segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Campos de Parnaguá e sertões de Gilbués

Barões de Paraim e de Santa Filomena, ilustres filhos de Paranaguá

Campos de Parnaguá e sertões de Gilbués

Reginaldo Miranda
Da Academia Piauiense de Letras

Desde o ano de 1676, quando foram concedidas as primeiras sesmarias, ao ano de 1702, os campos de Parnaguá e os sertões de Gilbués, estiveram formalmente anexados ao governo de Pernambuco.

Até o ano de 1702, essa região não teve vínculo administrativo e eclesiástico com a freguesia de Nossa Senhora da Vitória do Brejo da Mocha do Sertão do Piauí, hoje Oeiras. É que, desde o princípio os campos de Parnaguá e os sertões de Gilbués ficaram integrando a freguesia de São Francisco da Barra do Rio Grande, nos confins de Pernambuco. A freguesia de Nossa Senhora da Vitória também ficou pertencendo a Pernambuco, com seu limite oriental no rio São Francisco. Na verdade, o sertão de Pernambuco ficou dividido em três extensas freguesias, todas margeando o rio São Francisco, a saber: Nossa Senhora da Conceição do Cabrobró, entre os arredores do litoral e a altura da atual cidade de Petrolina; Nossa Senhora da Vitória do Brejo da Mocha do Sertão do Piauí, entre esse marco e as proximidades da atual represa de Sobradinho; e, por fim, São Francisco da Barra do Rio Grande, desse pondo até os limites das Minas Gerais; a primeira e a terceira possuíam sede à margem do rio São Francisco, de forma que a do Piauí, embora também banhada pelo mesmo rio, ficara isolada no sertão de dentro. Portanto, os campos de Parnaguá e os sertões de Gilbués eram a parte mais ocidental da freguesia de São Francisco da Barra do Rio Grande. Esse fato não admite contestação, existindo farta documentação a respeito, inclusive declarações de um pároco de Parnaguá, secundadas pelo Bispo do Maranhão, durante o governo de João Pereira Caldas(1759 – 1769).

Por essa razão, a população e fazendas daquela região não foram referidas pelo padre Miguel de Carvalho, na sua Descrição do Sertão do Piauí(1697), quando veio instalar a freguesia da Mocha. Certamente, as descreveu no outro relatório da freguesia de São Francisco, que também instalou na ocasião. Mas os arredores da lagoa de Parnaguá já estavam colonizados naquela época, com povoação considerável, constituindo o segundo núcleo de colonização portuguesa nos sertões de dentro, logo imediato ao do arraial dos Paulistas, hoje Valença do Piauí. Não sabemos, ao certo, a data de sua fundação, todavia supomos que possa ter sido fundado pelo capitão-mor Francisco Dias de Siqueira, com os índios Guacupês e Ananás reduzidos à paz no ano de 1676.

Aliás, pela fertilidade do solo, rico em fauna e flora, verdadeiro oásis no sertão, aquela região possuía tribos sedentárias desde longa data. Então, ao estabelecer pazes e/ou dominar os indígenas da região, foi fácil para os primeiros colonizadores estabelecerem um ponto de apoio no sertão de dentro. Como prova de existência dessa povoação basta citar o testemunho do padre Miguel de Carvalho em seu relatório, a saber: “em o ano de 1694, quando desta povoação [da Mocha] atravessei para o Parnaguá”; e em outro trecho, ainda referindo-se ao mesmo destino: “Até chegarmos à povoada”. Ainda no recuado ano de 1697, foi designado o padre Inocêncio de Carvalho e Almeida para “desobrigar os moradores dos confins do rio S. Francisco e os da Lagoa de Parnaguá e Rio Preto”. Por fim, em 1698 o rei D. Pedro II, de Portugal, escreve ao governador geral D. João de Lencastre, que recebeu representação por parte, entre outros, dos moradores do povoado da Lagoa de Parnaguá.

Também, sobre o ano de sua anexação à freguesia do Piauí, recorremos ao testemunho do Ouvidor geral Antonio Marques Cardoso, em correspondência a El Rei datada de 29.6.1727. Segundo ele, naquele ano“pelos oficiais da Câmara da vila da Mocha se elegeram dois juízes, (sendo) um para o Riacho do Parnaguá, vindo à freguesia de Nossa Senhora da Vitória, da mesma vila, em o ano de um mil setecentos e dois” (AHU 016, Cx 1, Doc. 59). Portanto, foi nesse último ano que aquela região passou para o Piauí. É que em 3.3.1701, a freguesia do Piauí fora desanexada de Pernambuco e passara ao governo do Maranhão. Dessa forma, como se localizava no rio São Francisco, entre as freguesias de Cabrobró e Barra, ficara o território pernambucano descontínuo. Logo, a solução foi a freguesia do Piauí ceder a margem do rio São Francisco para Pernambuco e receber as nascentes do Gurgueia, trazendo os limites para a atual cordilheira serrana. Mais tarde, Pernambuco perde a freguesia de São Francisco para a Bahia.

Complementando essas informações, no ano de 1725, Manoel do Rego Monteiro e Feliciano Pereira Bacelar, contratantes dos dízimos do Piauí e Riacho de Parnaguá, enfrentaram forte oposição dos pernambucanos para executarem o contrato. Então, argumentam em petição que a anexação dos sertões de Parnaguá à freguesia da Mocha e consequente a cobrança dos dízimos no Maranhão deu-se porque correm as vertentes dos rios daquelas paragens para a Capitania do Maranhão, sendo “o Parnaíba rio caudaloso, donde em embarcações se atravessa para o Maranhão, cujas razões foram causa de se ordenarem os seus dízimos para o Maranhão, e não para Pernambuco que fica em distância de mais de duzentas léguas” (AHU – Maranhão – Doc. 1455).

Assim, fica esclarecido que o território de Parnaguá foi anexado ao Piauí em 1702, atendendo ao curso das águas e às facilidades de comunicação.

Conforme se disse, em 1727, Parnaguá ganha juiz, com algumas restrições, mas com provimento de provedor dos defuntos e ausentes. Também, ganhou tabelião.

Segundo o padre Cláudio Melo, passou a freguesia em 1731. O foro de vila alcança em 1761, oficialmente instalada em 1762. Voltaremos ao assunto.

(Artigo publicado no jornal Meio Norte, caderno Alternativo, página Academia, edição de 21.12.2007).

domingo, 18 de dezembro de 2016

Seleta Piauiense - V. de Araújo

Fonte: Google

Navegar

V. de Araújo (1950)

Amanhã.
navegarei além estrelas...
Quem seguir minhas pegadas,
e não conhecer
os labirintos do tempo,
não me achará:
minha estrada é o éter...
minha morada o silêncio.

Fonte: Blog do Professor Gallas

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXXIII

Fonte: Google

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXXIII

Ester, serrana bela

Elmar Carvalho

Marcos, apesar de sua postura aparentemente cínica, no modo como terminou o namoro com Laura, ficou triste durante alguns dias. A moça foi concluir seus estudos na capital do país, onde se casou e teve dois filhos. Não mais retornou a Évora, e o rapaz não mais a reviu. Contudo, por muitos anos e talvez para sempre, ficou com remorso da maneira indelicada e abrupta como terminara o idílio.

Quando ouvia nas amplificadoras da cidade e nas dos circos e parques de diversão, que de vez em quando chegavam a Évora, sobretudo na época dos festejos de São Gonçalo, os versos musicais “Quanto sinto em dizer-te / Que me podes desprezar / Logo, logo / Sei que devo deixar-te /Já não posso mais sonhar...” na voz de Márcio Greyck, sentia uma forte emoção, e por vezes seus olhos marejavam, ao meditar sobre o que “podia ter sido e que não foi”, como nos versos de Manuel Bandeira, um dos poetas de sua predileção. E sentia falta dos carinhos, dos cuidados e da inefável ternura de Laura. Para sempre carregou a nostalgia do que não foi, mas poderia ter sido.

