MISÉRIA
MORAL E A CORRUPÇÃO
Jacob
Fortes
Sob
a perplexidade de uns e a indiferença de outros, o Brasil assiste a
ascensão da miséria moral. Quando se fala em miséria a primeira
coisa que acode a mente do leitor é a pobreza extrema, aquela
impedida de transitar de modo indisfarçável por causa do seu
uniforme personalizado. Nesse uniforme, matizado ao estilo de chita
ramada, vê-se a figura da mendicância, da fome, da indigência, do
desabrigo, da criança abandonada, da falta de escola, enfim, todas
as paisagens representativas das lepras e chagas sociais; privilégio
de quem habita o mundo da exclusão. Mas aqui, especificamente, não
me refiro à miséria palpável: que pode ser detectada pela vista ou
pelo tato, mas à impalpável: que conspira contra a reputação,
contra a honra, contra a probidade no ato de agir.
A
propósito, ninguém saberia dizer exatamente quando surgiu a miséria
moral, que o populacho chama de desonra. O que se pode afirmar é que
ela remonta aos primórdios da humanidade. Os anais da história, —
refertos em episódios épicos, líricos, pungentes, repulsivos, —
contabilizam condutas emblemáticas perpetradas sob o ânimo da
desonra. Exemplificativamente é o caso de Jacó, meu xará (livro de
Gênesis), que, mancomunado com Rebeca, sua mãe, engendrou toda
aquela cavilação para fazer-se passar por Esaú, seu irmão, e,
assim, extorquir-lhe a primogenitura. É dessa consciência não
dotada de sentido moral que manuscrevo, melhor, que digito no Word.
Matusalênica
ou contemporânea, o fato é que a desonra encontrou, no Brasil, o
solo fecundo de que precisava para tornar-se viçosa, exuberante. A
ocasião não parece apropriada para uma dissertação acerca das
razões que tornam esse solo tão generoso para com a desonra. Porém,
o escritural histórico/sociológico deste gigante chamado Brasil,
cuja cultura, aliás, está impregnada de influências múltiplas,
alicerça dizer que a desonra não foi fomentada pela cultura
indígena (de fundo ecológico e forte apego à natureza; sem
ambições de armazenamento), nem pela cultura negra (cujo povo teve
sua dignidade solapada por mais de três séculos e, quando liberto,
tornou-se marginalizado). Esse fomento deriva de outros fatores,
sobremaneira da cultura do colonizador. Cultura, diga-se, pautada no
aventureirismo magano dos que vieram não para construir uma nação,
mas para enriquecer na possessão tupiniquim, (extinta “Serra
Pelada”), e, em seguida, retornar ao berço ultramarino,
circunstância que fez nascer o individualismo, o desamor pela coisa
pública, o descompromisso com o bem comum.
Resguardada
a retidão que teima em vigorar na maioria dos brasileiros, vejam-se
essas manchas que prosperam no interno das famílias citadinas.
