O
ENIGMA DA SEREIA
Elmar Carvalho
I
Estava
com minha mulher, à orla da praia de minha pequena e paradisíaca
ilha, que meu avô havia comprado muitas décadas atrás, quando vi,
ao longe, vários vultos virem em nossa direção. Quando se
aproximaram, verifiquei que eram várias mulheres, de longas e louras
cabeleiras, cavalgando golfinhos e enormes hipocampos. Como se fosse
um séquito, vários tipos de peixes, das mais diferentes formas e
tamanhos, as acompanhavam. Achei estranho, mas raciocinei que
poderiam ser modernos equipamentos náuticos, de alta tecnologia,
provavelmente fazendo parte da filmagem de uma superprodução
cinematográfica.
Minha
loura e alva mulher, tão loura e tão alva quanto as “amazonas”
que cavalgavam os golfinhos e os hipocampos, logo quis entrar no mar.
Tive receio de algum acidente ou fato estranho, e pedi que ela não
fosse para a água. Mas ela, com muita determinação, disse que
iria. Eu sabia, de há muito, que ela era exímia nadadora, tanto
pela perfeição rítmica de seus movimentos como pela velocidade que
imprimia ao deslocamento.
Vi-a
afastar-se rapidamente em direção ao “cardume” de mulheres e
peixes. Para minha surpresa, a vi montar, sem nenhuma dificuldade, um
hipocampo, e fazer evoluções perfeitas, em giros e rodopios
alucinantes, e empreender encantadores saltos acrobáticos em seu
enorme cavalo-marinho. Chegou a ficar graciosamente em pé sobre o
dorso de sua montaria. Temi que não mais voltasse; que fosse algum
ser encantado, que desejasse retornar aos páramos de onde viera.
II
Em
minha angústia e temor, recordei como a conhecera, sete anos atrás.
Estava eu nu e sozinho, nadando naquelas mesmas águas onde ela
nadara, quando de repente a vi surgir das águas, e aproximar-se de
mim. Olhava-me intensamente, com admiração e fascínio. Devo dizer
que ela me envolvia em sortilégio e magia, tal era a beleza de seu
rosto angelical, de olhos cambiantes, verdes-azulados como as águas
onde estávamos. Convidei-a a sair, e nadei em direção à praia.
Ela me seguiu com agilidade, quase como se não fizesse esforço
algum. Ao sairmos, percebi que ela estava completamente nua, o que
mais me surpreendeu, pois eu não podia imaginar de onde ela viera,
nem onde deixara suas vestes.
Notei
que ela me observava com muita atenção, principalmente os meus
gestos e movimentos, como se estivesse em processo de aprendizagem.
Contudo, não me respondia, e parecia não entender o que eu falava.
Parecia agir guiada pelo instinto e pela observação de meus gestos
indicativos e ações. Dei-lhe a toalha, que ela segurou com as suas
belas mãos, mas que não usou, como se não soubesse o que fazer com
aquele objeto.
Tomei
a toalha de volta, e me enxuguei, de modo que ela visse como se
deveria proceder. Quando a devolvi, ela então enxugou-se, tal como
eu fizera, mas como se estivesse imitando os meus gestos em mímica
fidedigna. Após vestir-me, convidei-a a ir para minha casa,
apontando em sua direção. Ao começar a caminhar, ela me seguiu.
Parei, olhei a sua nudez magnífica, a diáfana e ruiva penugem
pubiana, o contorno e a textura dos seios, de beleza invulgar, e a
cobri com a toalha, para que ela não constrangesse as pessoas da
casa.
Eu
era solteiro, e estava quase só na casa, em companhia apenas de duas
serviçais e de um empregado e sua mulher, já que eu mesmo pilotava
o helicóptero que me trouxera, assim como o barco que utilizava para
fazer compras na cidadezinha mais próxima. Como eu notasse que ela
parecia não saber utilizar os objetos e equipamentos da casa, mas
apenas me imitava quando eu o fazia, recomendei às empregadas que a
instruíssem a esse respeito, inclusive quanto ao uso de aparelhos
eletrônicos. Tendo uma das empregadas a visto urinar ao fundo da
casa, ensinou-a a usar o banheiro de forma adequada. A mulher do
caseiro, que tinha um corpo mais ou menos do seu tamanho, cedeu-lhe
uma saia e uma blusa, que ela vestiu um tanto a contragosto.
