domingo, 3 de junho de 2012

O ENIGMA DA SEREIA


O ENIGMA DA SEREIA

Elmar Carvalho

I

Estava com minha mulher, à orla da praia de minha pequena e paradisíaca ilha, que meu avô havia comprado muitas décadas atrás, quando vi, ao longe, vários vultos virem em nossa direção. Quando se aproximaram, verifiquei que eram várias mulheres, de longas e louras cabeleiras, cavalgando golfinhos e enormes hipocampos. Como se fosse um séquito, vários tipos de peixes, das mais diferentes formas e tamanhos, as acompanhavam. Achei estranho, mas raciocinei que poderiam ser modernos equipamentos náuticos, de alta tecnologia, provavelmente fazendo parte da filmagem de uma superprodução cinematográfica.

Minha loura e alva mulher, tão loura e tão alva quanto as “amazonas” que cavalgavam os golfinhos e os hipocampos, logo quis entrar no mar. Tive receio de algum acidente ou fato estranho, e pedi que ela não fosse para a água. Mas ela, com muita determinação, disse que iria. Eu sabia, de há muito, que ela era exímia nadadora, tanto pela perfeição rítmica de seus movimentos como pela velocidade que imprimia ao deslocamento.

Vi-a afastar-se rapidamente em direção ao “cardume” de mulheres e peixes. Para minha surpresa, a vi montar, sem nenhuma dificuldade, um hipocampo, e fazer evoluções perfeitas, em giros e rodopios alucinantes, e empreender encantadores saltos acrobáticos em seu enorme cavalo-marinho. Chegou a ficar graciosamente em pé sobre o dorso de sua montaria. Temi que não mais voltasse; que fosse algum ser encantado, que desejasse retornar aos páramos de onde viera.

II

Em minha angústia e temor, recordei como a conhecera, sete anos atrás. Estava eu nu e sozinho, nadando naquelas mesmas águas onde ela nadara, quando de repente a vi surgir das águas, e aproximar-se de mim. Olhava-me intensamente, com admiração e fascínio. Devo dizer que ela me envolvia em sortilégio e magia, tal era a beleza de seu rosto angelical, de olhos cambiantes, verdes-azulados como as águas onde estávamos. Convidei-a a sair, e nadei em direção à praia. Ela me seguiu com agilidade, quase como se não fizesse esforço algum. Ao sairmos, percebi que ela estava completamente nua, o que mais me surpreendeu, pois eu não podia imaginar de onde ela viera, nem onde deixara suas vestes.

Notei que ela me observava com muita atenção, principalmente os meus gestos e movimentos, como se estivesse em processo de aprendizagem. Contudo, não me respondia, e parecia não entender o que eu falava. Parecia agir guiada pelo instinto e pela observação de meus gestos indicativos e ações. Dei-lhe a toalha, que ela segurou com as suas belas mãos, mas que não usou, como se não soubesse o que fazer com aquele objeto.

Tomei a toalha de volta, e me enxuguei, de modo que ela visse como se deveria proceder. Quando a devolvi, ela então enxugou-se, tal como eu fizera, mas como se estivesse imitando os meus gestos em mímica fidedigna. Após vestir-me, convidei-a a ir para minha casa, apontando em sua direção. Ao começar a caminhar, ela me seguiu. Parei, olhei a sua nudez magnífica, a diáfana e ruiva penugem pubiana, o contorno e a textura dos seios, de beleza invulgar, e a cobri com a toalha, para que ela não constrangesse as pessoas da casa.

Eu era solteiro, e estava quase só na casa, em companhia apenas de duas serviçais e de um empregado e sua mulher, já que eu mesmo pilotava o helicóptero que me trouxera, assim como o barco que utilizava para fazer compras na cidadezinha mais próxima. Como eu notasse que ela parecia não saber utilizar os objetos e equipamentos da casa, mas apenas me imitava quando eu o fazia, recomendei às empregadas que a instruíssem a esse respeito, inclusive quanto ao uso de aparelhos eletrônicos. Tendo uma das empregadas a visto urinar ao fundo da casa, ensinou-a a usar o banheiro de forma adequada. A mulher do caseiro, que tinha um corpo mais ou menos do seu tamanho, cedeu-lhe uma saia e uma blusa, que ela vestiu um tanto a contragosto.