– Onde
é que eu errei? Perguntam-se os pais, perplexos, quando constatam
que o filho aprendeu o caminho dos presídios. A perplexidade, no
caso, apenas ilude as suas consciências, pois, no fundo, sabem que o
aprendizado do filho teve início no seio da família. Primeiro uma
condutazinha discrepante contra a qual não houve o menor ralho
destinado a corrigir a criança. Depois o que era apenas discrepante
foi-se avultando progressivamente até adquirir contornos de
desregramento. E tudo por quê? Por que havia dentro de casa um
espelho e um fautor, aliás, dois: o pai e a mãe. Eis o papel dos
fautores: o pai avança a faixa de pedestre, o sinal vermelho, e a
criança vê. A mãe, às ocultas, no interior do supermercado,
desenfarda um tablete de diamante negro e a criança descobre o modo
de comer chocolate sem pagar. No trânsito, invariavelmente, o pai
viaja pelo acostamento e o filho vê. Também estaciona nas vagas
privativas de portadores de deficiência e o filho vê. A mãe, numa
manhã domingueira, se vangloria de ter recebido, da padaria, troco a
maior e o adolescente escuta. O pai, na maior desfaçatez, esclarece
à esposa, em tom de quem leva vantagem, que comprou algo e efetuou o
pagamento com um cheque sem fundos, circunstância que chega aos
ouvido do audiente rapazola. O rapazola introduz na casa um objeto
de origem duvidosa e os pais dão de ombro. E com esses ingredientes
(fartura de maus exemplos aliada à escassez de catecismo e religião)
chega-se à receita que faz recender, no olfato do adolescente, o
perfume que desperta para o cortejo às práticas ilícitas. E nessa
toada, sob o ânimo de uma desonra que viceja e transita
sem-cerimônia como se portasse o crachá da moralidade, vai-se
propagando em todos os seguimentos da sociedade, espetacularmente no
político, a degenerescência da conduta humana. Ressalte-se a
circunstância pesarosa de o Brasil haver banido das escolas a
disciplina moral e civismo e, também, o hasteamento do pavilhão
nacional antes de começarem as aulas. Todo esse estado de coisa faz
vigorar o pensamento dominante de que é preciso levar vantagem em
tudo, principalmente durante um mandato eletivo. Nessa seara os
corruptos, nadando de braçada, se esmeram por desfrutar dos
benefícios provenientes das trapaças que engendram, embora recusem
a pecha de desonestos. Escândalos intérminos brotam ao modo de
ervas daninhas por entre o cereal de boa semente: o povo honrado. É
verdade que aqui e acolá alguns escândalos são flagrados e
apontados por um vedor, mas, recidivos, reaparecem; agora mais
travestidos. Nada faz medrar a ética na política! Apesar da
impunidade, que graça, eventualmente alguns corruptos são
penitenciados por culpas verificadas em prova.
Enquanto
a corrupção prospera o povo padece com serviços públicos de baixa
qualidade, mais das vezes em ruínas. Os eleitos, encastelados em
seus gabinetes, já não escutam a voz do povo; detentor de muitos
haveres. O povo é o timoneiro que poreja no remo para manter o país
na rota da prosperidade. Apesar de relegado ao esquecimento, esse
povo — submetido ao calvário de viajar, por longas horas, em trens
e ônibus sucateados, comprimidos aos moldes de vagões boiadeiros, —
trabalha de forma incansável por uma vida melhor, para manter a
pátria forte; aprovisioná-la, inclusive de impostos de alto preço.
Aliás, não faz muito tempo esse povo, transbordando de indignação,
emitiu, por meio de manifestações fragorosas que ecoaram no Brasil
e no mundo, gritos de socorro, mas, pelo visto, inaudíveis aos
ouvidos dos políticos. Será que isso é tudo quanto eles acham que
merecemos? Pergunta-se o povo, abatido, por vezes sem o brilho das
efusões cívicas. O que quer que esse povo faça, por mais que
acene, por mais que rogue, por mais que chore, por mais que grite
permanece inviso, ignorado, pelo menos enquanto não se avizinham as
eleições. Mas é preciso continuar clamando para que a demora não
se estenda para além do suportável; para que o intolerável de hoje
não se faça natural amanhã.
Já
que não se pode dedetizar a miséria moral, por tratar-se de ser
abstrato, nem mesmo castrá-la para que não venha sobrepovoar o país
com a sua filha, a miséria material, (cuja cara de mortalha causa
repugnância aos olhos e punge corações), ao menos que iludamos os
nossos ideais remetendo o nosso pensamento para o singular e
incensurável procedimento finlandês.
Os
brasileiros, que tem na carteira a balança que pesa o bom e o ruim,
fiquem alerta: há um contingente de políticos que, por falta de
decência e integridade, já não merece ser abonado. Avizinha-se o
momento em que esses polutos, hábeis em promessas mentirosas, sairão
à cata de votos levando ao crédulo eleitor a insinceridade acoitada
por semblantes beatíficos e sorrisos ternos.
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