quarta-feira, 17 de outubro de 2012

OS PODRES PODERES





17 de outubro   Diário Incontínuo

OS PODRES PODERES

Elmar Carvalho



Tempos atrás, estava eu na antessala de uma repartição, quando falamos sobre autoridades, poderes e pretensos poderosos. Uma pessoa comentou que, no condomínio em que residia, havia um velho, hoje bastante decrépito, que fora poderoso; exercera cargos importantes da administração pública estadual, mas hoje mal conseguia andar, a arrastar a sua velhice cheia de mazelas. Comparou esse idoso a um leão desdentado, sem garras e sem juba, mas que outrora aterrorizara os servidores mais humildes.

O advogado – era essa a profissão do nosso interlocutor – disse que mostrava esse velhinho caquético a seu jovem filho, e ressaltava quanto ele havia sido poderoso, e agora mal se sustinha sobre as próprias pernas. Queria ele com isso demonstrar ao filho o quanto o poder humano pode ser uma falácia, e quanto pode ser passageiro e fugaz. Uma pessoa que estava no recinto olhou-me, balançando a cabeça, como se estivesse a zombar do que o cidadão dissera.

Eu, que a conhecia, relativamente bem, sei que ela, não obstante o seu modo aparentemente suave para com os seus pares e superiores, era intransigente e rigorosa no trato com os seus subordinados, pouco dando de si, mas sempre exigente em relação aos outros. Creio que ela desaprovou o que o causídico comentou, talvez, exatamente porque o caso alegórico se ajustava a ela como uma perfeita carapuça.

O povo, em sua sabedoria, pela voz dos ditados, diz que uma formiga quando quer se perder cria asas. Também afirma que só se conhece realmente uma pessoa quando lhe é dado muito dinheiro ou poder; que nessas circunstâncias ela revelará a sua verdadeira personalidade.

Sem dúvida, poderá uma pessoa, que não seja dotada de boa formação moral, deixar-se cegar ou embriagar pela riqueza ou pela autoridade do cargo exercido, descambando para a vaidade, para o orgulho, para a presunção, muitas vezes vindo a se degenerar em perfeito Sardanapalo, escravo de orgias e bacanais, ou pequeno Calígula, a oprimir os subordinados e até o administrado, de que deveria ser servo, posto que é servidor público.

Eu mesmo conheci uma pessoa que, quando assumia a rédea de uma repartição pública, nas férias do titular, passava por uma radical transformação, como se estivesse atuado ou possuído por outra pessoa ou “entidade”. Seu caminhar se tornava mais firme, quase como se estivesse a executar uma marcha, a pisar com força, em verdadeira postura marcial, o assoalho da repartição. Sua voz se tornava grave, pausada, empostada, como a de um apresentador de televisão.

Quando consultado, mesmo sobre uma coisa de somenos importância, assumia um ar severo, de muita gravidade, a cofiar a barba rasputiniana, como se o caso fosse de altíssima indagação; olhava para cima, a revirar os olhos, como se estivesse em profunda meditação, para somente após vários segundos dar a sua resposta. Se a abordagem fosse um pedido, geralmente a sua resposta era um não, porquanto esse arremedo de Nero parecia sentir um inconfessável prazer em contrariar os outros. O mais curioso é que esse pequenino tirano se dizia adepto do espiritismo. Mas, como quem nasce para cangalha nunca receberá sela, o reinado desse chefete foi efêmero, como efêmeras são as gloríolas humanas.

Nunca desejei o poder pelo poder em si mesmo. Desejei sempre executar um trabalho, prestar um serviço, ser útil a meus semelhantes. Sempre digo que devemos procurar ser úteis e bons, e que o verdadeiro servidor público é pago para ser útil e desenvolver um trabalho, e que ainda, como recompensa e acréscimo, é pago para isso. Parafraseando o Evangelho, direi que o melhor servidor público é o que for o servo de todos.

Mesmo porque não lhe é lícito tratar com distinção ou privilégio algum administrado, já que todos são iguais perante a lei. É pago para ser útil, para servir, para fazer o bem, na forma da lei. E os indeferimentos? – há de algum leitor me questionar. São apenas consequências de ordem legal, revestidas em prol da sociedade como um todo, e não uma arbitrária maldade do servidor. Os indeferimentos, quando legais e justos, são um benefício ao conjunto dos administrados, são uma rejeição aos pleitos espúrios e ilegítimos.

3 comentários:

  1. Elmar Carvalho:

    Bem anotadas as ponderações desta parte do seu Diário Incontínuo que dá lições de dignidade pública e ao mesmo tempo mostra o quanto é deletéria a postura de quem detém algum poder que, para ele, está acima de todos e de tudo.
    Mandar, determinar, ordenar subordinados com arrogância e em desobediência às leis administrativas e ao dever de civilidade e urbanidade, é cair no tipo do ancião como o que você cita quando na condição síndico e que para essa função carregava o mandonismo no tempo em que, novo, exercia cargos importantes.
    Um homem de valor e de caráter firme não precisa de ser autoritário e vaidoso. A regra de ouro é a simplicidade espontânea, ainda que revestida de poderes, mas exercidos com humanidade e respeito aos subordinados.
    Os melhores professores que tive foram pessoas simples e acessíveis. Por isso, nunca os esqueci pela vida afora.
    O seu texto é exemplo eficaz de lição de vida, tem sólido substrato ético e valor universal.
    Um abraço do amigo,

    Cunha e Silva Filho

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  2. Concordo plenanamente com o texto do Grande Poeta e também com o comentário acima. Penso também que a simplicidade e a acessibilidade são virtudes e, que arrogancia e mandonismo são vícios e fraquezas (des)humanas presentes naqueles que reconhecem em si mesmos sua fraqueza pela demonstração vulgar de força muitas vezes exprimidas em um não áspero, sabendo-se por certo que esse advérbio não constroi absolutamente nada quando não ponderado. Por outro lado todo pensamento de simplicidade e modéstia sempre esteve presente nos grandes sábios e verdadeiros líderes.

    Felisardo.

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  3. Os comentários dos dois grandes mestres - Cunha e Silva Filho e Felisardo - foram no cerne do que eu pretendi dizer. Geralmente esses chefetes são inseguros, e dissimulam sua fraqueza com a arrogância e com a inacessibilidade.
    Elmar

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