'água do Surubim, como disse Dobal, num de seus poemas. São riachos temporários, que, nas grandes invernadas, extravasam suas águas, após dois ou três dias de boas chuvas, mas que, tão logo estas cessem, param de correr, quase instantaneamente, deixando um leito de pedras e areias, sem nenhuma poça d' água. Vimos as Extremas, de nome tão sugestivo e poético. Numa época em que todos têm o seu carro ou sua motocicleta, em que as distâncias encurtaram demasiadamente, já não entendemos a razão desse nome tão extremado.

 

Passamos pelas Areias, do falecido fazendeiro Zé Pedro. Ele era um dos coronéis da pecuária e do extrativismo. Numa época em que poucos podiam comprar um automóvel, ele sempre teve o seu, com motorista particular. Gostava de tomar, de leve, a sua cerveja, num dos barzinhos da cidade, sozinho, a ruminar seus pensamentos. Para que se tenha uma ideia de suas posses e cabedais, basta que eu diga que ele, em companhia de sua mulher, ia ao exterior, para assistir à Copa do Mundo de Futebol, numa época em que viajar de avião era um misto de aventura, luxo e glamour.

 

Antes do bairro Flores, de nome poético, florido e cheiroso, no sentido de quem vai de Cabeceiras para Campo Maior, nos deslumbramos com a alcatifa das suaves colinas e com os tabuleiros de capim mimoso, onde as ovelhas pastam placidamente. Nessa paisagem ainda podemos ver os galopes dos potros e ouvir o relincho das éguas e o canto alegre dos bem-te-vis. Ao longe, podemos vislumbrar o debrum do perfil azulado da serra a se recortar contra o azul do céu e o branco das nuvens. E o pensamento vaga e divaga por essas quebradas encantadas.   

16 de novembro de 2010