No último ano do antigo curso Científico, travou relações de amizade com Maurício Vanderley, um serrano alvarinto, como se dizia na região. Seu pai era um fazendeiro, que resolvera morar na cidade, porque desejava que os filhos estudassem e se tornassem doutores: advogados, médicos ou engenheiros, principalmente. Maurício admirava a inteligência e a conversa de Marcos, suas intervenções oportunas nas aulas, interrogando ou aparteando os professores, e o convidou para passar um final de semana na fazenda de seu pai, que ficara sob a responsabilidade de um casal de parentes.

Num dia de sábado, por volta de uma hora da tarde, cada um em sua bicicleta, seguiram viagem. A fazenda Canaã ficava a 45 quilômetros da cidade. A temperatura daquela região serrana era agradável, e chegava a ser fria a partir das nove horas da noite. Faltando cerca de duas léguas para a chegada, começava uma subida um tanto íngreme, apesar das curvas da estrada carroçável, que tentavam driblar as rampas mais acentuadas.

Quando chegaram, por volta de sete da noite, Marcos estava quase morto, como ele disse, após serem recebidos pelo casal, que tomava de conta da propriedade. Maurício Vanderley, acostumado a andar de bicicleta e a cavalo nas estradas e veredas da serra, estava lépido e fagueiro, como ele fez questão de alardear. Tanto o capataz como sua mulher eram alvos; eram primos entre si e de Maurício. Descendiam de um casal de holandeses, que se refugiara na serra, quando os seus patrícios foram expulsos de Pernambuco.

Na velha e imponente casa de fazenda, mais do que centenária, que substituíra o rústico solar anterior, cujas ruínas ainda podiam ser vistas, havia uma pintura retratando os trisavós de Maurício. Naquela noite de plenilúnio, tudo isso foi relatado e mostrado por João Vanderley, o capataz, que parecia ter certo orgulho de ser descendente desses marinheiros, como as pessoas da vizinhança diziam. Foi com mal dissimulada empáfia que disse, apontando para o quadro, “esses dois são nossos ancestrais”.

Sua esposa se chamava Ester. Tinha os cabelos louros. Os olhos eram azuis, vivos e luminosos como duas estrelas do significado de seu nome de origem judaica. Tinha traços da trisavó de Maurício, sendo, porém, muito mais bela. Suas caprichadas curvas, de colo altaneiro, se deixavam entrever, não obstante a blusa recatada e a saia que lhe descia até abaixo do joelho; viam-se apenas, desnudas, as panturrilhas grossas e bem torneadas. Estudou na capital, em internato para mulheres, chegando a concluir o curso ginasial. Apareceu na sala Judite, sua irmã, mais ou menos de seu porte, cujo rosto guardava-lhe alguma semelhança, mas sem a sua graciosidade e beleza; era arredia e um tanto acanhada. Foram as duas preparar os dormitórios dos visitantes.

Após a refeição, já por volta de nove horas, João anunciou que iria a uma festa, no povoado Tranqueira, a umas duas léguas de distância. Já com três cavalos selados, na porta do solar, convidou os rapazes a acompanhá-lo. Ao ouvir o convite, Ester ficou como possessa e teve um acesso imediato e incontido de fúria. Fora de si, ensandecida, gritou:
– Eu sei o que tu quer! Tu vai te encontrar com aquela tua rapariga sem vergonha...
– Que é isso Ester? Qual o motivo dessa zanga? Eu vou apenas levar nosso primo Maurício e o amigo dele para essa festinha. Eles são jovens, solteiros, e precisam se divertir.
– Que levar o primo que nada, seu descarado. Maurício nasceu e se criou aqui, e sabe muito bem ir sozinho. Tu quer mesmo é se encontrar com aquela sirigaita, que além de tudo ainda te põe uns chifres. Um dia eu ainda vou aprontar uma boa contigo, pra tu ver se é bom ser enganado...

O marido nada respondeu. Mas aparentou ficar um tanto orgulhoso do ciúme destemperado da mulher. Renovou o convite e marchou firme para onde estavam amarrados os cavalos. Maurício ainda obtemperou que o primo não precisava se incomodar, pois ele conhecia bem demais essas veredas e socavões. Marcos recusou o convite, alegando que estava cansado em demasia, e seguiu para o quarto que lhe estava destinado, onde havia, bem arrumada, uma larga e confortável cama. Logo a casa ficou em completo silêncio e escuridão.

Marcos, em horário que jamais saberia precisar, acordou, um tanto assustado; alguém o tocava. Pelos cabelos longos, percebeu que se tratava de uma mulher, que se debruçava sobre ele. Tocou-a, e lhe acariciou os pomos, grandes, rijos e macios. Os túmidos mamilos lhe espetaram as mãos, até que ele os recolheu na boca faminta e sequiosa. Permitiu que a mulher o cavalgasse. E se deixou possuir, como nunca o fora nessa intensidade.

A mulher gemia e sussurrava palavras desconexas, ininteligíveis, contudo inefáveis e aliciantes. O jovem sentiu, ao acariciá-la, que seus olhos estavam úmidos. Talvez chorasse. Talvez chorasse de tristeza ou por remorso. Ou de prazer. Quedou-se aconchegada a ele, ofegante. Depois, tudo recomeçou, em frenético frenesi. Da cinza da exaustão o cio retomavam, e fênix renasciam. Por fim, Marcos adormeceu.

Quando acordou, estava só. Já era dia. Abriu as janelas e não encontrou vestígio do que se passara. Estava limpo e nenhuma mancha havia sobre a colcha do leito. As serranias, ao longe, já estavam iluminadas, sem as névoas dos amanheceres friorentos. Ester e Judite o cumprimentaram de maneira natural, quase impassível, sem nada que denunciasse a menor intimidade ou cumplicidade amorosa. Colocaram o café e o leite quente sobre a mesa, onde já estavam pedaços de carne, ovos estrelados, beijus e bolos. O rapaz tentou lhes sondar o semblante, mas não lhes notou nenhum sinal de estranheza, inquietação ou receio. Qual das duas teria feito a incursão noturna?

Só mais tarde chegaram João Vanderley e Maurício. Após tomarem o reforçado café matinal, foram dormir, pois estavam sonolentos e cansados, como o semblante denotava, e só foram acordar à boca da noite. Marcos foi dar um passeio pelas redondezas, até encontrar o riacho que lhe indicaram, em que tomou demorado, delicioso e revigorante banho em suas águas borbulhantes e tépidas. O regato corria entre uma mata densa, muito verde e luxuriante, cujas folhagens se debruçavam sobre ele. Formavam uma espécie de túnel ou alameda.

O rapaz se quedou a ouvir a algazarra esfuziante dos bem-te-vis. Recordou que em sua infância sua mãe lhe recomendava nunca aprisionar ou matar pássaros, nem lhes tirar os ovos dos ninhos. Ainda tinha arrependimento por causa de um único bem-te-vi que matara com um tiro de espingarda, no final de sua infância. Vira a ave cair, mas sequer tivera coragem de vê-la morta, no chão. O canto rascante e nostálgico das cigarras tomou conta de tudo. Envolvido por essa música contínua, ubíqua, absoluta e onipresente voltou a pensar no que lhe sucedera à noite. Mas, ante a impassibilidade das duas irmãs, até mesmo discreta frieza, procurou não pensar mais no caso.