III
Não
irei, nesta narrativa simples, despretensiosa, sem enfeites e sem
literatice, contar minudências, como se fosse um romance. Saltarei
esses detalhes, e apenas contarei o que achar mais relevante e
essencial. Senti que ela gostava de estar perto de mim, sempre a me
olhar, como se estivesse enfeitiçada, mas ao mesmo tempo me
estudando e me admirando. Quando a toquei, ela me correspondeu;
acariciei-a, e ela me acariciou. Tomei suas mãos, e as afaguei.
Quando as soltei, ela me tomou as minhas, fazendo comigo o que eu
fizera com ela.
Dormimos
juntos. Descobri que ela era virgem. Foi uma noite intensa, em que
ela aprendia com rapidez os jogos amorosos que eu lhe ensinava. Foram
momentos de amor, paixão, ternura e encantamento. Ela era uma fêmea
ardente e amorosa, em que as pegadas fortes, quase violentas, eram
alternadas com as mais delicadas, ternas, suaves carícias. Ao
acordar, com a luz suave da manhã, percebi que ela me olhava, com
admiração e êxtase, quase diria beatitude, como se nunca tivesse
visto antes um corpo masculino.
Pude
descobrir, nos dias seguintes, que ela tinha uma inteligência
excepcional. Rapidamente, começou a pronunciar as primeiras
palavras, geralmente substantivos a designar o que ela queria. Mas
logo começou a articular frases, embora com erros de concordância
verbal e nominal. Quando me viu a ler um livro, veio espiar, por trás
de mim, o que eu olhava com tanta atenção. Retirou um exemplar da
estante, e imitou o que eu estava fazendo. Dei-lhe um álbum de
gravuras, e ela lhe folheou atentamente as páginas, passando as
folhas sem pressa, concentrada no que fazia. Quando aprendeu a falar,
pediu-me que lhe ensinasse a ler. Segui o mesmo método com que
aprendi as primeiras letras. Em pouco tempo, ela já conseguia ler,
sem nenhum embaraço.
Nunca
me falou de seu passado, nem de como chegara a minha ilha. Não lhe
indaguei a esse respeito, até para não sofrer com alguma coisa que
ela porventura me revelasse. Mesmo quando ela passou a ouvir música
nos aparelhos de som e de dvd, nunca tentou cantar. Observei que ela
só comia, de preferência, vegetais e peixes. Percebi que a água
era o seu elemento predileto, fosse a da banheira, a da piscina, ou a
do mar, aonde ela ia com muita frequência.
Embora
continuasse a me amar como antes, parecia ter uma indisfarçável
nostalgia por algo que aparentemente havia perdido, que deixara para
trás, escondido em seu passado de brumas e silêncio, a que nunca
fazia referência. Um dia, na piscina, ela mergulhou longamente, até
que eu, quase desesperado, a retirei da água, temendo que ela já
estivesse quase sufocada. Mas ela estava com a respiração
inalterada, como se nada tivesse feito de extraordinário. Todavia,
não mais repetiu o que fizera, talvez para não me causar
preocupação, ou, quem sabe, para nada revelar de sua misteriosa
vida pretérita.
Como
ela não tivesse documentos e não demonstrasse a menor vontade de
deixar a ilha, resolvi administrar meus negócios quase
exclusivamente através da internet, como aliás já vinha fazendo
nos últimos tempos. Raramente eu me deslocava à sede de minhas
empresas. Tinha bons e confiáveis executivos, regiamente pagos,
inclusive com participação nos lucros, de modo que não tive
necessidade de tentar regularizar a situação documental daquela que
se tornou minha amada companheira, para com ela viver na vida louca
da chamada civilização.
IV
Ela
começou a ler infatigavelmente, sempre que não estava a nadar.
Tornou-se portadora de uma erudição invejável, pois tinha uma
inteligência e uma memória prodigiosas. Leu tudo que eu tinha sobre
a vida de Jesus. Pediu-me que encomendasse outros livros sobre
Cristo. Releu várias vezes os Evangelhos e suas notas de exegese. Um
dia, disse-me que se convertera em cristã. Pediu-me para ser chamada
apenas de Maria. Orava e jejuava. Tornou-se mais amável com as
empregadas e com o caseiro. Recomendou-me fizesse caridade, através
de doações a certas entidades filantrópicas. Fiz-lhe a vontade,
para que ela ficasse contente, e também porque o acúmulo de metais
já não me interessava tanto.
Passados
mais de seis anos de vida em comum, a nossa felicidade parecia
completa, exceto pela falta de filhos, já que ela nunca engravidara.
