17 de outubro Diário Incontínuo
OS PODRES PODERES
Elmar Carvalho
Tempos atrás, estava eu na antessala de uma repartição,
quando falamos sobre autoridades, poderes e pretensos poderosos. Uma
pessoa comentou que, no condomínio em que residia, havia um velho,
hoje bastante decrépito, que fora poderoso; exercera cargos
importantes da administração pública estadual, mas hoje mal
conseguia andar, a arrastar a sua velhice cheia de mazelas. Comparou
esse idoso a um leão desdentado, sem garras e sem juba, mas que
outrora aterrorizara os servidores mais humildes.
O advogado – era essa a profissão do nosso
interlocutor – disse que mostrava esse velhinho caquético a seu
jovem filho, e ressaltava quanto ele havia sido poderoso, e agora mal
se sustinha sobre as próprias pernas. Queria ele com isso demonstrar
ao filho o quanto o poder humano pode ser uma falácia, e quanto pode
ser passageiro e fugaz. Uma pessoa que estava no recinto olhou-me, balançando a cabeça, como se estivesse a zombar do que o
cidadão dissera.
Eu, que a conhecia, relativamente bem, sei que ela, não
obstante o seu modo aparentemente suave para com os seus pares e
superiores, era intransigente e rigorosa no trato com os seus
subordinados, pouco dando de si, mas sempre exigente em relação aos
outros. Creio que ela desaprovou o que o causídico comentou, talvez,
exatamente porque o caso alegórico se ajustava a ela como uma
perfeita carapuça.
O povo, em sua sabedoria, pela voz dos ditados, diz que
uma formiga quando quer se perder cria asas. Também afirma que só
se conhece realmente uma pessoa quando lhe é dado muito dinheiro ou
poder; que nessas circunstâncias ela revelará a sua verdadeira
personalidade.
Sem dúvida, poderá uma pessoa, que não seja dotada de
boa formação moral, deixar-se cegar ou embriagar pela riqueza ou
pela autoridade do cargo exercido, descambando para a vaidade, para o
orgulho, para a presunção, muitas vezes vindo a se degenerar em
perfeito Sardanapalo, escravo de orgias e bacanais, ou pequeno
Calígula, a oprimir os subordinados e até o administrado, de que
deveria ser servo, posto que é servidor público.
Eu mesmo conheci uma pessoa que, quando assumia a rédea
de uma repartição pública, nas férias do titular, passava por uma
radical transformação, como se estivesse atuado ou possuído por
outra pessoa ou “entidade”. Seu caminhar se tornava mais firme,
quase como se estivesse a executar uma marcha, a pisar com força, em
verdadeira postura marcial, o assoalho da repartição. Sua voz se
tornava grave, pausada, empostada, como a de um apresentador de
televisão.
Quando consultado, mesmo sobre uma coisa de somenos
importância, assumia um ar severo, de muita gravidade, a cofiar a
barba rasputiniana, como se o caso fosse de altíssima indagação;
olhava para cima, a revirar os olhos, como se estivesse em profunda
meditação, para somente após vários segundos dar a sua resposta.
Se a abordagem fosse um pedido, geralmente a sua resposta era um não,
porquanto esse arremedo de Nero parecia sentir um inconfessável
prazer em contrariar os outros. O mais curioso é que esse pequenino
tirano se dizia adepto do espiritismo. Mas, como quem nasce para
cangalha nunca receberá sela, o reinado desse chefete foi efêmero,
como efêmeras são as gloríolas humanas.
Nunca desejei o poder pelo poder em si mesmo. Desejei
sempre executar um trabalho, prestar um serviço, ser útil a meus
semelhantes. Sempre digo que devemos procurar ser úteis e bons, e
que o verdadeiro servidor público é pago para ser útil e
desenvolver um trabalho, e que ainda, como recompensa e acréscimo, é
pago para isso. Parafraseando o Evangelho, direi que o melhor
servidor público é o que for o servo de todos.
Mesmo porque não lhe é lícito tratar com distinção
ou privilégio algum administrado, já que todos são iguais perante
a lei. É pago para ser útil, para servir, para fazer o bem, na
forma da lei. E os indeferimentos? – há de algum leitor me
questionar. São apenas consequências de ordem legal, revestidas em
prol da sociedade como um todo, e não uma arbitrária maldade do
servidor. Os indeferimentos, quando legais e justos, são um
benefício ao conjunto dos administrados, são uma rejeição aos
pleitos espúrios e ilegítimos.
Elmar Carvalho:
ResponderExcluirBem anotadas as ponderações desta parte do seu Diário Incontínuo que dá lições de dignidade pública e ao mesmo tempo mostra o quanto é deletéria a postura de quem detém algum poder que, para ele, está acima de todos e de tudo.
Mandar, determinar, ordenar subordinados com arrogância e em desobediência às leis administrativas e ao dever de civilidade e urbanidade, é cair no tipo do ancião como o que você cita quando na condição síndico e que para essa função carregava o mandonismo no tempo em que, novo, exercia cargos importantes.
Um homem de valor e de caráter firme não precisa de ser autoritário e vaidoso. A regra de ouro é a simplicidade espontânea, ainda que revestida de poderes, mas exercidos com humanidade e respeito aos subordinados.
Os melhores professores que tive foram pessoas simples e acessíveis. Por isso, nunca os esqueci pela vida afora.
O seu texto é exemplo eficaz de lição de vida, tem sólido substrato ético e valor universal.
Um abraço do amigo,
Cunha e Silva Filho
Concordo plenanamente com o texto do Grande Poeta e também com o comentário acima. Penso também que a simplicidade e a acessibilidade são virtudes e, que arrogancia e mandonismo são vícios e fraquezas (des)humanas presentes naqueles que reconhecem em si mesmos sua fraqueza pela demonstração vulgar de força muitas vezes exprimidas em um não áspero, sabendo-se por certo que esse advérbio não constroi absolutamente nada quando não ponderado. Por outro lado todo pensamento de simplicidade e modéstia sempre esteve presente nos grandes sábios e verdadeiros líderes.
ResponderExcluirFelisardo.
Os comentários dos dois grandes mestres - Cunha e Silva Filho e Felisardo - foram no cerne do que eu pretendi dizer. Geralmente esses chefetes são inseguros, e dissimulam sua fraqueza com a arrogância e com a inacessibilidade.
ResponderExcluirElmar