Para se tranquilizar e se livrar de eventual remorso, por haver, talvez, tomado a mulher do próximo, embora, bem apurados os fatos, ele é que fora tomado, julgou que tudo não passara de um sonho, até porque não vira o menor sinal de sexo, em seu corpo ou na cama. Todavia, tudo lhe parecera tão vívido, tão verdadeiro, tão material. Parecia ainda sentir nas mãos a carne palpitante e palpável da mulher. Talvez algum espírito feminino, de alguém que tenha habitado aquela velha casa solarenga, tenha se materializado e lhe proporcionado aquela noite tão cheia de encanto e enlevo.

Contudo, após o almoço, quando estava sozinho no quarto, arrumando sua mochila, por causa do retorno a Évora no dia seguinte, Ester entrou subitamente no dormitório. Abraçou-o com força e o beijou de modo arrebatado, enquanto lhe sussurrava “espero que você, embora seja ainda um rapazinho, guarde o nosso segredo para sempre, e nunca se esqueça do que entre nós se passou”. E o que se passou à noite foi repetido à luz do dia. O rapaz pôde apreciar, então, todo o esplendor escultural da linda serrana.

Marcos guardou, muito bem guardado, aquele segredo, que parecia ser o marco simbólico do final de sua adolescência. E, quando lia ou recitava os camonianos versos – “Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela” – a saudade de Ester, fulgurante estrela e serrana bela, lhe pungia a alma. E por mais que vivesse jamais a esqueceria.       

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

DE VOLTA A FERREIRA GULLAR: UMA CORREÇÃO


DE VOLTA A FERREIRA GULLAR: UMA CORREÇÃO

Cunha e Silva Filho

No meu artigo anterior sobre o falecimento do poeta, havia dito que possivelmente a última crônica do escritor publicada na sua coluna aos domingos do caderno Ilustrado tivesse sido “Solidariedade ( 04/12/2016), em que discute sobre questões da política brasileira atual.

Mal sabia eu que outra crônica, “Arte do futuro” saiu no caderno Ilustrado do dia 11/12/2016), ou seja, a última crônica do grande poeta tinha sido lucidamente “ditada” por ele à sus neta Celeste no leito do hospital. Ele a produziu já respirando mal, fazendo pausas para descansar. 

Ao ser perguntado por ela se era melhor deixar para terminá-la outro dia, Gullar lhe respondera que não, visto que não sabia o que podia acontecer. Celeste, segundo a nota aposta à coluna, confessara que o avô um a vez lhe dissera que sabia adivinhar coisas. Seria, então, pode-se concluir, por isso que não desejava terminar de escrever a derradeira crônica em outra dia.

Se claramente Gullar confidenciara à neta que tinha o dom de adivinhar o que podia acontecer, não vejo nisso alguma pretensão de vaidade ou ares de superioridade.

Sabe-se, na Antiguidade clássica, que o sentido da palavra “vate,” da etimologia latina vate/em, “profeta,” com que por vezes se usa para chamar alguém de poeta, significa “vaticínio, a capacidade de ver o futuro, o que pode acontecer. (Cf. o verbete “Vate” em MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6.ed. São Paulo: Cultris, 1992, p.507)

Acreditava-se que os poetas tinham o dom de profetizar mercê sobretudo da sua “linguagem ritmada”. Com o tempo, o vocábulo se tornou sinônimo de poeta, de bardo. Este último, de resto, tem uma fortuna semântica bastante rica e remonta ao étimo celta “bàrd,” bardh, significando “poeta”(idem, p.57). 

Agora que disponho dessas informações relacionadas à última crônica de Gullar, o dado bibliográfico fica, pois, atualizado.

Já havia acentuado, no meu artigo “Morre o poeta Ferreira Gullar,” que Gullar tematicamente - quase poderia dizer - se alternava entre crônicas políticas, sobretudo na sua crítica ao luloptismo e aos erros e acertos do marxismo tanto quanto às ambições desmesuradas do capitalismo no pais e no mundo e a questões concernentes às artes em geral, incluindo sobretudo a poesia das vanguardas, ao seu próprio tempo de forte atuação nos movimentos de renovação da poesia brasileira a partir do Concretismo de 1956, segundo aludi a esse aspecto no meu artigo atrás citado.

Desta forma, serve como desfecho brilhante a crônica-ensaio “Arte do futuro,” já mencionada acima. Nesse espaço do jornal a que me tinha acostumado como leitor cativo desde o seu início há onze anos, essa última crônica se torna, por assim dizer, um marco histórica na biografia do autor.

No entanto, entrevejo uma coincidência no fato de Gullar, nessa última matéria, se voltar, como o fez tantas vezes, às questões atinentes às artes. Na “Arte do futuro” Gullar, em síntese lapidar, faz um retrospecto dos caminhos da pintura desde a “pintura mural,” passando, pelas novas mudanças que a pintura conheceu através do tempo até chegar à contemporaneidade, a tela, a pintura a óleo, a referência à fotografia, o realismo, o impressionismo e o cubismo.

Assim, mais uma vez e, como que para reafirmar os fundamentos da história da pintura, faz uma conclusão, negativa ao que chama de “vale-tudo” atingido nos tempos modernos pelas artes em geral, São palavras de seu penúltimo parágrafo da crônica: “A conclusão inevitável é que o que até aqui se chama de arte já não o é.(grifos meus). Mas o sentido profético de suas palavras no texto me permitem afirmar que Gullar, que não gostava, de ser pessimista, sobretudo em relação às artes(Cf. o que Gullar declarou numa entrevista inédita concedida a Pedro Maciel, publicada no caderno Ilustríssima, p. 3, na mesma edição da crônica que agora comento. Gullar, entre outras afirmações preciosas, ensina que a função da poesia é de trazer a “beleza,” a felicidade às pessoas. O que , em outras palavras, exprime é que a arte complementa a vida . Se não salva pessoas, as torna mais felizes. Eis o seu objetivo.

Entretanto, há algo que define a sua compreensão profunda do que seja a obra de arte contemporânea. Para Gullar, seus fundamentos se estribam em dois pilares: “a arte e a técnica.” Seja a arte da poesia, da pintura, da escultura, da música, do romance,do teatro. Sem aqueles dois componentes as “manifestações artísticas” não perdurariam e isso independente dos avanços que possam ter agora e no futuro.

E arremata, em chave de ouro e em tom profético que, conforme se deu no Renascimento que trouxe para o domínio artístico uma “nova linguagem” alterando tudo que o precedeu no campo artístico, acredita o autor de Luta corporal (1954) que poderá “nascer”no horizonte futuro,graças a “novas tecnologias,” uma arte. Para ele, esta possibilidade poderá bem vir a a ocorrer [...] não custa nada imaginar [...]

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Antologia - Baião de todos


Antologia - Baião de todos

Geraldo Borges

Há três opções para uma leitura da antologia – Baião de Todos, editada pela Fundapi, e organizada por Cineas Santos e Keula Araujo. 2016, Teresina Piauí.

A primeira seria aleatoriamente, abrindo aqui e ali, uma pagina do autor que chamasse atenção do leitor, por simpatia, ou, mesmo, por preferência de estilo, titulo e tema; e saboreando ao seu bel prazer, até mesmo por que a antologia é um leque de várias cores temática, um mergulho nas profundezas da alma dos poetas na luta com a inspiração.

A segunda leitura seria a linear, quer dizer, a forma em que o livro foi montado. Ordem alfabética de A W, terminando com o Wiliam Soares o consagrado poeta de nossa cidade e que vive levitando pelas ruas com o seus passos em câmara lenta.