III

Não irei, nesta narrativa simples, despretensiosa, sem enfeites e sem literatice, contar minudências, como se fosse um romance. Saltarei esses detalhes, e apenas contarei o que achar mais relevante e essencial. Senti que ela gostava de estar perto de mim, sempre a me olhar, como se estivesse enfeitiçada, mas ao mesmo tempo me estudando e me admirando. Quando a toquei, ela me correspondeu; acariciei-a, e ela me acariciou. Tomei suas mãos, e as afaguei. Quando as soltei, ela me tomou as minhas, fazendo comigo o que eu fizera com ela.

Dormimos juntos. Descobri que ela era virgem. Foi uma noite intensa, em que ela aprendia com rapidez os jogos amorosos que eu lhe ensinava. Foram momentos de amor, paixão, ternura e encantamento. Ela era uma fêmea ardente e amorosa, em que as pegadas fortes, quase violentas, eram alternadas com as mais delicadas, ternas, suaves carícias. Ao acordar, com a luz suave da manhã, percebi que ela me olhava, com admiração e êxtase, quase diria beatitude, como se nunca tivesse visto antes um corpo masculino.

Pude descobrir, nos dias seguintes, que ela tinha uma inteligência excepcional. Rapidamente, começou a pronunciar as primeiras palavras, geralmente substantivos a designar o que ela queria. Mas logo começou a articular frases, embora com erros de concordância verbal e nominal. Quando me viu a ler um livro, veio espiar, por trás de mim, o que eu olhava com tanta atenção. Retirou um exemplar da estante, e imitou o que eu estava fazendo. Dei-lhe um álbum de gravuras, e ela lhe folheou atentamente as páginas, passando as folhas sem pressa, concentrada no que fazia. Quando aprendeu a falar, pediu-me que lhe ensinasse a ler. Segui o mesmo método com que aprendi as primeiras letras. Em pouco tempo, ela já conseguia ler, sem nenhum embaraço.

Nunca me falou de seu passado, nem de como chegara a minha ilha. Não lhe indaguei a esse respeito, até para não sofrer com alguma coisa que ela porventura me revelasse. Mesmo quando ela passou a ouvir música nos aparelhos de som e de dvd, nunca tentou cantar. Observei que ela só comia, de preferência, vegetais e peixes. Percebi que a água era o seu elemento predileto, fosse a da banheira, a da piscina, ou a do mar, aonde ela ia com muita frequência.

Embora continuasse a me amar como antes, parecia ter uma indisfarçável nostalgia por algo que aparentemente havia perdido, que deixara para trás, escondido em seu passado de brumas e silêncio, a que nunca fazia referência. Um dia, na piscina, ela mergulhou longamente, até que eu, quase desesperado, a retirei da água, temendo que ela já estivesse quase sufocada. Mas ela estava com a respiração inalterada, como se nada tivesse feito de extraordinário. Todavia, não mais repetiu o que fizera, talvez para não me causar preocupação, ou, quem sabe, para nada revelar de sua misteriosa vida pretérita.

Como ela não tivesse documentos e não demonstrasse a menor vontade de deixar a ilha, resolvi administrar meus negócios quase exclusivamente através da internet, como aliás já vinha fazendo nos últimos tempos. Raramente eu me deslocava à sede de minhas empresas. Tinha bons e confiáveis executivos, regiamente pagos, inclusive com participação nos lucros, de modo que não tive necessidade de tentar regularizar a situação documental daquela que se tornou minha amada companheira, para com ela viver na vida louca da chamada civilização.

IV

Ela começou a ler infatigavelmente, sempre que não estava a nadar. Tornou-se portadora de uma erudição invejável, pois tinha uma inteligência e uma memória prodigiosas. Leu tudo que eu tinha sobre a vida de Jesus. Pediu-me que encomendasse outros livros sobre Cristo. Releu várias vezes os Evangelhos e suas notas de exegese. Um dia, disse-me que se convertera em cristã. Pediu-me para ser chamada apenas de Maria. Orava e jejuava. Tornou-se mais amável com as empregadas e com o caseiro. Recomendou-me fizesse caridade, através de doações a certas entidades filantrópicas. Fiz-lhe a vontade, para que ela ficasse contente, e também porque o acúmulo de metais já não me interessava tanto.

