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Livre, ou quase
Por Fabrício Carvalho Amorim
Leite
Olhei para cima. Fuga ou
capricho? Talvez os dois. Foi então que
vi. Lá estava ele. Não, não era Deus. Era apenas um pombo. Um vira-latas
qualquer. Horrível, sujo, pleno — como só os que não devem favor à beleza sabem
ser.
Cinza das calçadas rachadas que
todos pisam. Pena torta, como promessa descumprida. Bico imundo de esgoto e
peleja. Se fosse belo, estaria preso. Chamariam de "ave exótica",
dariam um nome humano, colocariam numa gaiola personalizada com alpiste premium
e mil chamegos breves. Mas não era. Era livre. Ou quase. Sorte dele? Quem sabe.
Vi quando ele voou pelas portas
da igreja. E não era a fé que o movia, era a pura sede. Bebeu do esgoto,
sacudiu as asas e voltou para o alto, sem "amém". Entre o teto
rachado e o chão encardido, fazia sua penitência, aquela que os homens fingem
abraçar, mas não praticam.
Lá de cima, enxergava mais do que
santos atarefados e túnicas empoeiradas. Via joelhos doídos, defeitos soprados,
juras, muitas juras. Via o que ninguém ousa confessar.
E você? Reza por medo ou por fé?
Pensei, sabendo que os vira-latas jamais rezariam. As aves não rezam. Sentem
fome. Medo. Mas descem. Porque farelos não caem do céu, caem, sim, das mãos
desatentas de quem pensa ter demais e, no fundo, sobra de menos.
Ele sabia disso. Por isso desceu
e bicou o biscoito da mão da minha senhora, com a autoridade de quem toma posse
do que sobra. Eu olhei, com aqueles olhos que só vira-latas domesticados sabem
ter: orgulho disfarçado de compaixão. Ou seria cobiça disfarçada de moral?
O pombo seguiu. Feio, imundo,
livre.
Eu ajeitei as correntes, abaixei
a cabeça e agradeci — não pela liberdade, mas pela minha aconchegante gaiola. E
no fundo do instinto pedi que Deus me livre do livre-arbítrio.
Abril, 2025
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