A terceira leitura seria em ordem cronológica, o que poderia muito bem explicitar os estágios da poesia brasileira de expressão piauiense. Claro que esta leitura não é possível, já que a antologia não foi organizada em ordem cronológica. Mas, pensando bem, as sintéticas informações biográficas, em parte, ajudam bastante ao leitor que se propõe a estudar com mais empenho a nossa literatura.

Quanto a ilustração a capa do meu amigo Amaral é muito bonita. Uma revoada de pássaros. Poesia. Mas não reflete o miolo da antologia, que, no meu entender, é a contradição do novo na luta contra o antigo. A não ser que a revoada de passarinhos signifique um bando de poetas perplexos em sua cidade sitiada.

Quanto a qualidade da antologia Baião de Todos é um bom prato, pena não ter aparecido mais convidados. A gente ler e fica lambendo os beiços. Tem sabor para todos os paladares, os mais bizarros e esquisitos. Os poetas surpreendem, tanto os mais novos como os mais antigos. Uma das características dos poetas é cantar a sua terra. Celebrar a sua aldeia. E o que tem de sobra em Baião de Todos. Vejamos. Graça Vilhena:

“ No mercado central
As verdureiras arranjavam
Buquês de cheiro verde “

Os exemplos são muitos, o leitor pode conferir no livro. Os poetas mais antigos falam de uma velha província, que jamais será restaurada a não ser na memória e imaginação dos poetas. Os poetas mais novos, que cresceram dentro de um cenário de uma cidade em transição, que se verticalizou em concreto, cantam sua cidade dentro de outro compasso. Uma cidade estilhaçada por contradições. Contradições bem colocadas como se pode ler nos versos de Lívia Maria;

‘ Amar é ter uma bicicleta
mesmo morando no terceiro andar
E sentir uma euforia quando tudo é cansaço ‘

Exemplar. A bicicleta é o novo instrumento da modernidade que terão de enfrentar os novos poetas do Baião de Todos. A maioria não acredita mais em musa, essa velha puta romântica. Por isso mesmo terão que pedalar muito e sentir euforia quando tudo é cansaço. Porque sem alegria e estudo não existe inspiração.

Fonte: blog Piauinauta

domingo, 11 de dezembro de 2016

Seleta Piauiense - Alcenor Candeira Filho

Fonte: Google

SOS

Alcenor Candeira Filho (1947)

   sempre
   sós
   como ondas:
ontem hoje após.

   sempre
   sós
   todo
   somos:
eu e tu e vós...

quanto
   sobra
   são
   sombras
em torno de nós.

   sombras,
   só,
   quando
   e onde:
SÓS! SÓS! SÓS! SÓS!

   somos
   só
   nossos
   sonhos
enquanto não pós.   

(Extraído do livro Seleta em verso e prosa.)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Buriti dos Lopes

Fonte: Google

Buriti dos Lopes 

Reginaldo Miranda
Da Academia Piauiense de Letras

A história da cidade de Buriti dos Lopes data de princípio do século XVIII, quando ali se estabeleceu nas margens do riacho Buriti, o português Francisco Lopes, fundando fazenda de criar que passou a denominar-se Buriti dos Lopes.

Com a sua morte foi sucedido na posse da terra e administração da fazenda pelo filho José Lopes da Cruz, que já não existia em 16 de novembro de 1762, quando o desembargador Francisco Marcelino de Gouveia elaborou minuciosa relação de todos os possuidores de terra do Piauí.

Esse José Lopes da Cruz, segundo senhor da fazenda, fora casado com dona Florência de Monserrate Castello Branco – irmã do tenente-coronel João do Rego Castello Branco, de cujo consórcio deixara nove filhos. Depois de viúva ela convolaria segundas núpcias com João Fernandes Rodrigues de Queiroz. Era filha de João Gomes do Rego Barros, capitão-mor de Parnaíba e de sua segunda esposa Maria de Monserrate Castello Branco, esta filha de D. Francisco da Cunha Castello Branco e Maria Eugênia de Mesquita, portugueses radicados em São Luiz do Maranhão(ela faleceu em naufrágio nas costas do Maranhão, durante a mudança). Esta fazenda embora pertencesse ao pai de José Lopes da Cruz, que a povoara, somente teve a data de sesmaria confirmada anos depois a pedido da nora e viúva, respectivamente.

Além da fazenda Buriti dos Lopes, José Lopes da Cruz bem administrou essa herança paterna, ampliou seu patrimônio e tornou-se um abastado fazendeiro e grande latifundiário, adquirindo outras fazendas, a saber: Espírito Santo de Baixo, comprada a Lourenço Ferreira Gomes e este a Manuel de Abreu de Mello; Pirangi, com data confirmada em 8 de maio de 1728, a requerimento da viúva; São Vicente, nas margens dos rios Longá e Parnaíba, com data confirmada pela segunda vez em 20 de junho de 1750, a requerimento de José Lopes da Cruz, tendo-lhe sido concedida pela primeira vez em 1728 e não fora registrada por descuido do beneficiário.

A fim de bem esclarecer a sucessão dos proprietários e administradores da fazenda, transcrevemos na íntegra as notas do aludido desembargador: “Os ditos herdeiros e filhos do mesmo José Lopes da Cruz, que são nove, possuem a fazenda chamada o Buriti dos Lopes, que tem meia légua de comprimento e légua e meia de largura, a qual lhes tocou por falecimento do dito seu pai, tendo sido antes de seu avô, que a tinha povoado. Desta fazenda, em que todos os ditos herdeiros conservam gados, cada um com sua divisa, sendo este o modo porque costumam haver muitos possuidores em uma só fazenda, há data confirmada a requerimento da dita Dona Florência”.

Mais tarde, na sucessão do pai, tornou-se benemérito do lugar um seu filho e homônimo, José Lopes da Cruz, o moço, que mandou construir a capela de Nossa Senhora dos Remédios, hoje igreja-matriz da cidade. Este filho foi promovido do posto de alferes para o de capitão da 7ª Companhia do Terço de Infantaria Auxiliar do Piauí, em 25 de abril de 1794, falecendo somente em 1846. Foi casado com sua prima Francisca Maria Lopes de Jesus, de quem houve onze filhos, inclusive um homônimo do pai e do avô e Luiz Demétrio Castello Branco, casado com a sobrinha Ângela de Monserrate, filha do terceiro José Lopes da Cruz, que também se destacaram como beneméritos do lugar.

A memória histórica de Buriti dos Lopes guarda o nome de Ângelo Antônio Lopes(1749 – 1839) como sucessor do pioneiro Francisco Lopes. Todavia, não é o que confirma a documentação história ora revelada. Este fazendeiro, que fora assassinado pelos Balaios em 1839, aos 90 anos de idade deve ser um dos nove filhos de José Lopes da Cruz, o velho. Portanto, neto do primeiro povoador do lugar e, assim, irmão do antecedente.

Na segunda metade do século XIX, Buriti dos Lopes já era um povoado promissor, sendo criado o distrito e a paróquia pela Resolução nº 533, de 13 de junho de 1864, esta última sob a invocação de Nossa senhora dos Remédios.

Foi elevado à categoria de vila e município pela resolução estadual n.º 15, de 2 de agosto de 1890, desmembrado de Parnaíba, com instalação oficial em 1º de dezembro do mesmo ano.

Todavia, pela lei estadual n.º 428, de 27 de junho de 1907 foi criada a comarca passando a vila de Buriti dos Lopes a denominar-se Baixo Longá. A comarca foi suprimida pela lei estadual n.º 595, de 1º de agosto de 1910, retomando a antiga denominação pela lei estadual n.º 641, de 13 de julho de 1911.

