HUMBERTO REIS – UM CIDADÃO E UM AMIGO
EXEMPLAR (*)
Elmar Carvalho
Participei das festividades do Cinquentenário
de Humberto Reis da Silveira, por sua atividade ininterrupta como parlamentar,
e agora participo desta solenidade magna em homenagem ao seu Centenário de
nascimento. Mas não vim para falar do grande homem, do grande deputado, do
grande político que ele foi. Vim para falar, sobretudo, do homem bom, do homem
correto, do homem honrado, do amigo inexcedível que ele foi.
Por ocasião dos trabalhos da
Constituinte Estadual de 1989 pleiteei, na qualidade de presidente da União
Brasileira de Escritores do Piauí - UBE-PI, que a Literatura Piauiense fosse
posta na Carta Magna como disciplina obrigatória no ensino piauiense. Humberto
Reis da Silveira defendeu essa causa com toda a sua energia e interesse, tal o
apreço que sempre votou à cultura piauiense, o que foi determinante para a sua
aprovação, conforme consta no Art. 226 da Constituição Estadual.
Pelo seu
empenho, deliberei, com o respaldo de minha diretoria, outorgar-lhe o título de
sócio benemérito da entidade e a Comenda do Mérito Da Costa e Silva. Os dois
singelos diplomas, de que se orgulhava, foram afixados em local privilegiado de
seu gabinete, enquanto outros, de muito maior cintilância, não lhe mereceram a
mesma simpatia e atenção.
Alguns anos
depois, soube que ele desejava colocar-me como seu assessor particular. Meses após,
recebi-lhe o recado de que gostaria de falar comigo. Fui ao seu gabinete.
Informei o meu nome à Risânia, sua dedicada secretária. Imediatamente fui
atendido por ele, que me deu detalhes sobre os serviços que lhe prestaria,
esclarecendo que eu não teria nenhum vínculo com a Assembleia Legislativa, mas
tão-somente com ele. Tirei férias e licença especial, e pude prestar-lhe
assessoramento durante o ano em que comemorou seus cinquenta anos de atividade
parlamentar ininterrupta, tendo assim consolidado e aumentado a nossa amizade. Amealhei
conhecimentos sobre esse ilustre homem público, de modo que pudesse prestar este
testemunho, nesta Augusta Casa, na solenidade de seu Centenário.
Durante o
tempo em que estive a seu serviço, pude constatar o apreço que ele devotava à
cultura e à História do Piauí. Um armário de seu gabinete era abarrotado de
livros. Sobre sua mesa repousavam importantes volumes de nossa literatura,
especialmente antologias da poesia piauiense, cujos poemas ele bem os conhecia,
fazendo-lhes referência em nossas constantes conversas, nas quais eu lhe
instigava a memória, em busca de esclarecimentos sobre fatos marcantes de nossa
História, a respeito dos quais ele discorria com segurança, graças à prodigiosa
memória que possuía. Interpretava os episódios de forma convincente e
equilibrada, sem demonstrar paixão ou parcialidade, e, sobretudo, sem cometer o
pecado mortal de se arvorar à condição de protagonista.
Muitas vezes pedi que ele me
concedesse uma entrevista gravada, em que eu pudesse colher esses subsídios
históricos, mas ele sempre driblava o meu desejo. Numa viagem que fizemos, a
fim de participarmos de uma solenidade cultural em Oeiras, também nos acompanhava
o historiador e professor Fonseca Neto, que insistiu, durante todo o percurso, para
que ele desse um depoimento sobre a sua vivência política, mas alegou não poder
fazê-lo, em virtude de não desejar magoar pessoas e ferir suscetibilidades. Muito
tinha o que contar, por ter sido figura proeminente da História e em razão de
sua memória privilegiada e do seu poder de observação. Era um memorial vivo de
nossa História, um verdadeiro arquivo e guardião dos fatos ocorridos nas
últimas décadas. A deusa Clio não poderia ter melhor intérprete.
A sua honestidade é por demais
conhecida. Parlamentar por mais de cinquenta anos, em sucessivos e
ininterruptos mandatos, secretário de Estado da Justiça, presidente da
Assembleia Legislativa, não acumulou metais e nem patrimônio. Não ostentava
luxo nem riqueza, mesmo porque não os tinha. Seus rendimentos eram socializados
por ele, na ajuda aos pobres e necessitados, mas sem alarde e sem publicidade.
Seu patrimônio era de natureza espiritual e ética, consubstanciado em sua vida,
em sua generosidade e em seus atos.
Durante o ano em que trabalhei ao seu
lado, nunca testemunhei nenhum ato que pudesse macular a sua reputação. Todos
foram pautados pela lei e pela honestidade, sem demagógicos e hipócritas
moralismos. Muitas vezes, quando chegava alguma autoridade importante, eu procurava
sair do gabinete, em direção à antessala, mas ele pedia que eu continuasse
próximo a ele, o que demonstrava a sua transparência e seriedade. Ali eram
tratados assuntos de interesse público, e não os da política de campanário. Entre
essas pessoas ilustres, costumava visitá-lo o deputado Homero Castelo Branco,
com a sua verve, a sua simpatia contagiante e a sua conversa agradável e
atraente, um legítimo causeur. Já o conhecia, mas a partir de então nos
tornamos amigos e, mais tarde, confrades na Academia Piauiense de Letras. Tive
o orgulho e a honra de prefaciar o seu monumental livro, histórico e genealógico,
sobre os Castelo Branco.