Passados mais de seis anos de vida em comum, a nossa felicidade parecia completa, exceto pela falta de filhos, já que ela nunca engravidara. Fiz exames nas melhores clínicas, mas nada havia de errado comigo, segundo os médicos e os exames. Logo, o problema só poderia ser dela. Todavia, pela falta de documentos dela, nunca a levei para ser submetida a exames. Também, devo confessar, temia que algo de estranho fosse descoberto quando da análise de seu sangue.

Temia, sobretudo, que o seu DNA não fosse humano, em razão das pequenas coisas estranhas que eu observara, ao longo de nossa vida em comum, mormente o modo como ela surgira, pela primeira vez, diante de mim. Sempre procurei encontrar uma explicação lógica, racional, no que isso pudesse ser aplicado a um ser humano. Outra coisa me intrigava. Corridos tantos anos, o tempo parecia não passar para ela. Ao menos nenhuma marca deixava em sua epiderme, que permanecia fresca, viçosa, rosada, como quando eu a vira pela primeira vez. Nenhuma celulite, nenhuma ruga, nenhuma gordura, nada lhe empanava a vertiginosa beleza, que permanecia inalterável. Também as longas exposições ao sol não lhe prejudicavam a epiderme, nem lhe alteravam a cor.

Ou o tempo não a envelhecia, ou a envelhecia muito lentamente. Comecei a achar que ela seria uma sereia. Li tudo que havia sobre esses seres mitológicos e marítimos. Alguns livros diziam que eram metade pássaro e metade mulher; outros explicavam que, na verdade, eram mulher da cintura para cima e peixe da cintura para baixo. Mas ela era toda mulher, e tinha duas belíssimas pernas, que eu não me cansava de admirar. Não tinha plumagem nem escamas. Sequer entoava canções, embora sua voz fosse bela e me soasse como uma música suave.

Mas nunca a ouvi cantar. E isso é o que mais me intrigava, pois ela adorava ouvir uma bela canção. Havia lendas que asseguravam que as sereias eram maléficas, e levavam perdição aos homens, através de seu canto encantatório. Outras diziam que elas não tinham alma, e que se algum homem se acasalasse com alguma delas também perderia a sua, exceto se repudiasse a amante inumana. Porém eu não poderia repudiar uma criatura a quem amava, por quem eu daria a vida e a alma, considerada imortal. Li que algumas delas, à semelhança do boto amazônico, se apaixonavam por seres humanos, e se desgarravam de seu bando, à procura desse amor proibido, que as outras tentavam impedir.

V

Esperei longas horas que Maria voltasse do encontro com as outras criaturas, que em tudo aparentavam ser mulheres, de longas cabeleiras de ouro, reverberantes à luz do sol. Seriam sereias ou não seriam, eis o enigma que não desejo jamais decifrar. Esperei longamente, com angústia, com ânsia, com aflição, temendo que ela não mais retornasse, até que adormeci de cansaço e de tanto sofrimento. Acordei em meio a terrível pesadelo, em que ela, juntamente com as outras figuras encantadas de sua tribo, mergulhava com destino às profundezas abissais, em busca de seu castelo de coral, com seus jardins de algas, anêmonas e outras plantas marinhas, para nunca mais retornar.

Quando acordei, ela estava a meu lado. Nada me disse, e eu nada lhe perguntei, talvez porque temesse a resposta. Preferi acreditar que tudo fora apenas um sonho, ou pesadelo, mas sei que não foi. Agora terei que conviver com o medo e a angústia de que algum dia ela se vá para sempre, atendendo ao chamado do canto de suas irmãs, ao canto que não consegui escutar.

2 comentários:

  1. Que pena que a história "chegou ao fim". Cheguei a torcer para que na última parte deste post algo, deveras, indicasse que a história continuaria nos "próximos capitulos".
    Como a minha admiração pelo talento do nobre vate já não é mais novidade, só me resta ratificá-la. Certamente este conto tem o poder de envolver o leitor com tamanha intensidade que em alguns momentos foi como se ao invés de estar lendo eu estivesse espectando por trás de um coqueiro da "sua ilha", ou ainda como se eu fosse um daqueles golfinhos que testemunharam o enredo desta história surreal. Penso que se as escolas usassem textos tão interessantes como este, o apreço pela leitura seria uma consequência natural.

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  2. Caro prof. Nelson Rios,
    ante seu comentário, sinto-me estimulado a perseverar na solitária tarefa de continuar escrevendo. Obrigado.

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