Foi o município de Buriti dos Lopes extinto pelo decreto estadual n.º 1279, de 26 de junho de 1931, sendo o seu território reanexado ao de Parnaíba. Felizmente, teve a sua autonomia restabelecida pelo decreto n.º 1478, de 4 de setembro de 1933. E pelo decreto estadual n.º 147, de 31 de dezembro de 1938 foi a vila elevada à categoria de cidade. É esta uma despretensiosa contribuição ao esclarecimento de sua história.  

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXXII

Fonte: Google

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXXII

Aqueles olhos verdes

Elmar Carvalho

A música era lenta (e a letra, romântica). Estava em todas as paradas de sucesso dos programas radiofônicos musicais da época. Ao embalo desse hit da Jovem Guarda, Marcos, aos poucos, foi se aconchegando a Laura. A moça, no início, fingiu não corresponder, simulando discreta resistência, mas gradativamente foi deixando que o rapaz a enlaçasse, em sucessivos e aliciantes deslizamentos de mãos e braços. Sem deixarem o salão, dançaram ao som de várias músicas, que a orquestra tocou sem intervalo.

Sob a manjada desculpa de que fazia muito calor, Marcos a convidou para irem “lá pra fora”. Laura assentiu com um movimento de cabeça. Seguiram lado a lado, mas sem enlaçarem as mãos. Na praça estavam vários casais. Alguns estavam sentados, de mãos dadas, a conversarem; outros, se beijavam sem grande efusão; contudo, alguns, encostados em árvores, canteiros ou postes, se beijavam e se abraçam com frenesi. Eram os chamados pinos ou amassos.

Quando chegaram à praça, Marcos tomou a mão de Laura, que não fez a menor oposição. Para não dar mostras de ser um “apressadinho”, o rapaz sentou-se em um dos bancos disponíveis, um tanto afastado dos outros casais. Iniciou uma conversa trivial, que não interessava aos dois. Quando um dos casais retornou ao clube, deixando um dos canteiros que lhe servia de encosto livre, Marcos se levantou e, segurando as mãos da namorada, a conduziu para esse local.

Ao chegar, colocou as mãos nas têmporas dela, afagando-lhe os cabelos com suavidade. A seguir, abraçando-a com leveza, encostou a cabeça na sua, para só depois esboçar um beijo na boca. Ela, demonstrando sua inexperiência ou mesmo certo recato e receio, virou o rosto.

Diante desse movimento de esquivança, que fazia parte do jogo amoroso inicial, quase ritualístico na época, beijou-a na face, deslizando a boca até perto da orelha, até lhe mordiscar o lóbulo, ornado com pequeno brinco. Deixou que ela lhe sentisse e ouvisse a respiração, que fingiu estar um pouco ofegante. Após alguns sutis movimentos de idas e vindas, avanços e recuos, marchas e contramarchas – sim, não, não, sim, sim, não, sim, sim, sim – o rapaz a abraçou com força e a beijou com sofreguidão. E ela correspondeu com todo o ímpeto de que Marcos não a julgava capaz.

Iniciaram um namoro que demorou mais de ano. Quase sempre os encontros eram semanais, aos sábados e domingos, algumas vezes em festas e tertúlias. O local dos encontros e namoro era a praça central. Por volta das dez horas ou dez e meia, Marcos ia deixá-la até perto de sua casa. Laura sempre vinha acompanhada de uma irmã ou amiga, que saía à procura do namorado ou de outras companhias. Nunca o rapaz foi a sua casa, pois segundo dizia aos amigos não queria se comprometer.

Numa das vezes em que Marcos iria a uma festa de colação de grau (término do curso ginasial) de um de seus amigos, que aconteceria no Clube da AABB, tomou umas afoitas doses puras de uísque, bebida a que não era acostumado. Foi solicitado a saudar um amigo dele e de seu anfitrião, que havia se mudado para a capital há uns dois anos. Na empolgação da bebida e do discurso, chamou o homenageado de Milton Monteiro. Foi interrompido pela namorada do rapaz, que observou sem nenhuma sutileza:
– Você diz que é muito amigo dele, mas no entanto o chamou de Monteiro, quando o seu sobrenome é Moreira.

Marcos não perdeu a deixa de mostrar a sua verve, retrucando:
– Perfeitamente, eu o chamei de Monteiro porque Milton Moreira vem atingindo as mais altas culminâncias do saber e da cultura, e por isso é um monte, um Monteiro de sabedoria e erudição!   

Os amigos, algumas doses depois do seu triunfo no desfecho de sua oratória, que provocou risos e congratulações, vendo que ele já estava mais pra lá do que pra cá, ou seja, mais pra lá de Marraquexe, como se dizia na época, recomendaram que ele tomasse um banho. Após, seguiram no fusquinha do pai de Valdemar, que pilotava o apertado veículo, conduzindo cinco marmanjos, inclusive o filho, quando Marcos começou a engulhar, entre soluços. João Fernandes alarmou-se ante o que poderia acontecer ao seu querido fusca:
– Sai, sai, sai todo mundo, não deixa o Marcos vomitar dentro de meu carro.

Saíram todos à pressa, e foi o maior alvoroço quando o rapaz vomitou pra valer, ou, como dizia o eciano Conselheiro Acácio, “devolveu” o que havia acabado de comer e beber. Desceram na porta da AABB. Fabrício convidou os amigos a irem até um barzinho perto, antes de entrarem no clube. Aconselhou Marcos a passar pelo menos uma hora sem beber, o que foi aceito sem protesto. Disse que chupasse umas balas de hortelã Pipper e mastigasse uns cravinhos, para tirar o mau hálito da bebida e do vômito, já que Laura estaria na festa.

Marcos nunca esqueceu, por toda a vida, a acolhida carinhosa que Laura lhe deu, mesmo ele estando um tanto embriagado, e exalando um verdadeiro bafo de onça. Quando foram para o pátio do clube, após algumas danças, ela o beijou na boca, sem a menor demonstração de nojo e sem lhe fazer a menor recriminação. Pelo contrário, nunca ela foi tão carinhosa, e nunca lhe dispensou tanta ternura e atenção como nessa memorável noite em que ele esteve tão frágil e carente, com os cabelos em desalinho e a camisa um pouco amarrotada.

No decurso do namoro, quando estava no último ano ginasial, Marcos, com outro amigo, foi espiar as garotas fazerem ginástica na quadra do Liceu. Viu, então, uma linda garota loura, cujos cabelos cintilavam à luz do sol, como faíscas douradas. Era alta e esbelta. Seus olhos eram duas esmeraldas, de brilho intenso em seu verde profundo de mares cheios de mistérios e enigmas. Não a conhecia, mas procurou colher informações. Logo descobriu que se chamava Isabela, e era filha de um executivo paranaense, que chegara, fazia pouco tempo, para dirigir uma grande loja de venda de eletrodomésticos e móveis, a maior da cidade.

Trocaram olhares à distância. Nas vezes em que se encontravam nos corredores do Liceu se olhavam com intensidade. Várias vezes o rapaz foi assistir aos exercícios de ginástica só para vê-la à distância. Quando a via em outros lugares, nas ruas, praças e tertúlias, sentia o seu olhar apaixonado, a que correspondia. Mas nunca teve coragem de lhe propor namoro, nem mesmo através de bilhetes ou recados. A garota era cobiçada por vários rapazes da cidade, que lhe admiravam a beleza alva, longilínea, dourada, de ascendência europeia. Talvez para provocá-lo, para lhe forçar a iniciativa, começou a namorar um dos jovens ricos de Évora.