Fiz exames nas melhores clínicas, mas nada havia de errado comigo,
segundo os médicos e os exames. Logo, o problema só poderia ser
dela. Todavia, pela falta de documentos dela, nunca a levei para ser
submetida a exames. Também, devo confessar, temia que algo de
estranho fosse descoberto quando da análise de seu sangue.
Temia,
sobretudo, que o seu DNA não fosse humano, em razão das pequenas
coisas estranhas que eu observara, ao longo de nossa vida em comum,
mormente o modo como ela surgira, pela primeira vez, diante de mim.
Sempre procurei encontrar uma explicação lógica, racional, no que
isso pudesse ser aplicado a um ser humano. Outra coisa me intrigava.
Corridos tantos anos, o tempo parecia não passar para ela. Ao menos
nenhuma marca deixava em sua epiderme, que permanecia fresca, viçosa,
rosada, como quando eu a vira pela primeira vez. Nenhuma celulite,
nenhuma ruga, nenhuma gordura, nada lhe empanava a vertiginosa
beleza, que permanecia inalterável. Também as longas exposições
ao sol não lhe prejudicavam a epiderme, nem lhe alteravam a cor.
Ou
o tempo não a envelhecia, ou a envelhecia muito lentamente. Comecei
a achar que ela seria uma sereia. Li tudo que havia sobre esses seres
mitológicos e marítimos. Alguns livros diziam que eram metade
pássaro e metade mulher; outros explicavam que, na verdade, eram
mulher da cintura para cima e peixe da cintura para baixo. Mas ela
era toda mulher, e tinha duas belíssimas pernas, que eu não me
cansava de admirar. Não tinha plumagem nem escamas. Sequer entoava
canções, embora sua voz fosse bela e me soasse como uma música
suave.
Mas
nunca a ouvi cantar. E isso é o que mais me intrigava, pois ela
adorava ouvir uma bela canção. Havia lendas que asseguravam que as
sereias eram maléficas, e levavam perdição aos homens, através
de seu canto encantatório. Outras diziam que elas não tinham alma,
e que se algum homem se acasalasse com alguma delas também perderia
a sua, exceto se repudiasse a amante inumana. Porém eu não poderia
repudiar uma criatura a quem amava, por quem eu daria a vida e a
alma, considerada imortal. Li que algumas delas, à semelhança do
boto amazônico, se apaixonavam por seres humanos, e se desgarravam
de seu bando, à procura desse amor proibido, que as outras tentavam
impedir.
V
Esperei
longas horas que Maria voltasse do encontro com as outras criaturas,
que em tudo aparentavam ser mulheres, de longas cabeleiras de ouro,
reverberantes à luz do sol. Seriam sereias ou não seriam, eis o
enigma que não desejo jamais decifrar. Esperei longamente, com
angústia, com ânsia, com aflição, temendo que ela não mais
retornasse, até que adormeci de cansaço e de tanto sofrimento.
Acordei em meio a terrível pesadelo, em que ela, juntamente com as
outras figuras encantadas de sua tribo, mergulhava com destino às
profundezas abissais, em busca de seu castelo de coral, com seus
jardins de algas, anêmonas e outras plantas marinhas, para nunca
mais retornar.
Quando
acordei, ela estava a meu lado. Nada me disse, e eu nada lhe
perguntei, talvez porque temesse a resposta. Preferi acreditar que
tudo fora apenas um sonho, ou pesadelo, mas sei que não foi. Agora
terei que conviver com o medo e a angústia de que algum dia ela se
vá para sempre, atendendo ao chamado do canto de suas irmãs, ao
canto que não consegui escutar.
Que pena que a história "chegou ao fim". Cheguei a torcer para que na última parte deste post algo, deveras, indicasse que a história continuaria nos "próximos capitulos".
ResponderExcluirComo a minha admiração pelo talento do nobre vate já não é mais novidade, só me resta ratificá-la. Certamente este conto tem o poder de envolver o leitor com tamanha intensidade que em alguns momentos foi como se ao invés de estar lendo eu estivesse espectando por trás de um coqueiro da "sua ilha", ou ainda como se eu fosse um daqueles golfinhos que testemunharam o enredo desta história surreal. Penso que se as escolas usassem textos tão interessantes como este, o apreço pela leitura seria uma consequência natural.
Caro prof. Nelson Rios,
ResponderExcluirante seu comentário, sinto-me estimulado a perseverar na solitária tarefa de continuar escrevendo. Obrigado.