Como maçom, Humberto Reis foi um dos fundadores da Loja
Maçônica Cruzeiro do Sul. Agraciado com a maior honraria do Grande Oriente do
Brasil no Piauí, recebeu o título de Maçom Benemérito. Mereceu a sombra e o
encosto da simbólica acácia, e foi digno de ser adornado com o lustre de suas
fulgurantes e belas flores de ouro.
Amigo exemplar, a sua amizade era
sincera e verdadeira. Traído, embora poucas vezes, nunca traiu. Fazia o que
podia e até o que não podia pelos seus amigos, sacrificando-se, às vezes.
Quando fui operado, em virtude de uma neoplasia da qual, em Deus, considero-me
curado, todo dia ele me visitava no hospital e, depois, em minha casa, chegando
mesmo a me visitar quando ele próprio já estava no início de sua enfermidade, o
que muito me sensibilizou e à minha família, especialmente a meu pai, que havia
sido seu colega no velho Diocesano.
No Dia das Mães lá estava ele,
visitando suas amigas, com uma rosa vermelha na mão direita, para lhes ofertar.
Entre essas amigas constava minha mulher, que sempre lhe mereceu essa bela
prova de apreço e estima, que comove e dá beleza à vida. Quando demorávamos a
nos encontrar, pelas injunções do trabalho e da vida, ele telefonava para se
queixar a minha mulher, que imediatamente me ordenava que o procurasse. E eu o
fazia logo, para gáudio e honra minha.
Em seu sepultamento, estava ali
presente um homem do povo, um humilde servidor da Secretaria de Justiça, que se
postou a meu lado, e me disse haver sido ele o melhor secretário dessa pasta,
em virtude de haver prestigiado os seus servidores efetivos, colocando-os nos
cargos de confiança e dignificando-os com o seu estímulo e respeito; acrescentou
ainda que pôs em funcionamento diferentes atividades ocupacionais para os
presos.
Certa ocasião Humberto Reis me
relatou um episódio que presenciara, na paisagem árida do adusto sertão
piauiense, em sua juventude, que lhe marcou para sempre, quando viajava a cavalo
de Jaicós para Teresina. Foi uma verdadeira cena dantesca, desesperada, digna
dos versos condoreiros de Castro Alves ou das páginas fulgurantes dos melhores
romances de 30; uma mulher, com um espinho de carnaúba, furou o braço magro,
para que o filhinho lhe sugasse o sangue. Fortemente comovido, Humberto
entregou a essa família de retirantes os mantimentos que conduzia em sua longa
viagem.
Entre os seus livros, estavam os da
coleção das obras completas de Tobias Barreto, pensador erudito, escritor,
jurista e poeta, líder da chamada Escola do Recife, que escreveu estes versos
literalmente lapidares:
No meu sepulcro não terei as rosas,
As doces preces que os felizes têm;
Pobres ervinhas brotarão viçosas,
E o esquecimento brotará também.
Ao contrário, Humberto Reis da
Silveira jamais será esquecido. Permanecerá vivo na História do Piauí pela sua
bela trajetória de homem público, que soube exercer com eficiência e probidade
os importantes cargos e funções que ocupou.
De Da Costa e Silva, poeta maior do
Piauí, um dos excelsos bardos de sua predileção, colho os seguintes versos:
Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoas sobre a
serra...
para dizer que Humberto Reis, que foi um homem bom e um bom
amigo, que amou o bem, o bom e o belo, permanece vivo, sempre lembrado no
memorial de nosso peito e no panteão de nossa saudade.
Encerrando
minhas palavras, lembro a história que ele me contou sobre um palhaço eslavo,
que morreu na sua Jaicós, quando Humberto ainda era um menino. Ao visitar a
cova do palhaço eslavo, lembrei-me do imortal palhaço de Heine, que em seu
poema tanto mais fazia rir quanto mais de tristeza definhava. Inspirado nessa
história, compus o poema A Cova do Palhaço em homenagem ao inesquecível amigo Humberto
Reis. Eis apenas um trecho dessa poesia:
Trazia no rosto
a sofrida marca do desgosto
de uma saudade nostálgica da terra
eslava,
que a face lhe escavava
com profundos sulcos de sofrimento
em que se esvaía lentamente.
Distante do rincão eslavo,
numa cidadezinha perdida do agreste,
traspassado por irremediável tristeza
infinita,
nostálgico de tudo, nostálgico e só,
morreu numa tarde tristonha,
na hora melancólica do sol-posto.
Pó ao pó. Corpo deposto.
Mas Humberto Reis,
repito, jamais será esquecido. Será sempre lembrado pela sua bondade e pelos
bens que com prodigalidade espargiu.
(*) Discurso pronunciado no dia 28 de
maio de 2025, na solenidade comemorativa do Centenário de Nascimento do
deputado Humberto Reis, ocorrida no plenário da Assembleia Legislativa do
Estado do Piauí, em sessão presidida pelo deputado Wilson Nunes Brandão,
proponente da homenagem. A solenidade foi transmitida pela TV Assembleia, e se
encontra disponível no You Tube (link: https://www.youtube.com/live/e8OG9GvV7pM?si=jR0OG1amkGIl8RNv).