O rapaz começou a mistificar e mitificar a situação, criando fantasias e quimeras, algumas estimuladas por suas leituras da vida de poetas do romantismo. Colocou a moça numa torre de marfim, e a fez intocável e inatingível. Escreveu poemas de amor, que publicava no jornal mural, entre os quais o que tinha estes versos: “eras poeta e criaste uma quimérica / amada imortal e imaginária, inatingível / em sua torre de marfim. / ela talvez também te quisesse, / mas a fizeste intocável.”

Confessou as suas fantasias a alguns amigos. Chegou ao ponto de recitar numa farra, trepado numa cadeira, um poema de sua autoria, cujo título “Isa, a bela” denunciava a destinatária de sua paixão. O certo é que essa paixão de Marcos foi se tornando do conhecimento de vários alunos do Liceu. Um dia a professora de francês, que mesmo ao se casar continuou sendo chamada de mademoiselle Charlotte, radicada em Évora há muitos anos, ao notar o olhar vago e distraído do jovem, disse em sala de aula, com seu sotaque acentuado, provocando a risada geral da classe:
– Atenção Marcos, pareces que estás apaixonado, meu filho...

A frase foi amiúde repetida em todo o colégio. Mesmo alunos de outras turmas a repetiam, imitando o sotaque de mademoiselle Charlotte. Esse amor platônico de Marcos chegou ao conhecimento de Laura, mas, como ela o amasse, nunca abordou esse assunto. Contudo, num dia em que estava numa festa no Évora Clube, notou que Isabela, embora estivesse com seu namorado, furtivamente olhava para Marcos, que também a olhava da mesma forma, pensando não estar sendo notado pela namorada.

Laura tentou conter-se, mas terminou pedindo ao rapaz para que saíssem do recinto. Quando chegaram à praça, e Marcos quis abraçá-la, a moça o deteve com suave firmeza, e perguntou à queima-roupa:
– Marcos, você gosta de mim?

Tomado de surpresa ante a inesperada pergunta, feita de chofre, o rapaz tentou ser engraçado.
– Gosto. Gosto de você, de meus pais, de meus amigos, de minhas irmãs...

Muito séria, mas com voz branda, Laura insistiu:
– Você sabe a que tipo de gostar estou me referindo. Você me ama?
– Não. Amo outra garota – disse o rapaz sem titubeios, em verdadeiro haraquiri amoroso.

Com dignidade, sem dizer uma só palavra, Laura se afastou lentamente, sem se voltar uma só vez. Contudo, em seu íntimo sofria e os seus lindos olhos negros estavam úmidos.         

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

TENEBRAE FACTAE SUNT

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TENEBRAE FACTAE SUNT

Valério Chaves – Des. inativo do TJPI
A cidade catarinense de Chapecó estava embandeirada em festa, com milhares de torcedores vestindo as cores do time de futebol local, em gritos e aclamações, ao sonho de se tornarem campeões internacionais pela primeira vez.

Embriagados pela grande euforia, ninguém pressentia que a morte, paciente, fria e calculista, ameaçava se debruçar sobre a delegação da Chapecoense que naquela tarde, procedente de São Paulo, iniciava viagem aérea à Medellin, na Colômbia, para disputar a final da Copa Sul-Americana de Futebol contra o Atlético Nacional.

Enquanto isso, sem que ninguém desse conta, a tarde corria, plácida, para os braços do crepúsculo – velho e cansado porteiro da noite. Noite, que naquele dia fatídico de 28 de novembro de 2016, baixara antecipadamente sobre a face da terra, emprestando à morte o seu regaço de sombra para a solerte tocaia, e, ao mesmo tempo, abrira a cortina para o encenador conceber no palco da vida, a queda dos heróis ao som melancólico das tubas e tambores anunciando a catástrofe.

Foi nesse cenário de verdade não pressentida, que os ocupantes do avião da empresa boliviana LaMia embarcaram no Aeroporto Internacional de Viru Viru, na Bolívia.

Mais tarde - era noite com seus fantasmas - o pesadelo chegou anunciando a tragédia da morte que com sua gargalhada sinistra dilacerando corações de milhões de pessoas, se debruçou sobre 71 vítimas fatais, enquanto os sobreviventes, com os olhos vendados pela súbita escuridão, se arrastavam, pávidos, a pedir misericórdia e a clamar por Deus.

Tudo parecia como se uma noite de angústia e soturnos incubos tivesse baixado sobre a faece da terra.

“Tenebrae factae sunt”.

Milhões de pessoas pelo mundo afora ainda choram a perda de muitos profissionais da imprensa esportiva brasileira; de jogadores, diretores e funcionários da Chapecoense.  

Nós também choramos como se fossemos um pouco de seus entes queridos.
Ah! mas que impor se tanta gente chora, se somente as crianças entendem o choro: essa voz antiga da dor – essa teimosa mensageira da morte.

Aos olhos dos insensatos eles parecem ter morrido. Todos, porém estão em paz sob os cuidados de Deus.

“Tenebrae factae sunt”

Teresina/PI, 2 de dez. 2016.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Primeiros anos

Fonte: Google

Primeiros anos

Ferreira Gullar

Para uma vida de merda nasci em 1930 na rua dos prazeres Nas tábuas velhas do assoalho por onde me arrastei conheci baratas, formigas carregando espadas caranguejeiras que nada me ensinaram exceto o terror Em frente ao muro negro no quintal as galinhas ciscavam, o girassol Gritava asfixiado longe longe do mar (longe do amor) E no entanto o mar jazia perto detrás de mirantes e palmeiras embrulhado em seu barulho azul E as tardes sonoras rolavam sobre nossos telhados sobre nossas vidas. Do meu quarto ouvia o século XX farfalhando nas árvores lá fora. Depois me suspenderam pela gola me esfregaram na lama me chutaram os colhões e me soltaram zonzo em plena capital do país sem ter sequer uma arma na mão.  

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

MORRE O POETA FERREIRA GULLAR

Fonte: Google

MORRE O POETA FERREIRA GULLAR

Cunha e Silva Filho

              Ninguém morre sozinho. Quem  morre mata também em parte  o coração dos que ficam. Este ano, pra mim,  foi um dos mais  sombrios, um dos mais doloridos, um dos mais sofridos. Agora mesmo, meu filho Francisco Neto, muito entristecido, consternado, me telefonou informando-me do falecimento  do imortal  poeta  nascido em São Luís, Maranhão. Agora mesmo também  me recordo do ano de 1968, ano em que  faleceu  outro grande poeta brasileiro, Manuel Bandeira (1886-1968). Este ano de 1968 está ainda associado à data do nascimento do meu filho mais velho, acima  referido.

           As minhas  primeiras  lembranças de Ferreira Gullar (1930-2016) remontam  aos anos, sobretudo,   de 1964 e 1965. Morava, então,  na CESB (Casa do Estudante Secundário do Brasil), situada no centro velho   do Rio de Janeiro.Sobre esse “lar querido,” já me reportei no meu livro de memórias,  Apenas memórias (2016). Contudo,  o que me prende a esta coluna de hoje  é o desaparecimento  do poeta  Gullar, o qual se mistura às primeiras  notícias de que tive naquele tempo  do poeta  do “Poema sujo”(1976). Meus colegas e amigos  moradores  da CESB me relatavam  a presença de Gullar  em palestras  e em  envolvimentos  políticos  contra a  ditadura  militar  recém-instalada  no país. Falava-se muito da militância ideológica   de Gullar  e falava-se também de sua poesia ainda não tão conhecida  por muita gente. Uma vez,  me convidaram para uma palestra de Gullar.Só algum tempo depois,  por volta do meu  tempo de universitário de Letras,  começava a me interessar   pela  poesia de Gullar.

       As ideias vão fluindo à medida que progredimos  no tempo  presente da escrita e me vem á tona  aquele  dia em que Gullar foi  fazer uma palestra  na Faculdade de Letras da UFRJ. O auditório estava apinhado. Durante a palestra,  Gullar leu  o poema “Filhos,”  uma cópia do qual foi  distribuída aos   presentes. Esse poema comento  num dos capítulos  do meu  citado  livro de memórias.

       É um  poema  enternecedor e ao mesmo  tempo    uma reflexão densa sobre o fluir do tempo  relacionado  com   o crescimento  dos filhos  do  poeta e,  por extensão,  de todos  os filhos  de pais  que  vivenciaram  situações  semelhantes. Veja-se a pungência, neste  poema, nos seguintes versos “(...) Só então/ me perguntei/por que/não lhes dera/maior atenção/se há tantos/e tantos ano/não os via crianças/já que//agora/estão os três/com mais/de trinta anos”. O poema em foco  foi dedicado ao filho  Marcos.O meu capítulo de memórias foi dedicado aos meus filhos Francisco Neto e Alexandre.

      A personalidade do poeta Ferreira  Gullar, nos últimos anos, conheceu  o prestígio de que   gozava  sobretudo como  poeta, de tal sorte  que o seu nome  está indissoluvelmente vinculado  às vanguardas da poesia brasileira,  primeiro  como   um  voz  que,por suas característica renovadoras temática e formalmente, prenunciava, com o segundo livro  Luta corporal (1954), que lhe granjeou  renome, o movimento do  Concretismo  de 1956 e, em seguida,  como  um  dos  introdutores da poesia  neo-concretista (1959) que foi a sua fase  de não aderência ostensiva  mais  ao Concretismo. Sua obra  de estreia em poesia chama-se  Um pouco acima do chão (1949).

    A poesia neo-concreta, para simplificar a sua  complexidade teórica,   voltava ao verso e ao poema   preocupado  com a subjetividade, com o discursivo, com a memória  pessoal,  o valor  atribuído ao verso  popular, ao cordel, não mais  preso  a elementos  objectualistas  do radicalismo  verbi-voco-visual concretista  do grupo  de São Paulo tendo à frente, entre   outros,  Haroldo de Campos(1929-2003),  Augusto de Campos e Décio Pignatari (1927-2012)

     A alta poesia, porejada de humanidade, suplantaria  não só  a poesia  passadista, mas os formalismos  derivados de uma  época sob  o signo da cibernética. Seria, grosso modo,   aquele lirismo  por que tanto  se batia  José Guilherme Merquior (1941-.1991) e que ele via estar presente na poesia de Manuel Bandeira.

   Ferreira Gullar ficará sempre lembrando  poeticamente pelo  livro Poema sujo que causou   repercussão  na história  de sua  produção  poética. Ficará também  marcado  pelo  papel saliente que teve nas pesquisas  sobre  o campo das artes  plásticas, do ensaísmo, com obras como Vanguarda e subdesenvolvimento (1969) e Cultura posta em questão:vanguarda e subdesenvolvimento (2002). Ficara  ainda conhecido por seus trabalhos no teatro, na televisão, no cinema, na literatura infantil.

    E, finalmente, por sua incansável produção  de cronista, gênero que me inspirou este meu artigo, principalmente a partir de sua   coluna  iniciada e terminada na Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, aos domingos que,  por sinal,  tornou-se  para mim  leitura obrigatória acompanhando, desde o  início, os   seus  inúmeros artigos  repartindo-se   seus temas entre o  retrato do quotidiano  da vida,  com forte teor  poético,   os assuntos  sobre artes e poesia, quase beirando a ensaio  e aqueles dedicados a análises  da política  brasileira nos últimos  anos, com algumas incursões na  política mundial.

    Gullar sobre  este último  tópico foi  um  corajoso, independente e acerbo  crítico  do lulopetismo, da podridão de nossa política, sobretudo  a partir dos escândalos do Mensalão do Petrolão do desastroso governo Dilma, das revelações  feitas pela Operação Lava-Jato  e de outros  males do Brasil e da política  mundial. 

    Na juventude tendo sido  combatente da ditadura  militar, foi preso político viveu, por algum  tempo, exilado na Argentina,  no Chile e  na Rússia mas,  como  todo  homem sensato e evoluído,  embora tendo   pertencido ao  Partido  Comunista  Brasileiro. Com  o tempo foi  amadurecendo  sua visão  política e, nos últimos anos,    revelou-se  um  intelectual politicamente   ativo na imprensa, na crônica,   verberando   os erros  da comunismo,  da esquerda, os erros e  defeitos da direita,  das falhas  do capitalismo e  a constatação de tudo isso o levou a uma posição  equilibrada, conscienciosa,  de ver que tanto  a esquerda quanto a direita  possuem  deploráveis  falhas quanto praticadas com radicalismos.

    Penso que a sua  visão  política    atual  seria a   de um   escritor a quem  os regimes  de governos  só  valeriam a pena se considerassem a realidade social, econômica, histórica, política, libertando-se do fanatismo cego,  do farisaísmo e da hipocrisia  de um sociedade  com pretensões à   igualdade  completa  que só  caberia   nos sonhos malogrados da esquerda.    

   Tampouco para ele haveria  mais justiça  com uma direita  que tivesse somente por referência os lucros exorbitantes  e nefastos do capitalismo que, por assim dizer, provoca uma forma  de esquecimento  dos valores  humanos  e da liberdade   de expressão  em todos os setores da vida em sociedade. Sua primeira  crônica,  salvo engano meu,  tem o título de “Resmungos.” Sua penúltima crônica  publicada no  domingo  passado, na Folha de São Paulo,  com o título  em tom  profético, foi  “Trump: après moi, lei déluge.”  Sua última crônica (penso que seja a última que é publicada naquele jornal,  saída hoje, 4 de dezembro, tem por título “Solidariedade, ”  uma  crônica que reafirma as suas convicções  expostas na penúltima, quer dizer,  desaprova  a pretensão utópica do comunismo   como forma  de  melhorar a vida  das pessoas e torná-las  iguais e o capitalismo que espolia  as pessoas  e as torna mais  desiguais.

    Entretanto,   há um  meio termo  que,segundo ele,  evitaria as falhas  dos dois sistemas  de governo: um capitalismo  mais justo,  que saiba reconhecer  o bem-estar  da sociedade em suas diferenças  de aptidões  e de  possibilidades. O erro  grave é a procura do lucro  encravado no egoísmo  de uns poucos ou de uma só pessoa.


      É possível ser rico sem ser  egoísta e Gullar cita o nome de Bill Gates que deixou  a direção de seus negócios e passou a dirigir uma “entidade  beneficente.” Pode-se dizer que, nessa última crônica da sua coluna no caderno Ilustrada,  é um gran finale  de  sua  alta  capacidade  de síntese e acuidade   de escritor, de jornalista, de roteirista de televisão, de poeta, de cronista, de crítico das artes e de um ser humano  com  o pé no chão. Não sendo religioso, ainda assim, termino este texto de homenagem pedindo a  Deus o abençoe pela sua  existência  entre nós que amamos  poesia  e a literatura em geral.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Seleta Piauiense - J. Ribamar Matos

Fonte: Google

Oeiras

J. Ribamar Matos (1946 – 1974)

Do fundo do meu tempo encarcerado
emerge intacta a vida inconsequente
do menino de rua – impenitente
ladrão de umbus de Santa do Condado;

o Sobrado, com grande catavento,
Lembrava estórias de lhe meter medo:
– estórias de fantasmas, cujo enredo
deixava-o todo num estremecimento;

 as ruas tortuosas, muito escuras,
com seus imensos casarões vetustos
e o cemitério, onde a tremer de sustos,
via almas brancas pelas sepulturas;

e a torre solitária da Matriz
erguida para o céu (como se fosse
a presença de Deus, serena e doce,
na alma do povo simples e feliz);

e o Mocha de água turvas que, perplexo
testemunhou primeira vadiagem
do molecote impúbere, selvagem,
mal despertando pro prazer do sexo;

Igrejas do Rosário e Conceição,
poço do Silva, praça do Mercado,
ruas do Fogo e do Hospital, Condado,
Canela, Barro Alto, Boqueirão,
tudo emerge do fundo da memória
do menino que a vida endureceu...

................................................ 

(Oeiras, meu torrão de amor e glória,
saúda-te o menino que sou eu!)    

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXXI

Fonte: Google

HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXXI

O crime do padre Amaro

Elmar Carvalho

O padre Amaro Nascimento da Silva chegou a Évora no final dos anos 1950. Chegou precedido da fama de sacerdote muito dedicado à Igreja, mas também de sedutor, galã e garanhão. Era educado, e tido pelas mulheres como um belo tipo de homem, alourado, esbelto e de olhos azuis. Tinha quase 1 metro e 80 centímetros de altura. Demorou pouco nas paróquias por onde passara, porquanto, logo que se espalhavam os boatos sobre suas investidas amorosas, pedia remoção para outra.

Na verdade, não eram só investidas suas, porquanto algumas mulheres casadas e moças solteiras tomavam, muitas vezes, a iniciativa de tentar seduzi-lo. Tentar, tentar não é bem o termo exato, porque Amaro se deixava cair nessas ‘tentações’ com notável facilidade. Na penúltima paróquia de que foi titular, desencaminhou muitas senhoras e moças, que se deslumbravam com sua beleza e conversa aliciante, melíflua, quase mefistofélica. Contribuíam para isso a sua ascendência de religioso e confessor, e sem dúvida o “poder” de perdoar pecados, que lhe era atribuído. Assim, o pecado do adultério ou o de fazer sexo com um padre era incontinenti perdoado pelo parceiro.

Consta que ao menos cinco mulheres embucharam nessa paróquia. Com relação às casadas, os meninos foram creditados como sendo dos maridos. Uma das grávidas solteiras, quando teve o rebento, ajuizou um pedido de investigação de paternidade cumulado com pensão alimentícia. Todavia, a carta precatória de citação sempre retornava com o certificado de que ele fora transferido para outra paróquia. Por isso mesmo, o escrivão Artaxerxes, que, apesar de tudo, lhe tinha certa amizade, em virtude das centenas de cervejas e vinho que com ele tomara, em diferentes ocasiões, dizia que ‘padre Amaro só não comeu os sinos da igreja, e assim mesmo por causa do badalo, que atrapalhava’.

Logo ao chegar a Évora, Amaro ostentou toda a sua dedicação à Igreja. Nunca faltava às missas. Seus sermões eram brilhantes, eloquentes, fundamentados em citações extraídas da bíblia ou de textos dos doutores da Igreja, e neles pregava o bem, o bom e o belo, que ele dizia consistir numa vida virtuosa, conquanto, como já deve ter ficado implícito, nem sempre seguisse o que ele mesmo exortava. Revitalizou a Liga das Senhoras Católicas e os Encontros de Casais e de Jovens, bem como as obras sociais e de caridade.

Em estrito senso, não se lhe podia atribuir a pecha de não ser um sacerdote virtuoso e gestor dinâmico de sua paróquia. Tornou-se evidente, contudo, que não observava o voto de castidade. Por causa da Liga das Senhoras Católicas e das obras de caridade, Amaro vivia sempre rodeado de mulheres, fosse na Casa Paroquial, na sacristia, na secretaria ou no confessionário. O certo é que, não demorou muitos meses, começaram a surgir comentários sobre as aventuras amorosas do vigário.

Entre esses falatórios, surgiu o rumor de que Amaro estava tendo um caso com dona Selma, casada com o prefeito e médico Bartolomeu Dantas Fontenele, de tradicional estirpe eborense. Não se sabe como, mas o fato é que esses murmúrios chegaram ao conhecimento do marido, que não fez alarde, demonstrando o mais perfeito sangue frio. Era apaixonado pela mulher, por quem se enamorou desde a adolescência. Era ela considerada uma das mais lindas mulheres de Évora.

Selma tinha um retardo mental moderado. Portanto, seu comportamento e percepção eram correspondentes ao de uma pessoa bem mais jovem. Por isso o marido lhe dispensava os cuidados de marido e pai. Segundo se comentou na cidade, Bartolomeu foi à capital, onde contratou os serviços do mais respeitável e competente detive particular, a quem pediu o máximo sigilo, e lhe recomendou tratasse do assunto apenas com ele.

Um mês e duas semanas depois, o detetive lhe entregou um relatório circunstanciado, com datas, horários e locais dos encontros, acompanhado de várias fotografias, em que Amaro e Selma eram vistos aos beijos e abraços, além de uma fita de áudio, em que ambos trocavam juras de amor. Como ele conseguiu tirar essas fotos e gravar os diálogos amorosos é um mistério, pois esses encontros de amores proibidos são sempre realizados em lugares fechados e recônditos. Contudo, ele tinha vários cursos profissionais, muitos anos de experiência e os mais modernos e eficientes aparelhos eletrônicos para o bom desempenho de sua profissão.

Meses depois, tarde da noite, quando Amaro voltava da casa de uma de suas amantes, cujo marido viajara a serviço de sua repartição, foi rendido por dois homens encapuzados, que lhe apontaram revólveres. O padre, na tentativa de se justificar e de comover seus captores, disse que vinha de bairro distante, onde fora ministrar a extrema-unção em um moribundo. Foi colocado num jipe sem placa, e levado para fazenda longínqua, situada no meio de denso babaçual. Chegaram por volta de uma e meia da madrugada. O padre estava apavorado e estrebuchava muito, e implorou para não morrer. Recebeu a imediata garantia de que não seria morto. Aplicaram-lhe um sedativo e em seguida a anestesia.

Às seis horas da manhã, já desperto, mas muito debilitado e zonzo, foi libertado numa estrada vicinal, perto da BR, que na época ainda era de piçarra. Ao ficar só, subiu a batina, que segurou entre os dentes, e desceu a calça. Estarrecido, mas não tanto, constatou então o que já imaginava: fora castrado. A cirurgia fora perfeita e indolor, e devidamente suturada. Dizem que foi realizada pelo Dr. Bartolomeu, exímio cirurgião, com o auxílio de uma enfermeira de sua absoluta confiança.

Na rodovia o padre Amaro tomou um ônibus com destino à capital, sede da Diocese a que pertencia. Confessou-se ao seu bispo, contando o que lhe acontecera. Disse que aceitava a sua emasculação como uma bênção e um merecido castigo; que a sua exacerbada concupiscência o levara muitas vezes a não respeitar o voto de castidade, e a violar a inocência de mulheres ingênuas e até de incapazes e menores.

Pediu a dom Augusto para ser transferido para a mais longínqua e pobre paróquia do bispado. Tornou-se o mais virtuoso sacerdote dos últimos anos. Uns vinte anos depois, um tanto gordo, morreu em estado de santidade. Atribuíram-lhe alguns milagres, e a sua beatificação foi requerida e se encontra em tramitação no Vaticano.


Quanto a Bartolomeu, continuou casado com Selma, com quem teve uma prole numerosa e proeminente de médicos, advogados, engenheiros e um padre. Comentava-se, a boca pequena, que o padre era filho de padre.”